Bet com t mudo

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BET COM T MUDO... Quem me conhece, reconhece? Já me imagino receptora deste blog. Quem é esta mulher? Quem é esta Eli, Elisa, Betina, Betuska, Betî, resumida numa Bet com t mudo? Esta afirmação diminuta diz (ou desdiz?) uma identidade... Assim, quem sou eu? Sou (sim) uma idealizadora das pessoas, das relações, das amizades, das produções minhas e dos outros. Consequência: um sofrimento que perdura... na mulher crítica que procura saber e tomar consciência finalmente de quem é e do que ainda pode fazer (renascer?!) nesta fase da vida, um envelhecimento em caráter de antecipação do inevitável. Daí a justificativa do blog. Percorrer olhares, visualizar controvérsias, pôr e contrapor, depositar num receptor imaginário (despojá-lo do ideal, já que eu o sou!) uma escrita em que o discurso poderá trazer uma Bet com t falante... LEITURAS, ESCRITAS, SIGNATURAS...

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

É possível existir crítica literária num curso de Letras?

 


Há alguns dias assisti a um filme, Capitão Fantástico, de 2016. Em síntese, é a história de uma família, cujo pai vivia isolado com seus filhos, adolescentes e crianças, ensinando-lhes, longe da tecnologia, uma sobrevivência que ele achava essencial. Mas aconteceu uma cena e um diálogo que me chamaram a atenção e abro nossa discussão aqui. 

 O pai, ele mesmo, intelectual, indicava leituras, geralmente os clássicos, que eram discutidos em comum. A certo instante, o pai pergunta para a filha sobre o livro Lolita de Nabokov e a menina respondeu que o livro era interessante. O pai deu-lhe uma bronca. “Interessante não significa nada, diga por que é interessante...” Fiquei pensando no livro Lolita, tão criticado, pois as referências quase sempre ficam focadas na dualidade sexual do homem mais velho e uma adolescente, nos aspectos morais, sem questionar o foco narrativo e outros procedimentos literários. Interessante não? 

Essa nossa superficialidade nas respostas, acredito, é também uma forma sutil de nos eximirmos de comprometimentos, sejam pessoais, sociais e políticos. Imagine um professor em sala de aula “ensinando Literatura”. Existe realmente essa possibilidade? 

Certa vez uma de minhas filhas, cursando o segundo grau, me perguntou e mostrou o poema de Carlos Drummond de Andrade. Isso é poesia? Isso é literatura? A professora de Teoria Literária estava sendo testada dentro de casa... Ela ouviu atenta minha justificativa, mas me olhava de soslaio. 

 No meio do caminho 
No meio do caminho tinha uma pedra 
tinha uma pedra no meio do caminho 
tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra. 

Nunca me esquecerei desse acontecimento 
na vida de minhas retinas tão fatigadas. 
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra 
tinha uma pedra no meio do caminho 
no meio do caminho tinha uma pedra. 

“Alguma poesia” havia ali, as pedras que encontramos dia a dia nos levam a um posicionamento teórico, mas também de juízo, de gosto, de leituras em diálogos múltiplos. Ah, se isso fosse ensinado desde sempre, talvez houvesse mais olhares diferenciados sobre o que é a poesia. Desafios da própria educação. 

Não existe resposta fácil, nem receita pronta, bem o sabemos. A história da literatura, das teorias e formulações mostram a variada gama de aspectos e leituras possíveis. O cânone literário, as obras clássicas já respondem por si. Será mesmo? Por que não questionamos mais? 

E que dizer da literatura contemporânea, da imensa variedade de modos e linguagens, do autor local, ansioso por ser reconhecido, ou de nossos alunos produtores de textos? Vivemos num mundo essencialmente digital, onde as produções são acessadas de imediato, comentários e clics de gostei ou curti. E os pdf viraram uma praga, facilitam por um lado, como a grande enciclopédia (lembram-se da Barsa ou da Caldas Aulete?) mas levam a um entorpecimento da pesquisa e do questionamento. Assunto para outro possível debate. 

A gente recebe elogios, mas já fui muito criticada por meus posicionamentos; um ex aluno chegou a me escrever uma carta dizendo que eu tinha “acabado com sua vida” pois seu maior sonho era ser poeta. Esse aluno havia plagiado textos e eu, ainda bem, reconheci. Confesso que fiquei chateada, mas ao mesmo tempo fiquei pensando em como gostamos de aplausos, aprovação. A situação do professor, como orientador, fica ainda mais delicada. É preciso, sim, criticar, mas sem destruir. Talvez um discurso polido ajude... ou não? Vale a pena incentivar quem não tem o talento ou é apenas um principiante querendo uma opinião e podendo melhorar mais tarde? 

