(Faz toda a diferença você ouvir novamente a canção, no original)
MULHERES DE ATENAS
(Chico Buarque - Augusto Boal)
Da peça “Lisa, a mulher libertadora” de Augusto Boal
Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Vivem pros seus maridos, orgulho e raça de Atenas
Quando amadas, se perfumam
Se banham com leite, se arrumam
Suas melenas
Quando fustigadas não choram,
Se ajoelham, pedem, imploram
Mais duras penas,
Cadenas
Quando eles embarcam, soldados
Elas tecem longos bordados
Mil quarentenas
E quando eles voltam sedentos
Querem arrancar, violentos
Carícias plenas
Obscenas
Quando eles se entopem de vinho
Costumam buscar o carinho
De outras falenas
Mas no fim da noite, aos pedaços
Quase sempre voltam pros braços
De suas pequenas
Helenas
Elas não têm gosto ou vontade
Nem defeito nem qualidade
Têm medo apenas
Não têm sonhos, só têm presságios
O seu homem, mares, naufrágios
Lindas sirenas
Morenas
As jovens viúvas marcadas
E as gestantes abandonadas
Não fazem cenas
Vestem-se de negro, se encolhem
Se conformam e se recolhem
Às suas novenas,
Serenas
Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Secam por seus maridos, orgulho e raça de Atenas.
MULHERES DE ATENAS
Elisabet Gonçalves Moreira
“Por isso, as necessidades poéticas deste (público) são hoje
preenchidas pelo conto curto, ou pela canção popular. Em outras palavras, a
cota de poesia que o público precisa absorver vem mais através de Chico
Buarque, Caetano Veloso e outros, do que pelos poetas propriamente ditos.”
Antônio Cândido
Mulheres de Atenas, de Chico Buarque e Augusto Boal, gravado em 1976, sempre me chamou a atenção. Letra e melodia em conjunção entrando na alma, questionando, nos maravilhando. Muito analisei este texto, mas o retomo como pretexto para uma análise literária, de algumas condições e caminhos da própria poesia hoje, além da problemática da situação feminina inferida por seu significado. No entanto, este trabalho é mais uma chamada de atenção para estes problemas do que propriamente um ensaio sobre os mesmos ou respostas definitivas. São problemas demasiadamente complexos para um trabalho bastante simples. Ademais, faz parte de minha formação considerar também que uma análise jamais esgota o verdadeiro texto artístico. E muito mais suas implicações.
Também como introdução cabe ressalvar alguns aspectos, além de
explicitar a maneira como vejo a abordagem literária de um texto. Há uma
citação de Ezra Pound que faz parte deste critério: “O crítico que não tira suas próprias conclusões, a propósito das
medições que ele mesmo fez, não é digno de confiança. Ele não é um medidor, mas
um repetidor das conclusões de outros homens.”
Portanto, assumir o papel de crítico é saber levar esses critérios a
termo. É considerar sobretudo a “totalidade
dinâmica do texto”, onde nada é gratuito, tudo tem sua função, valor e
significado. Assim, todas as conclusões que a análise me levou, não vieram de
uma tese preconcebida, de algo imposto de fora, mas da desmontagem primeira do texto ou descodificação do mesmo.
Outra característica assumida é a de tratar o texto literário como um
meio da comunicação humana. A obra
literária tem revelada na linguagem artística sua função social, agindo como
nexo mediador entre o emissor da mensagem codificada literariamente e o seu
destinatário: público leitor ou... ouvinte.
Portanto, na medida em que eu, leitor/crítico, ajo como o destinatário
dessa mensagem artística codificada enquanto obra literária, texto, linguagem,
passo a decodificá-la também nesse aspecto, inversamente.
Também poderiam perguntar a priori: em que medida esta letra de
uma canção popular pode ser considerada um texto artístico, literariamente
falando? Coloca-se o problema em termos até simplistas: não apenas numa
tradição de canções cujo valor artístico são indiscutíveis como Chão de Estrelas de Orestes Barbosa ou Felicidade de Vinícius de Moraes e
tantas outras, mas de que, no contexto atual, o “consumo” de poesia
propriamente dita se torna cada vez mais distante do leitor médio, do público
enfim. Assim, a canção popular, retomando a afirmação do professor Antônio
Cândido, em epígrafe, veio, de certa forma, suprir o longo distanciamento entre
o público e a poesia contemporânea.
