A PESQUISA E O DETALHE:
A CARDABELA NA IMAGEM DE
SÃO JOÃO DO
CARNEIRINHO
Elisabet Gonçalves Moreira[1]
Para Dominique e Jean
de Poudevigne
São João do
carneirinho: imagem de domínio público, sem autoria.
Embora as festividades do São João no calendário de festas
religiosas tradicionais em nosso país tenham mudado muito – e é natural que
isso aconteça na dinâmica dos tempos – esta imagem do São João menino com seu
carneirinho ainda permanece e está instaurada na memória coletiva. Parte
integrante das práticas rituais e dos costumes, ela é de tal modo popular que
extrapola seu sentido como imagem de devoção.
Invariante, constata-se a presença central do menino, nesse
caso em meio corpo, com cabelos cacheados e uma auréola dourada, vestido
parcamente com uma pele que pode ser de camelo ou de carneiro, um ombro nu,
segurando um cajado fino de madeira que ostenta a faixa com os dizeres em latim
“Ecce Agnus Dei” (Eis o Cordeiro de Deus), um filhote de carneiro branco apoiado
em seu braço, com um fundo que, geralmente, lembra uma noite de céu estrelado
e, na parte inferior, nuvens e um arranjo simétrico de flores. Este conjunto,
como se fora um altar, dá a conotação religiosa de que a imagem necessita para
ser venerada, além das paredes da igreja paroquial.
Venho trabalhando há alguns anos com esta representação, de
cunho popular, e sua simbologia. Já escrevi e apresentei partes dessa pesquisa,
incluindo um trabalho comparativo com pinturas do mesmo tema de mestres consagrados
na arte universal. Mas, neste momento, apresento basicamente um artigo, tomando
um detalhe para exemplo de que o método, que leva ao conhecimento e à
interpretação, traz também revelações e coincidências inesperadas.
Partindo de algumas premissas metodológicas, desde o
princípio de que, mesmo uma imagem é um texto, e que ele pode ser lido, isto é,
decodificado dinamicamente, onde tudo é significativo, destaco a análise
semiótica e suas correlações interpretativas, de um modo menos acadêmico para
um artigo simples.
Assim, o detalhe a ser analisado é a cardabela (língua
occitana) ou cardabelle (francês) a flor que aparece na parte inferior da
imagem, no centro do buquê florido, rodeado de galhos floridos em nuances de um
rosa forte. Há certas conexões ao se fazer uma pesquisa que nos proporcionam
não só conhecimento, mas o prazer mesmo de compreender seu significado e como a
ele chegamos. O que implica em também associar o detalhe com o todo, nesta
dialética da interpretação, da leitura e da narrativa a nos desafiar.
I. A cardabela representada
Essa imagem de São João do carneirinho, hoje digitalizada e
de domínio público, sem autoria, teve sua origem, certamente, em uma ilustração
para os “santinhos” católicos bastante difundidos na Europa ocidental e em nosso
país, nos séculos XIX e XX. Quando comecei a fazer a leitura sígnica dos
elementos constitutivos desta imagem, não identifiquei de imediato que flores
eram essas e isso ficou pendente.
Entretanto, numa viagem ao sul da França, em 1992, meus
olhos viram a cardabelle ou cardabela e o alumbramento se deu. Em
uma vila histórica, dos tempos medievais, vi, nas portas das casas, a cardabela em destaque. Mas eu a vi
também no chão, nativa, no campo, no tempo mais seco.
Cardabela seca Cardabela no solo Cardo mariano
A cardabela não existe no Brasil, que eu
saiba, mas pode ser comparada ligeiramente a algumas espécies de “sempre-vivas”, flores típicas do cerrado, já
que secas, são também duradouras e usadas para ornamentação. No vasto planalto
de Larzac, sul da França, cardo é
também outro nome para a flor desta planta selvagem tipicamente mediterrânea e
que pertence à família das alcachofras. Como o girassol, ao se abrir, de um amarelo
claro, ela tem a particularidade de captar a luz solar e se fecha quando cai a
umidade e chega a chuva. Por isso ela é tida como uma espécie de barômetro,
para previsão metereológica. Os pastores, criadores de ovelhas, também colhiam
a flor da cardabela pelo seu miolo
comestível e usavam as folhas espinhosas para desembaraçar a lã de seus
rebanhos.
Sobretudo
– e é esse detalhe do detalhe - diz-se que a cardabela, quando seca, é um amuleto de boa sorte e felicidade. Ela
serve também para espantar os feitiços e as bruxas ao ser colocada com fé na
porta da casa e na entrada dos celeiros e dos estábulos, para proteger os
animais. É pois muito significativo que
a cardabela seja o símbolo de toda a
região.