Isso me lembra meu mestre, Boris Schnaiderman, escritor e tradutor, que, num encontro informal, ao abrir a correspondência que lhe chegara, nela havia um livro de poesia. Rapidamente ele folheou e, enquanto lia alguns versos, abanava a cabeça e comentou. “Não, isso não é poesia. E não devemos fazer concessão à poesia”. Essa frase categórica muito me marcou e já a usei inclusive... para desgosto de muitos. 

Em visita a Boris Schnaiderman em São Paulo, 2005.

Quando cheguei a Petrolina, em 1976, fui convidada, quase de imediato, para dar aulas na FFPP, Faculdade de Formação de Professores de Petrolina, então uma faculdade isolada, sem ligação com a hoje respeitada UPE, Universidade de Pernambuco. Formada em Letras pela USP, Universidade de São Paulo, devo ter causado mesmo uma grande expectativa. Durante anos somente um professor da área de Biologia tinha pós graduação e eu finalmente obtivera o título de Mestre em Teoria da Literatura e Literatura Comparada também pela USP. Hoje, vejo tantos mestres e doutores na cidade, quanta diferença! 

Em decorrência disto, há outro fato que gosto de recordar. Antônio de Santana Padilha, um dos escritores da cidade, com a maior obra publicada, também era meu vizinho na pequena Petrolina do início dos anos 80. Ele foi até minha casa, levou suas obras, mesmo algumas inéditas, e me pediu para que eu as lesse e desse uma opinião sincera, pois até agora só ouvia elogios. Outra frase que me impactou, “aqui grassa o elogio fácil”. Por ter usado essa frase em outras situações, me “apedrejaram” metaforicamente. 

Quem conhece meu trabalho, principalmente a Antologia “Poética Ribeirinha”, sabe que reunir e comentar autores locais não é nada simples. Sim, fiz algumas concessões... Inclusive essa antologia merece uma crítica mais atualizada. Já fizeram, mas não vou entrar em detalhes neste momento. 

Então, é possível existir crítica literária num curso de graduação em Letras? 

Isso implica várias diretrizes. Acho que é possível sim, mas numa experimentação gradativa de leitura, análise, comparação e interpretação de textos. Sem leituras completas, de mergulho na obra literária, não vejo solução. 

Existe uma metodologia para facilitar a vida do professor universitário neste sentido? Não, não existe metodologia possível. O conhecimento é dinâmico e está sempre nos desafiando... Apesar de que há muita pseudo teoria para tudo; retomam-se ideias de outros, dão lhe novos nomes e ai de você se não souber ou citar o teórico do momento. Ainda que isso não funcione na sala de aula comum, acontece de roldão nos meios universitários de tantos pós, docs e pós docs... Até levei um susto quando ouvi falar, há algum tempo, de Bauman, Slavoj Žižek e outros que me esqueci. Muita coisa se liquefaz, certamente. 

Já estou delimitando um tipo de professor, universitário, que tem como aluno o futuro professor do ensino fundamental. Um futuro “amarrado” a seguir manuais, regras, parâmetros curriculares, todas essas limitações que nos deixam sem o prazer essencial de compartilharmos aquilo de que mais gostamos na literatura, o entusiasmo, o sentir, o emocionar. Tudo acaba em cumprir o programa, as ementas, uma castração sem saída muitas vezes. Mas é possível driblar isso com nosso próprio exemplo. 

E eu tenho até uma boa biblioteca, leio muito, sempre estudando. Não só na área de Letras, mas de história, de antropologia, de política. Impossível saber de tudo. Há muitos anos li uma crônica que me fez muito bem e amenizou a ansiedade. “O leitor moderno é o mais incompleto da história”. Publicada em fevereiro de 1991. 

“Pois, se bastavam ao grego antigo a “Ilíada” e a “Odisseia”, aos judeus a “Torá” e seus comentários, aos cristãos a “Bíblia” e obras devocionais, ao iluminista a “Enciclopédia” e os clássicos, ao homem culto oitocentista um conjunto restrito de obras-primas e seus complementos, o verdadeiro leitor moderno está proibido de se esquivar do interesse por tudo que já foi ou está sendo escrito. 