Poder-se-ia
perguntar ainda: não é o caso de se considerar a canção popular como
cultura de massa? Em geral, considera-se a cultura de massa como de má
qualidade, agindo muito mais em função da quantidade e do seu rendimento fácil,
impregnada de fórmulas feitas e chavões para consumo rápido.
Como falar pois da canção popular sob outro viés? Claro que ela está
incluída na comunicação divulgada pelos atuais meios de comunicação de massa e
que alcançam o público. Em suma: faz parte de uma cultura que alcança as
massas, sem ser massificadora. Cultural e artisticamente desempenha um papel
que contrapõe manifestações similares.
Como também realçou Antônio Cândido, a
canção popular, constantemente reprimida pelas autoridades nos anos 60 e 70,
insistindo em retratar com sinceridade o estado de coisas vigente, não há como
dissociá-la da história e do momento político. Através da linguagem figurada e
da exploração sistemática da ambiguidade, foi possível a alguns
compositores-poetas dizerem muita coisa que encarnou o protesto e manifestou a
crítica.
Esses artistas representam um lado da criação literária em fase de
transformação rápida, que podemos acompanhar. E de perceber a influência que
exercem. A aliança entre a música e a palavra permite certa incorporação dos
jogos de sonoridade e sentido das experiências de vanguarda e sua incorporação
ao gosto popular. Chico Buarque, em suas primeiras canções, colocou-se mais
numa posição um tanto lírica e sentimental, que lembra a de Vinícius de Moraes.
Artista eclético, apresenta uma produção considerável, de elevado nível
artístico, não há como negar.
Quanto a Augusto Boal, co-autor de Mulheres
de Atenas, objeto deste trabalho, é um dos nossos mais audaciosos diretores
de teatro e dramaturgo. Após a década de 60, com as experiências do Teatro de
Arena e do Teatro Oficina, ajudou de certa forma a “revolucionar” o teatro
brasileiro com soluções arrojadas, montagens audaciosas e uma filosofia não
menos livre e atual.
Toda a letra é construída de maneira uniforme e coerente. Tanto do ponto de vista formal como do significado. São 5 estrofes de 9 versos cada que, embora heterométricos, têm o mesmo cuidadoso número de silabas poéticas em todas as estrofes, correspondendo-se igualmente. Apresenta uma última estrofe de apenas dois versos que tem um sentido conclusivo.
Cada estrofe dessas também pode ser dividida em três segmentos, a saber:
os dois primeiros versos com 14 sílabas cada; os três versos seguintes de 8, 8
e 4 sílabas poéticas e os últimos quatro versos também com 8, 8, 4, finalizando
com 2 sílabas poéticas. Este escandimento é bastante regular e seu efeito é
obtido em consonância com a musicalidade do ritmo da própria canção. Repetitiva
e monótona, parece realmente um canto de coro. Se se fizer a associação com a
referência à Grécia antiga, ao teatro, está, de certa forma, justificada esta
impressão musical.
Observe-se na letra que o funcionamento das rimas não é menos regular:
quase todas em parelhas, soantes, de total combinação sônica, além da
predominância da rima a. O esquema está assim distribuído:
aa bb
a cc aa
Isto em todas as estrofes. A rima a é a mesma em todas elas,
justamente a que predomina, com o final enas
(Atenas, melenas, penas, cadenas,
plenas etc.). Além do jogo de aliterações, pode-se observar que são todas
rimas graves, paroxítonas e “pobres”,
isto é, segundo a tradicional classificação retórica das rimas, pertencem à
mesma classe gramatical. Entretanto, por causa do efeito sonoro que causam, dão
maior força ao ritmo e à melodia. Sendo um texto para ser cantado, quanto mais
“melodioso” for, mais fácil será assimilado. Assim, sua função, nesse sentido,
“enriquece” o conjunto do texto, numa interação de linguagens.
Além disso, há que se considerar, no caso principalmente das rimas a, o efeito que produzem pela
insistência e pela combinação de palavras de pouco uso. Este efeito é
conseguido - e aqui chama realmente a atenção - pelo inusitado destas
combinações. Há um toque de estranheza, talvez distanciamento, nestas rimas que
demonstram também um cuidadoso e erudito processo de seleção das palavras.