As
outras flores do ramalhete também são classificadas como cardo, de folhas espinhentas, encontradas facilmente por toda
Europa, à beira dos caminhos, em solos mais secos. Acredito que seja um
cardo-mariano, embora haja muitas espécies dessa planta. Sua inforescência, cor de
rosa ou púrpura, atrai principalmente abelhas e isso é fundamental para os
apicultores. Também caule e folhas são comestíveis e têm vários usos
medicinais.
E o
que elas estão fazendo no quadro de São João do carneirinho, se não esta
correlação simbólica para homenagear um santinho, mediador de nossas preces e
bons augúrios na vida terrena, como mostrar isso aos fieis (e a uma
pesquisadora brasileira) a constatação
da origem desta imagem?
Sem
dúvidas europeia, mais precisamente francesa, outras pesquisas paralelas
mostraram que, mesmo que não tivesse sido impressa em “imprimeries” (gráficas)
do sul da França, a matriz é de lá, um protótipo padrão. Todos os componentes
da imagem se inscrevem numa tradição que consolida a representação de um São
João ainda menino, uma criança modelo de virtude, primo de Jesus, bem diferente
das representações de São João Batista adulto, batizando o Cristo ou decapitado
pelo capricho de Salomé, como relata a Bíblia.
II. A cardabela e a poesia
occitana
Em
outra ocasião, ganhei de um amigo francês, que mora perto de Montpellier, sul
da França, um belo livro. “La Cloche D´Or”, cuja tradução literal é “O sino de
ouro” com a foto em destaque da cardabelle
na capa, já que a edição é francesa. Difícil fazer a indicação bibliográfica
deste livro, mais um álbum, pois não possui ficha catalográfica e tem vários
“patrocinadores”. [2]
O
prefácio do livro é esclarecedor. Belas fotos, clichês para cartões postais e
textos que complementam as imagens. E há um questionamento sobre o título que
mostra a importância simbólica desta flor para a região. Um signo que realça a
beleza da luminosidade solar, iluminada pelo poema de Max Rouquete, escritor
assumidamente occitano.
Na
página 58 encontramos a grande homenagem à cardabela. Primeiro na língua
occitana, tão parecida com as línguas ibéricas, quando falada, sem o sotaque “carregado”
dos franceses do norte. Mesmo os franceses reconhecem essa diferença dos
sotaques.
Na
página ímpar, a seguir, a “tradução” para o francês moderno, do mesmo autor.
Entre
a língua occitana e o francês moderno, me atrevo a fazer uma tradução literal,
para maior entendimento do texto e da poesia nele implícita.
CARDABELA – Cardabela, rosa verde/ e roda dentada,
/relva solar nascida ao rés do chão /dos amores da terra e do sol.
Arrancada pelo vento do inverno/ tu te lembras que roda
tu és./ E roda, porque tu rodarás/ pelas clareiras e planícies,/ livre, liberta
de qualquer lugar,/ como a roda da desfortuna.
Como a coruja e o morcego,/ na porta a gente te prega,/
de cara com teu pai o sol./ Teus dedos sobre teu coração se fecham/ e se abrem.
Morta, vives. / A cruz traz a imortalidade.
E tu existes, na claridade, a mão aberta como a mão
eterna dos velhos tempos.
Observação: No verso “A cruz traz (ou faz) a
imortalidade” há um componente imagético subliminar. O símbolo da Occitania é
uma cruz, como se pode ver a seguir, relacionada também com a história das
cruzadas medievais da região. Lembra a
cardabela?
III. A língua occitana: relações
ampliadas
De
detalhe em detalhe, algumas poucas relações que viabilizam caminhos e possibilidades de leitura. Quando se estuda
a história da língua portuguesa ou da literatura portuguesa, herdeiros que
somos de nossa história de colonizados, aprendemos a importância do latim clássico
ao latim vulgar, cruzado que foi na formação das línguas ibéricas. E em uma
delas está a língua occitana.
A
Occitania ou Provença nos leva também à lembrança da poesia e da música dos
trovadores que escreviam e cantavam “em maneira de proençal”, ou seja,
provençal. O Trovadorismo está fincado nas raízes da literatura brasileira até
hoje, seja em textos consagrados, seja na poesia popular. Afinal, bem sabemos,
a intertextualidade é um fato onde tradição e modernidade se mesclam e dialogam
a todo instante. Por que não no imaginário?