Além do fato trivial de que se escreve mais e mais, a cada dia um arqueólogo descobre um novo papiro antigo no deserto ou decifra os caracteres de uma língua extinta, um sinólogo traduz outro clássico para um idioma acessível, especialistas reavaliam culturas distantes ou esquecidas, bibliotecários localizam um manuscrito perdido, a KGB abre mais um arquivo, críticos literários de verdade recolocam em circulação um autor injustamente excluído dos cânones. Em outras palavras, o leitor verdadeiramente moderno está condenado a ser o mais incompleto de toda a história.” (grifo meu) (http://almanaque.folha.uol.com.br/ilustrada_09fev1991.htm) 

Nesta incompletude, nesta limitação do saber, ter consciência de nossa ignorância, não é um “defeito”, mas a base para o abandono da opinião (doxa) e a busca pelo conhecimento verdadeiro (epistéme), objetivo da filosofia, enfim, de todo o saber. Na literatura não pretendo “desconstruir” um texto, ao contrário, construir uma percepção aprofundada de sua essência artística, de subterfúgios, de silêncios. Um jogo em desafio. 

Não quero, neste pequeno artigo, buscar citações e referências... um depoimento mais que tudo. Talvez a indicação de uma práxis, se isso for viável. Mas um posicionamento fica entranhado. 

O formalismo russo, da primeira metade do século XX, que chegou a nós, nos anos 70 e 80, muito me influenciou. Fui aluna e orientanda de Boris Schnaiderman, como já disse, e discutíamos em sala de aula autores ainda nem traduzidos aqui. Por exemplo, Bakhtin e Jakobson, que li ainda em francês. Do formalismo, veio seu derivado, o estruturalismo em diversas nuances. A base de uma crítica literária está ali, reitero. Vejo muita desinformação e até mesmo preconceito em relação a estes estudos. 

Por exemplo, um aluno da Uneb, estudioso, sem dúvidas brilhante, fez uma monografia sobre o Clube Drummoniano de Poesia do qual participei e fez história na região, nos anos 80. No segundo número da revista do Clube, eu havia publicado uma análise de um texto do poeta Murilo Mendes, que fizera parte de minha dissertação de mestrado. Sinceramente, eu gosto daquela análise e das descobertas, verdadeiras iluminações, que acontecem quando o texto também nos desafia. Senti ironia do aluno ao comentar, não a análise em si, mas o “método”, certo “estruturalismo dos anos 70”. 

Aliás, no prefácio do romance Pedro e Lina, de Antônio de Santana Padilha, também fiz uma análise na mesma linha. Reconheço que pode haver excessos em qualquer estudo onde se privilegie o método – ou uma linha teórica - e não a obra em si. Há alguns livros e estudos de críticos famosos que analisaram obras reconhecidamente “menores”, mas que se adaptavam à metodologia demonstrada. A complexidade das grandes obras não é exercício para amadores ou para pontos de vista de fora para dentro. E essas obras estarão sempre a nos desafiar, inesgotáveis. 

Crítica a partir do próprio texto, portanto, uma análise imanente, detalhada em sua linguagem e não mais a crítica impressionista ou a crítica trazida de outros parâmetros, como a história ou a sociologia. Essa atitude é o princípio. Inclusive tenho me dedicado bastante à Semiótica, à leitura sígnica, explícita ou no subtexto. Já havia me envolvido com a Linguística e elas andam a par. E, lição fundamental, diálogos possíveis, tudo tem significado na representação que perfaz o texto literário, artístico. Nada mais é compartimentado, encerrado numa visão única, em certo momento. Sem ser arrogante, claro que já sabemos disso, da pluralidade significativa de um texto artístico. Aplicamos? 

A propósito, certa vez discuti com meu orientador sobre a importância da biografia do autor na literatura. Isso me parecia secundário, tão enfronhada estava na linguagem do texto, mas vemos que, mesmo partindo da essência textual, a obra sofre as influências da vida de seu autor, de seu momento histórico, de sua localização geográfica etc. etc. Como não perceber isso no aprofundamento crítico de um Machado de Assis? Hoje “reconfigurado” como negro em suas fotos, um senhor tão distinto, certamente uma releitura de seus textos terá outra aproximação. A ironia machadiana está além de sua pose... 