Tem-se um título: Mulheres de
Atenas. E, imediatamente, numa primeira audição, perguntar-se: por que a
mulher de Atenas? Sabemos como as mulheres gregas, impiedosamente
tratadas pelas lendas e mitos, conotam a tragédia, a dor, o sofrimento. Elas
aparecem quase sempre passivas, sujeitas ao destino, à fatalidade. E é essa
passividade que vai ser cruelmente mostrada no texto de Chico Buarque e Augusto
Boal, dentro do espírito da própria tragédia grega.
O texto apresenta um dístico-chave e que, além de ter o maior número de
sílabas (14), é repetido com apenas algumas variantes no início de todas as
estrofes. Veja-se o primeiro verso deste dístico: “Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas.”
A relação estreita com o título retoma agora o sentido do “exemplo” que essas mulheres oferecem, naturalmente dirigido para outras mulheres, nós, ouvintes. Exemplo que deve ser tomado no sentido de um espelho, conotado pelo “mirem-se”.
A partícula se, impessoalizando o verbo, determina, pelo tom autoritário do imperativo, que se
dirige a todas as mulheres, mesmo àquelas que não mais estão em Atenas. E que
exemplo é este, aconselhado a ser seguido? Sabe-se que num contexto moderno, a
referência ao passado, ainda mais às origens de nossa civilização, ao “berço”
da cultura ocidental, adquire também outros significados por essa perspectiva.
Poderia tal exemplo ser transposto nos mesmos níveis? Em que medida esse
exemplo deve ser seguido? São apenas algumas primeiras questões, que incluem
uma referência às conquistas feministas e o esperado disso.
Neste dístico inicial de todas as estrofes, o segundo verso tem uma
sequência de verbos, com uma carga semântica bastante forte e uma gradação de
intensidade também importante. São vivem/sofrem/despem-se/geram/temem/secam.
Vivem: doação exclusiva e razão da existência; sofrem: a marca da
tragédia; despem-se; a mulher em sua função sexual; geram: a
função reprodutiva da mulher; temem: o medo da morte do companheiro em
guerras infindáveis e, finalmente, secam: no sentido de mirrar,
definhar, uma morte-consequência do sofrimento imposto em sua condição de vida.
Também esse segundo verso esclarece quem são os “maridos” pelos quais
elas tudo fazem, ou melhor, deles tudo aceitam. Pela sequência: orgulho e raça/poder e força/bravos
guerreiros/novos filhos/heróis e amantes/orgulho e raça de Atenas.
Aqui as mulheres não são nada. Tudo está em relação ao homem: são eles e
não as mulheres que se constituem no “orgulho
e raça de Atenas”, “poder e força” etc. Tem-se, portanto, uma oposição
firmada e reiterada:
mulheres de Atenas x
maridos de Atenas
Mulheres, generalizando a própria condição feminina e maridos (não os
homens), uma condição social, imposta pelos “laços” do matrimônio, por um
determinismo social, patriarcal.
Na primeira estrofe, tudo leva a crer que o exemplo a ser seguido parte
de de quem as aconselha a tal, já que as mulheres “vivem pros seus maridos, orgulho e raça de Atenas” . Todas suas
vidas devem girar em torno de “seus
maridos”. Aquela primeira oposição não significa uma correspondente
“oposição” das mulheres e, sim, sua
submissão.
Nas duas partes seguintes em que se divide esta estrofe, temos, na
primeira, duas “condições” e as ações que demandam essas condições: “quando amadas” e “quando fustigadas”. É
sintomático que os verbos estejam todos no presente do indicativo: uma ação que
ocorre no momento. Isto quer dizer que aquele passado é presentificado,
transposto para uma vivência real: como num palco assistimos estas ações agora. Que fazem estas mulheres? “Se perfumam/banham/arrumam”. São verbos
que revelam os cuidados com o próprio corpo, para maior beleza, no “banho com leite”, nos cabelos e
penteados através de “melenas”. A
vaidade da mulher expressa não como algo próprio, mas em relação ao homem e a
uma determinada condição temporal, pois, esses cuidados são “quando amadas”.
E “quando fustigadas”, isto é,
castigadas, maltratadas, com certo toque sado-masoquista que acompanha o texto
e sua teatralidade, tem-se a sequência: “não
choram/se ajoelham/pedem/imploram”. O choro, recurso tão “feminino” lhe é
negado e a humilhação masoquista, porque passiva, estende-se num crescendum. O que elas imploram? “Mais duras penas”
O destino de sofrimento e a aceitação trágica da realidade se evidencia.
