Elisabet Gonçalves
Moreira
Queria ter a concisão e o talento de Tchékhov para reabrir
este caso, tido como “Um Caso Encerrado” por meu ex-professor Boris
Schnaiderman[1].
Sim, porque o texto de Boris no livro “O mundo coberto de jovens” funciona como
um conto de Tchékhov, dado que, naquela noite em que a repressão policial bateu
na nossa sala de aula, na Universidade de São Paulo, em 1969, estávamos
analisando um conto de Tchékhov. E ele
estava impregnado do poder da literatura que a reviveu ao narrar o fato.
Éramos então poucos alunos do curso de Russo e tínhamos aula
à noite numa sala pequena, em torno de uma mesa, no prédio de História e
Geografia. A recordação dessa noite foi tão forte que Boris Shnaiderman inicia
seu texto remetendo àquela aula que ficou também em minha memória, porque ali
estava e fui testemunha.
“Uma das lembranças mais gratas da minha atuação como professor
de Língua e Literatura Russas da Universidade de São Paulo liga-se a momentos
que passei estudando com os alunos o conto “Brincadeirinha”[2],
de Tchékhov. (...) Eu ia pensando nesses e em outros exemplos, parado, giz na
mão, diante da lousa com o trecho escrito em russo. Mas, quando estava tão
embevecido com meus exemplos literários e os alunos também (estávamos, pois,
naquele momento ótimo da transmissão de um texto), ouvi alguém bater à porta,
nos fundos do prédio de História, na Cidade Universitária, onde tínhamos
aquelas aulas, e que permanecia sempre fechada.
Contrariado por esta interrupção, pedi a um dos alunos que
abrisse aquela porta. Apareceram, então, dois indivíduos de paletó e gravata,
cada um com um revólver grande na cintura.”
Pediram nossos documentos de identidade, mas o Boris,
irritado, fez, como ele mesmo diz, “um discurso violento” e foi levado preso,
depois que chamaram outros policiais, incluindo um com uma vistosa metralhadora.
Mas de que me lembro com nitidez foi a ousadia do Boris – e
ele não se lembrou disso – ao se dirigir para os policiais que entraram que
“respeitassem a autonomia universitária”, como se isso fosse possível. Ele estava mesmo
zangado pois balançou o dedo na cara do policial. Claro que a coisa não poderia
acabar bem... O cara da metralhadora pegou a carteira de identidade e disse
ironicamente “Só podia ser russo”... embora o professor fosse naturalizado
brasileiro. Naqueles tempos de ditadura militar russo era um palavrão, sinônimo
de comunista e perigoso para o sistema.
No ponto de vista do relato de Boris, acompanhamos a cena
com suspense. E suspense vivemos nós, alunos assustados naqueles tempos de
terror.
Levaram o nosso professor e nos deram ordens para ficarmos
encostados à parede, com os braços erguidos. Fizeram uma revista, tocando em
nossos corpos, mais do que deveriam. Éramos poucos, não me lembro bem, mas não
chegávamos a dez pessoas, a maioria moças. Como eu, então com 23 anos.
Disseram que não saíssemos dali. Não podíamos ver o que
acontecia, pois a sala era pequena. Mas dispararam um tiro. Havia duas grandes rampas de acesso ao andar
superior do prédio e realmente isso impedia a visão. Pronto, pensamos, mataram
o Boris...
E aí aconteceu um fato: ainda com as mãos na parede,
sentimos um cheiro esquisito. Uma das moças havia urinado nas calças ou talvez
até se sujado. Então soube que isso, sim, era possível, “cagar de medo”.
Mas o medo foi dando lugar ao que havia de ser feito. Havia
silêncio, já era tarde, depois de 10 da noite, e saímos da sala. Preocupados,
soubemos que o Boris estava vivo e fora levado para o Dops, o temível
Departamento de Ordem Política e Social, perto da Estação da Luz.
Então decidimos, nosso pequeno grupo, ir até a casa de Boris
para avisar Regina, sua esposa. Já não havia mais ônibus neste horário e fomos
bem apertados num fusquinha de uma das colegas até o bairro de Santa Cecília. Lembro-me
que eu estava com o coração aos pulos, com as emoções daquelas últimas horas.
Porque o medo continuava, sabíamos que podiam torturar e matar no Dops,
notícias de todos os dias, mesmo a boca pequena.
Subimos até o apartamento do professor. Regina nos atendeu
e, às vezes, agora, tenho até vontade de rir, porque a reação dela foi
exatamente o oposto do que se esperava. Ela ficou muito brava, disse coisas que
“esse Boris não tem jeito”. Míriam e Carlos, seus filhos, apareceram
sonolentos. Mas Regina disse que ia avisar algumas pessoas, incluindo Dom Paulo
Evaristo Arns e, se me lembro bem, Gofredo da Silva Teles, advogado. Nomes que
tiveram lugar na denúncia das arbitrariedades policiais e repressivas da época.
Um pouco mais tranquilos, voltamos para nossas casas.
O resto daquela noite, o Boris nos relata, assim como Aurora
Fornoni Bernardini, também amiga, em seu Discurso de Saudação na Outorga do
Título de Professor Emérito a Boris Schnairderman, pela Universidade de São
Paulo, em 2001, que eu guardo, entre muitos outros materiais e livros que o
Boris me enviou, morando eu em Petrolina, desde 1976. Boris voltou para casa
“são e salvo” como soubemos depois, após sua prisão.
“Em todo caso, assim se encerrava mais um capítulo de minha
relação com as autoridades constituídas.” Parágrafo final de seu relato.
[1]
Depoimento/conto/causo no livro Um mundo
coberto de jovens/organização Benjamin Abdala Júnior. São Paulo: Com-Arte,
2016. “Um Caso Encerrado” de Boris Schnaiderman, p. 41-47.
[2]
Este conto pode ser lido on line com o nome Brincadeira, sem indicar a
tradução. http://www.baratosdaribeiro.com.br/clubedaleitura/2009/01/15/%E2%80%9Ca-brincadeira%E2%80%9D-de-tchekov/
Impresso em livro:
Kaschtanka E
Outras Histórias De Tchekhov – tradução de Boris Schnaiderman e Tatiana
Belinky.
São Paulo: Boa Companhia, 2014.
Na foto abaixo, Boris (1917-2016) e eu, em setembro de 2010, em seu apartamento em São Paulo. 41 anos depois deste fato. Uma amizade que atravessou décadas. Um carinho e lembranças que reabrem memórias...