Ultimamente tenho lido e relido muitos autores russos. Anton Tchekhov e Dostoiévski, entre outros, têm me mostrado essa aproximação com mais propriedade. Poderia dar exemplos, mas não é o caso agora. Aliás, eu acho que os professores de literatura (e fiz isso) devem trabalhar autores da literatura universal, fazer comparações e referências que motivem a procura por outras obras. Lembro-me que, no IF Sertão, em aulas para o segundo grau, lemos Os meninos da rua Paulo, do escritor húngaro Ferenc Molnár, comparamos com o filme e foram feitos trabalhos em várias linguagens a partir dessa leitura, com o auxílio também dos outros professores da área. Foi um sucesso. Na Faculdade, levei muitos autores locais para falarem de suas obras, analisamos algumas e a alegria por esse reconhecimento também me contagiou. Enfim, ter coragem de abrir o leque de leituras, além das ementas e programas. O ganho é muito maior do que se possa imaginar. Talvez eu esteja dizendo o que todos sabem e praticam, mas este texto é também um relato de posicionamento. 

Somente mais um detalhe. Quantas vezes acontece de nos surpreendemos com a visão dos alunos, seja em sua falta de motivação, seja em suas opiniões sinceras... claro que um aluno de graduação dificilmente faria uma análise acadêmica para publicação numa revista especializada, mas é capaz, sim, de dizer coisas que muitas vezes não percebemos, cristalizados que estamos em determinados parâmetros. E essas “sacudidas” são bastante salutares para não sermos “donos da verdade”. 

Reconheço, no entanto  – e isso me incomoda - que dominam textos fracos, muitos clichês e mediocridade... seja na produção literária, seja numa pretendida crítica. Grassa ainda o elogio fácil ou a falta de coragem para o que realmente deve ser dito, então se aplainam as arestas, e, lugar comum, tudo fica bem, menos a literatura e sua verdade. 

 ...oooOooo... 

Maiakóvski tem um poema Hino ao crítico do qual transcrevo aqui a última estrofe para complementar questionamentos. Afinal, temos mesmo uma missão? Ser crítico literário é crível? Muito sarcasmo para quem não é autor, não é poeta... 

“Escritores, há muitos. Juntem um milhar. 
E ergamos em Nice um asilo para os críticos. 
Vocês pensam que é mole viver a enxaguar 
A nossa roupa branca nos artigos?” (tradução de Augusto de Campos e Boris Schnaiderman) 


 Uma indicação de última hora ocorreu-me: o livro Na sala de aula, de Antônio Cândido (S.Paulo: Ática, 1984). Fui sua aluna e assisti à aula em que ele analisou o poema O rondó dos cavalinhos de Manuel Bandeira e, no livro, a análise tem o título de Carrossel. Alguns privilégios tive que, minha memória, nestes últimos anos, tem surgido com outros significados. 

domingo, 27 de dezembro de 2020

RELEITURA DE CRANACH

 

Retrato da Princesa Elisabeth da Saxônia  de Lucas Cranach, o Jovem (1564)

Medidas: 38,8 cm por 28,5 cm. O rosto e a trança do cabelo pintada em óleo; desenho em marrom. O  papel foi preparado com base de óleo rosa claro. Acervo do Kupferstichkabinett em Berlim, Alemanha



Releitura de Cranach, de Elisabet G. Moreira, óleo sobre madeira, 80 x 70 cm, 2014.


“Um olho vê, o outro sente”, frase exemplar de Paul Klee. Olhe novamente para a reprodução do esboço para o retrato da princesa Elisabeth da Saxônia, feito por Cranach, o Jovem, em 1564. Sobretudo aquele olhar, a claridade, a perfeição, me seduziram. Fiz primeiramente um desenho a partir da observação desse esboço assim que o vi, na capa de um livro de arte.

Isso foi em 2009, na cidade de Laredo, TX, nos Estados Unidos, fronteira com o México, onde tive algumas aulas de desenho  com o artista Juan António Barajas, na galeria de arte 201. Visitava uma de minhas filhas e, como sempre gostei de desenhar e pintar,  quis mais uma experiência. A galeria era muito especial, motivadora, num prédio antigo, estilo vivenda espanhola, de grossas paredes, tijolos à mostra. Sempre havia quadros muito bons. Juan Barajas, pintor e professor, é um excelente artista, figurativo. Suas obras são quase todas vendidas no site da Artelista. Meu  desenho (sanguínea sobre papel) foi selecionado para uma exposição no final do curso.