Nada nesse texto vai levar a uma reviravolta das atitudes da mulher. As penas,
os sofrimentos vão ser mostrados em todas as estrofes e a mulher submetendo-se
a todos. A estrofe termina com a palavra “cadenas”.
Aqui, pelo sentido do texto, significa, como no espanhol*,
cadeias, correntes, grilhões. Uma submissão que já é escravidão.
A chamada do primeiro verso se repete igual: “Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas”. Essa redundância
tem também sua função, como se explicou: não só pelo ritmo, mas pela reiteração
do significado, pois o importante é o “exemplo” que oferecem as mulheres de
Atenas.
Aqui elas “sofrem por seus
maridos, poder e força de Atenas.” Fica-se sabendo que sofrimento é esse e
porque os maridos representam “poder e força”. Tem-se também duas condições, pois
a característica temporal do “quando” se restringe em relação ao significado do
todo: “quando eles embarcam” - como soldados
que o são - e “quando eles voltam
sedentos”.
Em relação ao primeiro
conjunto aparece uma oposição “eles/elas”. Quando eles fazem alguma coisa, o
que “elas”, em contrapartida, fazem. Nesse caso, “eles” representando sempre “o poder e força de Atenas” são soldados
que partem em sua função pelo mar e na espera “elas tecem longos bordados”.
Não deixa de ser uma referência ao mito de Penélope, modelo de
fidelidade conjugal, e de seu interminável tapete, esperando a volta do
marido. Por isso, elas passam “mil quarentenas”, referindo-se ao
espaço de tempo em que pessoas suspeitas de doenças contagiosas ficam isoladas.
E que são mil numa clara alusão aos
longos anos de abandono e de abstinência sexual.
“E quando eles voltam
sedentos”: esse e age em
relação ao primeiro segmento: “quando
eles embarcam” e agora “quando eles
voltam”. Sedentos: aqui não só de vinhos, mas de sexo, é óbvio. E um
sexo violento, imoral, pois “Querem
arrancar, violentos/Carícias plenas/Obscenas”
Há uma mudança de entonação nestes últimos versos que enfatizam a rima e
seu significado. Este “obscenas” soa extremamente forte, isolado, quando há uma
interrupção da voz e o som instrumental se eleva para depois iniciar nova
estrofe.
Evidencia-se um poder masculino
de dominação tanto como soldados - e não guerreiros - como sexual, numa
linguagem dramática. É canção de uma peça teatral - nunca encenada, que se
saiba - e o efeito faz parte do envolvimento encenação e plateia, como tudo
leva a crer. Envolvimento que se dá também ouvindo a canção.
Em decorrência das “carícias
plenas” que os maridos querem “arrancar”,
aparece, no segundo verso da estrofe, depois da chamada para o “exemplo”, o verbo despir. Elas “despem-se pros maridos, bravos guerreiros
de Atenas”. Nenhuma reação destas
mulheres. Aqui tem-se a concordância com o sexo feito passivamente e a
violência dessa atitude conotada pelos “bravos
guerreiros”. Há algo de irônico nesta reiteração constante de tantas
“qualidades” dos maridos. Pois suas qualidades viris deveriam estar também em
função do que suas esposas - simplesmente
mulheres - poderiam esperar deles, já que essa violência não é só
física, mas também as atinge moralmente na sequência dos versos.
“Quando eles se entopem de
vinho/Costumam buscar o carinho/De outras falenas”. Falenas é uma
espécie de borboleta noturna. No caso, a alusão da imagem fica clara: seriam
outros “casos”, a procura por prostitutas.
A alusão ao estado alcóolico dos homens é feita com certa ironia
novamente: “se entopem de vinho”,
pelo uso de entupir. “Mas no fim da noite, aos pedaços”, a
adversativa mas no início do verso mostra a consequência negativa das
ações anteriores, quando estão “aos
pedaços”. E “quase sempre voltam pros
braços/De suas pequenas/Helenas”. Apesar do “quase”, conotando aí, na linha
do “mas”, se não a decadência desses homens, uma prática corriqueira dessas
bebedeiras, farras e amores bem machistas.
O adjetivo pequenas parece funcionar
em sentido mais carinhoso, da voz e do ponto de vista do narrador, quase
apiedado por essas mulheres sofredoras. Outra leitura a ser feita é a
referência à “pequenez” da situação da mulher, inferiorizada e humilhada.