E,
além disso, retorno à introdução deste artigo, quando falei de revelações e
coincidências. Ganhei outro livro. Desta feita de um ex-aluno, hoje colega e
pesquisador de cordel.
RELIGIOSIDADE POPULAR
França e Pernambuco: Diálogos, expressões e conexões de Silvério Pessoa (São
Paulo, Fonte Editorial, 2016).
Quer
melhor título do que esse? Embora o autor, também músico, Silvério Pessoa, não
cite a cardabelle em sua dissertação
de mestrado, a temática só confirma o que foi dito. Ele mostra, através de sua
pesquisa, que a o catolicismo europeu foi introduzido pelo Mediterrâneo e
acompanha “diálogos, expressões e conexões” entre França e Pernambuco, pelo
viés da religiosidade popular. E faz uma citação da qual aproveito um
fragmento.
“A
religião popular é um dos elementos de uma cultura popular que permaneceu na
França – especialmente no sul – autônoma até cerca de 1860. (...) Religião popular,
ou seja, religião vivida, vivenciada por muitos
(...) em oposição a uma religião prescrita, oficial. Uma e outra
caminham em ritmos diferentes.” (p. 79)
Como
justificar, no caso de nossa imagem, por exemplo, sua colocação nos mastros enfeitados
das festas juninas? Ou como referência e elemento decorativo nas procissões e até
nas quadrilhas? Os fogos e foguetes de
São João remetem também à imagem que se associa a outras histórias, a das
fogueiras, das “simpatias” e seu simbolismo agrário. Embora estas festas,
espalhadas pelo Brasil, tenham grandes diferenças entre si, a marca do afeto,
da religiosidade ali vivida é ainda singular e prazeirosa.
Mastro de São
João enfeitado com fitas, flores artificiais e laranjas.
Na
imagem de São João do carneirinho, constatamos portanto que a cardabela ali reproduzida não é uma flor
qualquer, aleatória. Signo da terra, ela é mais do que uma homenagem ao
santinho, ela revela, muito além do catolicismo dogmático, toda a mística de
seu poder ancestral, “dos velhos tempos”. Uma reverência ao renascer, “morta, vive”,
como diz o poema. Traz benesses, nos protege e nos mostra uma tradição também
viva, que pode ser liberta nas entrelinhas, ou melhor, na leitura sígnica da
imagem/texto. E na fé de seus devotos.
Evidentemente
que este detalhe – e muitos outros - tem que ser estudado e pensado no conjunto
do elementos da imagem. Em processo, este estudo continua. Não há análise que
esgote uma interpretação, seja de que caminho metodológico for. A história, o
momento, o olhar variam no seu conjunto e na visão pessoal do pesquisador.
[1]
Mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP. Professora
aposentada da UFPE e do IFSertão de Petrolina, PE.
[2] LA CLOCHE D´OR – Aspects, Êtres et Choses, de la Moyenne Vallée de L´Hérault et de ses environs. Photos Harold Chapman – Claire Parry – Textes Max Rouquette. (Ouvrage publié avec le concours de: Conseil Général de L´Hérault et d´autres offices. I.S.B.N. em cours © Bibliothèque 42. 34150 GIGNAC) s.d.
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ResponderExcluirRealmente, a presença da cardabela não é aleatória, embora possa ter significações diferentes. Poderia representar a flor mais ao alcance do criador da imagem, a mais comum em sua região ou a de que ele mais gostava. Já o pesquisador pode se encarregar de descobrir causalidades que, diferentes dos motivos do criador, tendem a dar um sentido mais universal a essa presença: uma leitura da flor em formato de sol, o misticismo em torno dela, o santo, o resultado da junção de elementos etc. etc., por exemplo. É como se o universo do criador, particular em sua escolha, se “universalizasse” em outras perspectivas, possibilitando induções e deduções que talvez se encontrem ou se fundam em algum ponto.
ResponderExcluirLembrei-me de um breve curso de Marcus Accioli aí em Petrolina. Ele analisava o poema de Drummond “E agora, José?”, e eu lhe perguntei: “por que José e não Pedro, João....?” Não memorizei a resposta dele (outras perguntas se cruzaram). Mas entendo (hoje) que, eufônica, prosódica e até familiarmente, perguntar “E agora, João?” (nome tão popular quanto José) não faz o mesmo efeito no conjunto do poema, embora gramaticalmente tudo se justifique. Talvez com outra flor, que não a cardabela, fosse assim também, mesmo possibilitando outras analogias. É possível à poesia (do texto escrito ou do retratado) ir além de todas as conotações.