Trouxe para o Brasil o desenho que fizera. Em Petrolina conheci uma artista que me convidou para fazer uma exposição em conjunto, trabalhando na madeira, com pintura e colagem. A colagem já estava nos meus planos; gosto bastante desta possibilidade mais contemporânea de expressão artística. Adquirimos os chassis em madeira e “aproveitei” o desenho que havia feito.  A intenção era fazer uma colagem de renda em torno da figura, usando tinta acrílica para a pintura, mas o projeto não foi avante, por várias razões. O “quadro” ficou encostado durante três anos.  Um bloqueio criativo, se assim pode ser chamado, me impediu de continuar e, inclusive, de fazer outros trabalhos em pintura.

Em 2013, novamente motivada, recomecei a ter aulas de desenho e pintura, agora com Jorge Sairaf, pintor juazeirense, na Tenda Artes, em Petrolina. Jorge estudou em Salvador, morou em Portugal por 20 anos, sempre trabalhando com pintura, vendendo seus quadros e dando aulas. Infelizmente veio a falecer em 2020. Seu estilo clássico, combinando muitas vezes releituras, numa motivação surreal, realmente foi apropriado para a continuidade do meu trabalho. 

Jorge Sairaf renegou a colagem, que eu ainda insistia. Pintura a óleo, para treinamento e aprendizagem. E que aprendizagem! A madeira não havia sido suficientemente tratada como base e sofremos bastante. Enfim, fazia parte! Camadas e camadas de tinta, de ideias, de mudanças para detalhes foram se acumulando durante meses. O arabesco saiu por insistência minha, como “moldura” para o retrato. Deveria haver outro, mas desistimos. E o vestido? E os enfeites?

Cranach foi um detalhista. O esboço para o retrato de Elisabeth da Saxônia era uma técnica para a pintura mais tarde. Desconhece-se, no entanto, se realmente ele chegou a finalizar o retrato da princesa após este esboço.

Pesquisei bastante e, neste viés pedagógico de história da arte também coloco alguns de seus retratos de mulheres da aristocracia da época. A profusão de detalhes em jóias e adereços nos retratos de Lucas Cranach tem, evidentemente, o papel de definir a posição social do retratado e o mundo em que viviam. Aliás, observando bem as mulheres ali retratadas, percebemos que são bastante parecidas umas com a outras, na mesma posição. Daí, o pintor dar a também a conotação de um fashionista, realçando o figurino e a ostentação da aristocracia. 

Pintado o rosto na madeira, sobre o meu desenho, fomos definindo os detalhes. Decidi passar uma camada de tinta cobre metálica em todo o fundo, isso mais de uma vez. Jorge não gostou, mas depois aceitou e introduzimos detalhes dourados. 

Eu também quis esta faixa escrita que aparece na parte inferior da pintura para introduzir possíveis explicações sobre o tema escolhido, assim como fazia Fridra Kahlo. E o fio de linha que sai da gola tem o significado de “tecer” outra leitura, uma obra inacabada como foi a de Cranach. 

E como podemos ler neste inacabamento! Além da própria arte renascentista, uma narrativa, histórica em seus fatos e datas, diversas possibilidades em outras linguagens, em desafios constantes.

Assim, continuei minhas pesquisas. A moça do retrato era a princesa Elisabeth (coincidência, mesmo nome meu!) da Saxônia (1552-1590) nascida no castelo de Wolkenstein numa Alemanha agrária e feudal, de linhagem nobre e atuante. Seu pai era príncipe Eleitor da Saxônia, Augusto,  e sua mãe era filha do rei da Dinamarca. Elisabeth se casou em 1570, com 18 anos,  e teve 6 filhos.  Seu pai se opunha à política do genro, Johann Casimir, um calvinista e amigo da França, mesmo que este, mais tarde,  tenha se convertido como luterano. Entretanto, os católicos na Alemanha viram neste casamento uma provocação contra a dinastia Habsburg e uma tentativa de formar uma frente protestante. O marido de Elisabeth tentou quebrar a oposição religiosa à sua esposa luterana, mas o que se sabe é que, em outubro de 1585, ela foi presa e acusada de adultério e de tentativa de assassinato contra seu marido.  Até mesmo seu irmão estava convencido de sua culpa. Ainda no cativeiro ela se converteu ao calvinismo, mas morreu antes de completar 38 anos. Como se vê, minha princesa é um exemplo típico do jogo do poder, monarquias, dinastias, facções religiosas.