Também o substantivo helenas leva a extrapolar dois significados. Os
gregos, também chamados de helênicos, da antiga Hélade, atual Grécia, daí o
feminino e pluralizado helenas referindo-se às mulheres, em geral. Além disso é uma
referência também a Helena de Tróia, cuja beleza a todos apaixonava e que tão
trágicas consequências trouxe àquela cidade grega. Mas nesse caso são mesmo as
mulheres comuns, até por que são as “pequenas
Helenas”.
Há um espaçamento musical maior entre essa estrofe e as demais. Acredito
que o efeito não seja só pelo conjunto harmônico da melodia, mas porque,
mostrada a situação dessas mulheres e percebido aquele efeito sutil e simpático
às mulheres de Atenas em sua condição feminina, ultrajadas, esse espaçamento
parece sugerir talvez uma mudança de atitude ou uma reflexão sobre tudo que se
mostrou.
A seqüência narrativa prossegue, sempre na terceira pessoa do discurso.
Portanto, decorrente do sexo conotado nas estrofes anteriores, após o verso
inicial da chamada para o “exemplo”, elas “geram
pros seus maridos, os novos filhos de Atenas”.
São mães, mas não para elas mesmas ou para os filhos, senão para os
maridos, numa função meramente reprodutiva. Esta completa ausência de afirmação
feminina é constatada óbvia e melancolicamente: “Elas não tem gosto ou vontade/Nem defeito nem qualidade”. Além da
anulação (negativas não e nem) de si mesmas, observa-se a
ausência de qualquer alternativa.
São apenas escravas, quietas, submissas.
A
dose continua: “Não tem sonhos, só tem
presságios”. Decorrente de sua situação, elas não têm direito a nada,
sequer a sonhar. O clima de tragédia persiste no ar, acompanhando o desenrolar
do texto. Esses presságios são os pressentimentos, o agouro que sempre apareceu
nas lendas gregas (oráculos, pitonisas, sonhos etc.) e que acompanham
justamente “o seu homem”, a sua vida
e suas aventuras. São os agouros de “mares,
naufrágios” e ainda o amor de outras mulheres em terras alheias: “Lindas sirenas/Morenas”.
Sirenas aqui significando as “sereias” que, como se sabe, tinham
no canto (sirena) o poder de encantar os humanos e fazê-los atirarem-se às
águas, enfeitiçados. Canto e mito se personificam em “morenas”. A alusão é também feita à lenda de Ulisses e ao episódio
da Ilha de Circe, na Odisséia de
Homero.
Quinta estrofe:
O “exemplo” continua em relação aos “presságios”
anteriores, pois elas, as mulheres de Atenas, “temem por seus maridos, heróis e amantes”. Tudo gira em torno
deles, heróis (os que executam as
ações e os mitos) e amantes (os que amam, elas ou outras).
O destino trágico dessas mulheres se evidencia ainda mais na conotação
do temor da perda de seus homens: “As
jovens viúvas marcadas/E as gestantes abandonadas”. Mulheres jovens
sujeitas à própria sorte: viúvas marcadas porque já não são virgens.
Umas e outras, no entanto, aceitando mais uma vez o destino que lhes é imposto,
sem escolha, ainda: “Não fazem cenas”.
Interessante que só aqui, nesta estrofe, na gravação original do autor,
aparece o acompanhamento de um coro feminino. Sabe-se como o coro faz parte
intrínseca do teatro grego. E aqui o coro acompanha o cantor somente em: “As jovens viúvas marcadas/E as gestantes
abandonadas/Vestem-se de negro, se encolhem/Se conformam e se recolhem”.
Esse pequeno conjunto de vozes femininas enfatiza a mensagem, a
conformação à própria tragédia pessoal.
O luto, a seqüência de verbos “se
encolhem, se conformam e se recolhem” num crescendum de atitudes passivas, caracterizam uma involução do ser
humano. Tanto que se recolhem “Às suas
novenas/Serenas”. Só lhes resta orar, sem maiores mágoas, daí porque o serenas,
já que nada realmente resta a fazer, pois nada há a ser feito.
Observe-se que também as estrofes são em novenas, isto é de 9
versos, quase uma alegoria dessa situação perto do fim, desse ritmo de ladainha
ou de carpideira.