Ainda me lembro de Fernando Pessoa (Alberto Caeiro) nestes entrecortes:*
“Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia...
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.
O rio da minha aldeia não faz pensar em nada
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.
Pelo Tejo vai-se para o Mundo.”
“O Guardador de Rebanhos”. Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993).
Obrigada querida amiga. Excelentes observações. A análise "gerativa" em seus significados múltiplos, bem ao gosto da Semiótica pierceana complementam teoricamente o que disse...
ResponderExcluirSão João do Carneirinho - Cardabela
ResponderExcluirComo é prazeroso ler um texto dessa natureza. Tão diferente dos textos que tenho lido nos últimos tempos, com investigações e críticas com uma profundidade tão grande que chegam a molhar os calcanhares das formigas. Quanta generosidade! Um texto denso e generoso calcado numa perspectiva cultural e antropológica. A leitura de uma imagem para além de seu mero funcionamento ornamental. Para além da mera decodificação de palavras e signos. Para além das palavras e as coisas como escreveu um dia Michael Foucault. Para além dos paradigmas da religião e da filosofia com suas pretensões de apresentar as verdades universais, eternas e imutáveis, ossificadas como uma múmia num sarcófago, as quais vigoraram durante muitos séculos como paradigmas religioso e filosófico, com as raríssimas exceções das insurgências de Martinho Lutero e Santo Agostinho, Nietzsche, Spinoza e (talvez) Montaigne, respectivamente. O que vemos aqui é a experiência a partir da experiência de uma flâneur. Isso me fez lembrar do Michael Foucault fazendo pesquisa, método e história a partir de uma pesquisa, método e história. Para além da meta-história como escreveu um dia Hayden White. A cardabela saindo do seu estado de mero ornamento na imagem de São João do Carneirinho para se tornar viva e pulsante no interior de uma história e poesia rica e ancestral…colocando em xeque a apresentação do real pelo real como queriam os realistas mais embrutecidos e inflexíveis… Uma leitura para além da leitura, para além de sua composição espacial e imagética, alimentando com isso novas maneiras de ver o mundo e suas possibilidades de significações… Algo que também me fez lembrar do quadro de Velásquez – “As Meninas” – e das colagens no quadro de Picasso feito na primavera de 1913 – “A garrafa do velho Marc” –, que em grande medida foi uma das grandes provocações para o mudar algumas concepções artísticas e alimentar as possibilidades do que poderia vir depois na arte do século XX e XXI… A cardabela para além de sua representação popular e simbólica, quando seca, no solo e cardo mariano: o sol, o campo, o alimento diário, as atividades manuais e pastoris, a religiosidade popular e suas formas ancestrais de vida e existência… os laços entre os oceanos…a religião e a cultura popular entre as nações e povos… Diante de todo esse passeio imagético, experiencial e antropológico, vale também ressaltar a humildade de uma pesquisadora que tem consciência de sua hipótese temporária e fragmentada diante de uma totalidade inapreensível, em meio a interpretações inesgotáveis, deixando com isso brechas para novas visões e possibilidades de diálogos outros, no horizonte de partilhar o sensível em meio a dinâmica da história, dos tempos, da mudança para outros oceanos e leituras…
O “t” pode até ser mudo, mas a voz de Elisabet tem muito eco e ecoa lá no horizonte, a fim de encontrar novos corpos inquietos para diálogos outros, mesmo diante de um mundo que pouco ou quase nada escuta… Gratidão por tamanha generosidade!!! m.t.
Querido Marcos Torres, obrigada mesmo. A ler agora num quarto de hotel, nesta sexta-feira santa, quando finaliza o I Colóquio "Religiões ontem e hoje: abordagens antropológicas e psicanalíticas" na UFMA, em São LUiz do Maranhão. Apresentei um trabalho sobre São João do carneirinho mas completamente diferente deste, com outro viés, o da proposta do encontro. Aqui minha apresentação foi também mais elogiada que questionada. Mesmo fora da universidade me sinto segura... Nossa, sua aprovação para este texto me anima, me indica... Caminhos e citações que nos desafiam. Obrigada mais uma vez.
ExcluirTenho uma imagem, em madeira, de origem portuguesa, do século XIX que pertenceu á minha bisavó paterna que representa São João do Carneirinho. Hoje, véspera do dia de São João, publiquei uma foto do "meu" (por herança) São João do Carneirinho na página do Grupo Coisas que o tempo levou, do qual sou moderadora, no Facebook. Pesquisando sobre São João do Carneirinho, vim bater nesse blog e fiquei muito feliz com o que encontrei aqui.
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