 

Lucas Cranach, o Jovem (1515-1586), era filho do pintor alemão Lucas Cranach, conhecido como o Velho. Iniciou sua carreira como aprendiz no ateliê de seu pai. Com a morte do pai, Lucas Cranach assumiu a oficina de trabalho, continuando de tal modo a tradição paterna  que as obras de ambos os artistas se confundem com frequência, embora não lhe apontem os caracteres germânicos que fazem o estilo e a força das obras do velho Cranach (1472-1553).

Ambos foram pintores da corte dos Eleitores da Saxônia durante a maior parte de sua carreira, abraçando a causa protestante, tornando-se amigos de Martinho Lutero.  Protegidos da aristocracia, ocuparam postos na administração do conselho municipal de Wittenberg. Sem dúvidas, a proteção dos príncipes da Saxônia lhes assegurou prosperidade e poder.

Portanto, este trabalho, além de minha pintura, conta uma travessia e uma aprendizagem. Não só de técnicas de pintura, mas de como nossos olhares do século XXI ainda se servem da tradição para nela fazer uma releitura. Ainda que meu trabalho venha a carecer de qualidade artística ou de uma releitura diferente para estes tempos fragmentados da pós-modernidade, fica o prazer também lúdico de nela entendermos a história e a cultura, um caminho de muitas interações.


Amostra de retratos feitos por Cranach, destacando-se os adereços, o figurino. Seria a moda do século XVI ou uma criação do artista?




                          

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

SÉRIE MEXICANA III – “CALAVERAS LITERARIAS”

💀                                                                                         

Dia de Finados: 2 de novembro, depois do alegórico Dia de Todos os Santos. Um feriado brasileiro para prantear nossos mortos. Uma intenção de apreço e memória que, no México, é símbolo de uma grande festa, conhecido como Dia de los Muertos.

(foto minha)

“Não morre aquele que se vai, morre aquele que se esquece.”

Minha amiga Rosa Maria Ceballos de Llano, professora em Laredo, Texas, na fronteira com o México, postou no FB estes versos, feitos por alunos, com referência à data e ao gênero (se assim podemos chamar) “calaveras literarias”. A matéria, publicada em jornal local, explicita: “As calaveras literárias são uma tradição mexicana que surgiu em fins do século XIX, assemelham-se a um epitáfio e são escritas com motivos do Dia dos Mortos.”  💀💀



Dado o mote “Coronavirus”, Claudia Lozano escreveu (a tradução é minha, literal).

El Coronavirus                                                 O Coronavírus

En el año dos mil veinte,                                             No ano de dois mil e vinte

Algo raro sucedió                                                        Algo raro aconteceu

Llego un vírus del Oriente                                          Chegou um vírus do Oriente

Que a todos nos sorprendió.                                     Que a todos surpreendeu.

No hubo a quién no afectara                                     Não teve quem não afetou

Todo em HEB se acabó,                                            Tudo no supermercado acabou, (*)

Y hasta la Calavera pensaba                                       E até a Morte pensava

Que no alcanzaría jabon.                                             Que nem sabonete acharia.

 

No había cloro, no había nada,                                 Não havia cloro, não havia nada,

No había carne ni ensalada,                                       Não havia carne ou salada,

Y la muerte muy sonriente                                         E a morte muito feliz

De todo esto se alegraba.                                           Por tudo isso se alegrava.


Por eso no salía                                                           É por isso que não saía

Mejor se queda sentada                                               Melhor ficar sentada

Tiene miedo que a sus huesos                                     Tem medo que seus ossos

Los usen pa´parrillada.                                                Se usem para parrillada (**)

                                                        

(*) HEB – O HEB é a maior rede de supermercados do Texas.

(**) Parrillada - Prato composto por um sortido de carnes, peixes, mariscos ou vegetais grelhados. A chapa onde se grelha se chama parrilla.

Os outros dois textos selecionados são bem a gosto do momento e da realidade local. O terceiro texto alude às eleições e ao policiamento de fronteira, um diálogo entre a morte e o oficial. Registre-se que a morte tem dezenas de nomes e referências no imaginário popular mexicano: La Flaca – A Magra; Calaca – Esqueleto; Catrina com várias conotações ao longo da história dos corridos e das alegorias do Dia de los Muertos). 

São portanto versos irreverentes, satíricos muitas vezes, retratando temas ou pessoas como se estivessem mortas, levadas por seus defeitos ou incoerências sociais, demagógicas ou políticas. O encontro e o diálogo com a morte é uma invariante.

A nós parece estranho a festividade carnavalesca do Dia de los Muertos, com fantasias, papel picado, velas, flores, oferendas, doces, picardia e sátira. Uma mescla de sincretismo, vindo dos indígenas ancestrais e aculturação colonizadora. Assimilação antropofágica em certa medida, em que a morte serve para nos lembrar que ela nos acompanha.    