Sexta e última estrofe:
Dístico conclusivo, o “exemplo” das “mulheres de Atenas” só pode ser
mesmo a morte sem alternativas, neste final narrativo. “Secam por seus maridos, orgulho e raça de Atenas”. Secam:
pior que a morte talvez, um definhamento inumano. E fazem tudo isso, até a
própria morte “por seus maridos”, leitmotiv de suas vidas. Reitera-se em
versão final o epíteto da primeira estrofe: “orgulho
e raça de Atenas”. Completa-se portanto o ciclo: “”vivem” até “secam”.
Em termos de ritmo sonoro, a canção termina sem maior grandiloquência,
brevemente, um canto quase réquiem.
Essencial, parece, é o clima da tragédia implícito e
colhido como tema e pretexto. A condição feminina, ultrajada e por isso mesmo
trágica, sem solução, é mostrada em seus aspectos evolutivos, no ciclo de uma
vida comum, sem a nobreza de grandes realizações, esta sim reservada aos
homens, aos aventureiros e donos de seus destinos.
Nada se sabe também do funcionamento desta canção dentro do contexto da
peça, cujo nome “Lisa, a mulher
libertadora” parece abordar a condição da mulher, não se sabe em que tempo
ou espaço. Mas, no tempo e espaço de hoje, qual é a verdadeira situação da
mulher? Não teriam também elas o mesmo destino trágico, de subserviência e
passividade das “mulheres de Atenas”? E
essa condição não se torna atemporal e universal?
A nosso ver, esse “exemplo” age pois como
uma espécie de tomada de consciência às avessas, na reiteração da condição
humilhante e oprimida da mulher comum, da mulher do povo. Mulheres de Atenas,
gregas ou não, universalizadas nessa condição.
Portanto, o “exemplo” das mulheres de Atenas não é um exemplo a ser
seguido ou imitado, mas um exemplo que, mostrado em sua nudez cruel, quando o
autor reduz praticamente a nada essa mulher, age ou pretende agir inversamente.
Não é assim que age o reflexo do espelho, quando miramos nele?
Além de uma estruturação altamente elaborada, como se pôde observar, nota-se
seu funcionamento também enquanto texto artístico. A canção popular vista não
apenas como cultura de massa, efêmera e sem maiores consequências, mas como
arte que chega mais facilmente às massas. Ainda que seu público seja limitado
pela estratificação social, refinamento cultural, poder aquisitivo e pelas
condições do mercado distribuidor de discos, fitas e Cds, merchandising e corrupção
quase que generalizada nas emissoras e programas de rádio e TV.
Não é assunto deste trabalho agora, mas lembrar apenas o complexo maior
de algumas implicações para a canção popular chegar até ao público ouvinte,
receptor ou interessado.
Gostar ou não gostar é também fruto
cultural de toda uma política e uma intenção. Portanto, até os preconceitos
contra o gosto popular ou as preferências eruditas devem ser analisadas dentro
de um contexto mais amplo.
Finalizando, Mulheres de Atenas,
de Chico Buarque e Augusto Boal, artistas múltiplos e que têm uma carreira “engajada” na
realidade nacional, mostraram, neste texto em particular, não só a abordagem de
uma problemática atualizadíssima sobre a situação da mulher comum e suas
consequentes reflexões sobre essa possibilidade de conscientização, como de um texto artístico
verdadeiro e criativamente construído, unindo palavra e música, num todo
carregado de significação.
·
CÂNDIDO, Antônio. A crise de liberdade na Literatura Brasileira. Entrevista na
revista Banas no. 1109,
São Paulo, Ed. Banas, 1975, p. 42/45.
·
POUND, Ezra. ABC da Literatura. S. Paulo,
Cultrix, 1970.
·
VERNANT, Jean-Pierre. Mito e pensamento entre os gregos. S. Paulo, DEL/USP, 1973.
·
Dicionário
de Espanhol-Português. J. M. Almoyna., Porto Editora Ltda., Lisboa, 1974.
·
Pequeno
Dicionário da Língua Portuguesa. Aurélio Buarque de Holanda. Rio, Civ.
Brasileira, 1969, 11a. ed.
*
A palavra “cadenas” existe em português
com o sentido de “modo de tirar, sem
perigo, dos chifres do touro o laço que o prende; entrelaçamento dos pares na
dança do fandango. (Do cast. cadena).” É interessante notar que há
vários “espanholismos” no texto: mirem-se, cadenas, sirenas, falenas são
todas palavras de uso idêntico também em espanhol.
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