Inquilinos da casa paterna
Tia Isolina, ou tia Zola, irmã de meu pai, foi a mais próxima da família. Afinal, morava no terreno de nossa casa, junto com meu avô, numa casinha de pau-a-pique e barro, com três pequenos cômodos. Um quarto, periodicamente habitado pela gata rajada sempre se reproduzindo, uma sala no meio, e uma cozinha minúscula, com fogão à lenha, onde tia Zola fazia seu café e alguma refeição.
Se eu nasci
em 1946, numa pequena cidade do interior paulista, Tanabi, ou “Terra das
Borboletas”, essas lembranças certamente eram da década de 50 a 60. Foi em
1964, quando tinha 18 anos, que nos mudamos para a capital do estado, São Paulo.
A exatidão cronológica – e detalhes – não fazem parte desses relatos, memórias em fragmentos, do que, beirando os 80 anos, ainda sou capaz de recordar e coragem para escrever em testemunho.
Essa casinha
de barro era uma extensão da lavanderia, onde ficava um poço de água, movido à
mão, quase sem uso. Lembranças de outros tempos que eu não vivi, talvez antes
da construção da casa onde moramos por mais ou menos 20 anos.
Havia água
encanada no tanque de lavar roupas. Mas,
se faltasse água da rua, então o poço era acionado, reativado na corda, no
balde e numa manivela à mão. Ficava fascinada, querendo ver literalmente o
“fundo do poço”, mas tia Zola dizia que havia monstros lá no fundo, cobras
venenosas e que a água era “doente”.
No alpendre
da lavanderia, a água da lavagem de roupas escorria e inundava as taiobas, uma
folhagem comestível, ao lado de uma goiabeira, com grandes tesouros em seu
trançado rés do chão. As taiobas foram praticamente cobertas por uma folhagem
oportunista, que servia de coradouro para as roupas, isto é, ficavam estendidas
ao sol para tirar o encardido e branqueá-las, como era de costume. Às vezes me
metia lá dentro e encontrava objetos perdidos e alardeava, o melhor foi um
“pênis” num vidrinho, isto é, o apêndice de minha tia.
Nas
brincadeiras, os meninos não me deixavam participar, então tinha que chamar a
atenção de alguma forma. Ah, quanto sofri por conta disso, vou contando ou
relembrando episódios aos poucos. Tia Zola sempre ficava atenta a nossas
brincadeiras, nos vigiando, se não para o bem, para o mal em que a inocência
derrapava.
Meu pai
construiu um quarto de alvenaria, anexo à garagem, em sua parte de trás, ao
lado da pequena casa antiga. Nesse
quarto dormiam meu avô, viúvo desde sempre, e tia Zola, cada qual em sua cama
encostada na parede. Havia um biombo no meio, talvez para se trocarem
pudicamente. Não havia banheiro, usavam penicos. Mas havia uma “casinha” de
alvenaria no final do terreno, com um buraco no meio e um lugar para pôr os pés
onde, agachados, sem perigo de cair na bosta acumulada, eles faziam suas
necessidades e despejavam o penico da noite.
De vez em quando, na hora dos “apertos”, eu ainda usava a casinha, mas
tinha medo e nojo. O fedor era horrível.
Meu avô,
velhinho magro e alto, de olhos azuis, usava algo muito exótico para se limpar:
sabugos de milho seco que ficavam enfiados na parede! Nunca entendi como aquilo
podia servir... Depois, ele jogava o sabugo usado no buraco.
O avô e a
tia não tomavam banho de chuveiro, se lavavam numa bacia. E meu avô, fumante de
cigarro de palha, não gostava de trocar de roupa, sempre fedendo ao fumo forte
de rolo. Mesmo assim, as crianças gostavam muito dele. Mais do que histórias,
contava causos e ouvíamos o rádio que ele tinha na salinha, incluindo as
novelas, principalmente, às 6 da tarde, as aventuras de “Jerônimo, o herói do
sertão”. Seu neto preferido e mais atento era meu irmão mais velho, o Luís,
cúmplices de “ouvido”.
Ele morreu
depois dos 80 anos, o que, para mim, era realmente uma idade velhíssima, como o
fim do mundo. Tia Zola iria sobreviver e morrer na capital, sempre alijada num
quartinho dos fundos. Indiretamente, fazia parte de nossas vidas.
Perguntávamos
a tia Zola porque ela não tinha marido e ela dizia que tinha ficado noiva e o
noivo morrera. Como era o nome dele tia? Lusc-fusc, respondia... e eu
acreditava nesse tio lusc-fusc que nada iluminara. Magérrima, morena, cabelos
escorridos e olhos empapuçados, possivelmente herança de sua mãe “bugra”, tia
Zola capengava de uma perna, tinha o lado direito torto por causa de um
derrame, como diziam. Mais tarde fiquei sabendo que tivera paralisia infantil. Mas fazia crochê, em linha fina e até me
ensinou a fazer biquinhos para uma avaliação de Trabalhos Manuais, no antigo
ginásio.
Só sei que tia
Zola era muito maliciosa; depois compreendi que tinha ciúmes e inveja de minha
mãe, uma mulher jovem e bonita, descendente de italianos. Praticamente eu não
conversava com ela, sempre ocupada, daí ouvia tia Zola. Ela me dizia coisas horríveis que me marcaram
bastante. De leve me disse que italiano era sujo, não gostava de tomar banho e de
pesado me disse que minha mãe tentava fazer abortos.
Numa família
católica, indo à missa e frequentando catecismo, eu imaginava minha mãe, a
grande pecadora, quando ela se confessava e comungava. E minha mãe ainda
cuidava dela e do sogro, com o zelo de sua responsabilidade.
Em Tambaú, uma
cidade do interior do estado, havia um padre, Donizetti, que fazia milagres,
ainda hoje reverenciado. Meu pai, minha mãe e tia Zola foram para lá. A
esperança de ver a tia Zola andar normalmente, curada, era compartilhada por
todos. Decepção! Na volta, nada de milagre, eu não conseguia entender esses
desígnios. Mas, hoje, penso, que sensações – ou remorsos - teria ela tido???
Bem, o que
sei é que muitos anos depois, morando longe, foi o que minha irmã, morando em
Sampa, me contou por telefone, porque a viu morta. Disse que ela estava
estendida no caixão, sem o braço torto, a perna esticada... Será a morte o
milagre esperado?
Elisabet
Gonçalves Moreira
Petrolina,
29/03/24 (refeito em julho 2025)
Ilustração
retirada da Internet (https://soudealgodao.com.br/blog/5-beneficios-do-trabalho-manual-para-a-terceira-idade/ Acesso em julho 2025)