Doces variados vendidos no mercado
Altar no restaurante A Gruta

Garotinha vestida como Catrina

 

Pão dos mortos, formato de ossos 
Uma Catrina na rua me abraça




Altar alegórico para oferendas na Igreja católica



(fotos minhas, tiradas na Cidade do México em 2016)


Assim o riso e a imaginação sempre serão uma terapia para nos descontrair da dura realidade da vida. Rir, divertir-se, não faz mal a ninguém de mente sadia, a não ser, talvez, conservadores e moralistas que sempre estão na contramão da alegria. Aqui se privilegia a memória e não o esquecimento.                   

No início do ano 2000 estive nos Estados Unidos e conheci a cidade de Lawrence, no estado do Kansas, onde fica um dos campi da K.U.  Kansas University. Havia uma exposição na universidade que muito me interessou e onde vi gravuras de Posadas, uma referência para os estudos da imagética popular mexicana, entre 1890-1910.

Adquiri o livro Posada´s Broadseheets Mexican Popular Imagery 1890-1910 (University of New Mexico Press, Albuquerque, 1998) e conheci seu autor, Patrick Frank. Esse acontecimento me possibilitou despertar para as relações entre os corridos mexicanos e nossa literatura de cordel. Alguns anos mais tarde fiz uma pesquisa que foi apresentada como palestra em um Congresso na FACAPE, em 2011, cidade de Petrolina.  Publicado: Corridos: o “cordel” mexicano – Anais do I Concordel – Congresso Regional sobre o cordel.  Petrolina: AEVSF/FACAPE, 2011, p. 25 a 45.




José Guadalupe Posada (1852-1913) foi gravurista, ilustrador e cartunista. Considerado por Diego Rivera como o protótipo do artista do povo, Posada ficou célebre por seus desenhos e gravuras, pelas interpretações da vida cotidiana e atitudes do mexicano em que caveiras agem como gente comum.

Não há dúvidas que o trabalho mais célebre de Jose Guadalupe Posada é La Catrina, emblema inseparável da festividade do Dia dos Mortos, um ícone atemporal das tradições mexicanas.



Com este título “Remate de Calaveras Alegres  y Sandugueras”, de 1913, Posada apresenta a calavera “Garbancera”, assim chamada porque vendia garbanza, grão de bico, e, tendo sangue indígena, pretendia ser europeia, renegando sua própria raça, herança e cultura.

Assim, com humor e crítica, o texto, aliado à ilustração, um esqueleto usando enorme chapéu emplumado, condena a vaidade, o supérfluo, e afirma o destino inevitável na morte, onde todos se igualam. E as tintas cruéis da decadência da carne, da podridão, dos ossos das “calaveras de montón” fazem o cenário de fundo. O subtítulo pode ser assim traduzido: “As que hoje são empoadas garbanceras, acabarão em deformadas caveiras”. Transcrevo o texto integral para conhecimento, mesmo que o espanhol e algumas expressões sejam de difícil entendimento. Um desafio para nosotros.

Las que hoy son empolvadas garbanceras,

pararán en deformes calaveras

 


Hay hermosas garbanceras,                                               

de corsé y alto tacón;

pero han de ser calaveras,

calaveras del montón.

 

 

Gata que te pintas chapas

con ladrillo o bermellón:

la muerte dirá: "no escapas,

eres cráneo del montón".

 

Un examen voy a hacer,

con gran justificación,

y en él han de aparecer

muchos cráneos del montón.

 

Hay unas gatas ingratas,

muy llenas de presunción

y matreras como ratas,

que compran joyas baratas

en las ventas de ocasión.

 

A veces se llaman Rita,

otras se llaman Consuelo,

y a otras les dicen Pepita;

a ésas la muerte les grita:

"No se duerman, que yo velo;

y en llegando la ocasión,

que no mucho ha de tardar,

heridas por un torzón,

calaveras del montón,

al hoyo iréis a parar".

 

Hay unas Rosas fragantes,

porque compran Pachulí

unas Trinis trigarantes,

y unas Choles palpitantes,

dulces como un pirulí;

pero también la pelona

les dice sin emoción,

"no olviden a mi persona,

que les guarda una corona

de muelas en el panteón".

 

Vienen luego las mañosas

que Conchas se hacen llamar,

y que aunque sean pretenciosas,

no tienen perlas preciosas,

sino mugre hasta más dar.

A éstas y a las Filomenas,

que usan vestido zancón

y andan de algodón rellenas,

les ha de acabar sus penas

la Flaca con su azadón.

 

Siguen las Petras airosas,

las Clotildes y Manuelas,

que puercas y mantecosas,

son flojas y pingajosas

y rompen muchas cazuelas.

La enlutada misteriosa,

que impera allá en el panteón,

y es algo cavilosa,

con su guadaña filosa

las echará al socavón.

 

Las Adelaidas traidoras,

que aparentan emoción

si oyen frases seductoras,

y que son estafadoras

y muy flojas de pilón;

se han de ver próximamente,

sin poderlo remediar,

sumidas enteramente

en el hoyo pestilente

de donde no han de escapar.

 

Las Enrriquetas melosas,

unidas a las Julianas

y a las Virginias tramposas,

que compran baratas cosas,

aunque resulten mal sanas;

pagarán su picudez

y sus mañas de agiotista,

sumiéndose en la estrechez

y en la inmunda lobreguez

porque la muerte es muy lista.

 

Las pulidas Carolinas,

que se van a platicar

en la tienda y las esquinas,

y se la echan de catrinas

porque se saben peinar:

han de dejar sin excusa

los listones y el crepé,

y en un hoyo cual de tuza,

se hundirán con todo y blusa,

con choclos y con corsé.

 

Las Marcelas y las Saras,

que al cine van a gozar,

vendiendo hasta las cucharas,

y se embadurnan las caras

porque pretenden gustar,

serán indudablemente,

sin ninguna discusión,

de improviso o lentamente

esqueleto pestilente,

calaveras del montón.

 

Y las gatas de figón,

que se hacen llamar Carmela,

por producir emoción,

y tienen bodegón

tan sucio que desconsuela;

han de pagar su pereza

que da mortificación,

sumiéndose de cabeza

en el fondo de la mesa,

a ser cráneos del montón.

 

En fin, las Lupes y Pitas,

las Eduwigis y Lalas,

las perfumadas Anitas,

las Julias y las Chuchitas

tan amantes de las galas;

han de sentir por final,

diciendo "miren qué caso",

el guadañazo fatal,

y liadas como tamal,

verán que llegó su ocaso.

 

Pero no quiero olvidar

a las lindas Margaritas,

tan amantes de bailar,

y a quienes gusta calentar,

porque se creen muy bonitas.

La muerte las ha de herir,

sin mirar su presunción,

y aunque se van a afligir

yo les tengo que decir

"calaveras del montón".

 

Las Gumersindas e Irenes,

las Gilbertas y Ramonas,

que quieren siempre ir en trenes,

y que alzan mucho las sienes

porque se juzgan personas;

las Melquiades y Rebecas,

las Amalias y Juanitas,

que unas son sucias y mecas

y otras se juzgan muñecas

y presumen de bonitas.

 

Las Romanas y Esperanzas,

las Anastasias famosas,

que son gurbias y muy lanzas

y parecen gatas mansas,

porque son muy labiosas;

todas, todas en montón,

sin poderlo remediar,

en llegando la ocasión,

calaveras del montón,

en la tumba han de parar.


Muito poderia se desenvolver aqui sobre estas relações e a ambiguidade simbólica das Catrinas como representações da morte, hoje assimiladas nas máscaras de uma festa popular tipicamente mexicana. Rosa Maria Ceballos de Llano usou esta tradição didaticamente com seus alunos para produção de textos como vemos no jornal de Laredo. Por aqui também há “oficinas” de literatura de cordel, um incentivo que parece funcionar bem.

💀

Mas a situação em nosso Brasil, neste finados de 2020, me leva a uma série de questionamentos. Memória de mortes inesperadas, de uma pandemia que foi negada e muitas vezes subtratada.

Quem morreu sem despedida? Quem ainda morrerá?

Houve visita aos cemitérios? Haverá? Distanciamento entre vivos e mortos?

A saudade e a dor não têm sepultura, sabemos disso. Diferente das comemorações que são festivas no México, nosso Dia de Finados descamba para a tristeza e a inquietação do advir...

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     💀 Observação: Série Mexicana I e II foram publicadas neste blog em 2017.

 💀💀Semelhante a isso, temos os “testamentos de Judas”, no Sábado da Aleluia, Semana Santa, versos satíricos lidos e divulgados antes da queima do Judas, também uma tradição popular.