“Seu dotô, só me parece
que o sinhô não me conhece,
nunca sabe quem sou eu,
nunca viu minha paioça,
minha muié, minha roça,
e os fio que Deus me deu.
Se não sabe, escute agora,
Que eu vou contá minha história,
Tenha a bondade de uvi:
Eu sou da crasse matuta,
Da crasse que não desfruta
Das riqueza do Brasil.”
Patativa do Assaré, Cante lá que eu canto cá (Petrópolis,
Vozes, 1978, p. 114)
Que voz é essa do poeta que tanto apela em seu cantar? Não
é uma invocação às musas como na poesia clássica, mas a um “dotô” em outro polo
da comunicação, voz chamada às falas,
generalizada em seu aspecto distintivo, como um sinhô, sem cara ou nome. Um
sinhô que nunca soube atender esse apelo histórico num país de desigualdades e
contrastes.
Percebo que estes signos de apelo não são destinados tão
somente à consciência de um receptor imaginário, mas à consciência do próprio
autor, tradição e memória, enquanto eu coletivo. Embora voz nomeada em sua
autoria, uma poética oral não mais anônima - Patativa do Assaré é Antônio
Gonçalves da Silva - revela também uma forma de marcar presença no mundo e caracterizar
esse mesmo mundo em que ele vive.
E é este mundo em que ele vive, onde vive seu receptor
imediato, o do momento da declamação do poema, de sua escuta. Paul Zumthor[1]
me lembra sobre a performance da
oralidade “O ouvinte espectador espera, exige que o que ele vê lhe ensine algo
mais do que simplesmente o que ele vê, revele-lhe uma parte escondida desse
homem, das palavras do mundo.”
E é essa leitura de mundo que atende o assim chamado
poeta popular. Não é só a identificação
de classe social, mas da enunciação emotiva e poética de um porta-voz dessa
mesma classe. Haveria neste apelo, pela voz dos oprimidos, um equívoco da
função poética no sentido de sua função social como dominante? Rosemberg Cariry
responde: “Patativa do Assaré consegue, com arte e beleza, unir a denúncia
social com o lirismo.[2]
Os aplausos do seu público são merecedores dessa conjugação de funções e de sua
dinâmica.
Zita Alves, poeta de Petrolina, mas cearense de origem
como Patativa, morando no distrito de Vermelhos, em Lagoa Grande, na fazenda
Ouro Verde, distribuída para o MST, também apela para uma variedade de
receptores, referências generalizadas, mesmo quando nomeadas. Alguns versos
desta mulher sofrida e sensível valem ser lembrados. E, esperamos, ter sua obra
divulgada e estudada, já que tem 10 livros inéditos, primorosamente
datilografados por ela própria.
“Apelo da Nordestina”, escrito em 1982, é
exemplar neste tema.
“Seu governador do estado
A coisa aqui ta pior
Sempre tenho trabalhado
Pra vida ficar melhor
Eu pego a foice, e o machado
Vou bem cedo pra o roçado
Pra brocar a macambira
Trabalho sem resultado
Eu já não falo em calçado
E a roupa? Que virou tira?”
Aqui, uma seleção de
fragmentos, nessa função apelativa.
“Deus do céu, olhe o Sertão.”
“Meus filhos escutem
Os meus bons conselhos”
“Dona Compesa eu te rogo
Que mande logo esta água
Para o desprezado bairro
Que não tem água encanada.
...
Dona Compesa repare
A nossa calamidade
Olhe que este bairro sofre
Sofre mesmo de verdade.”
“Boa noite, seu Vigário
Eu vim pra me confessar,
Mas não sei se é meus pecado
Que eu quero le contar,
Pode até ser o estado
Do mundo ser como está”
“Olhe aqui, seu professor
Analise o meu caderno
Fiz o que o Sertão criou
Sobre o verão e o inverno
Só não descrevi as flor
Do nosso Sertão moderno.”
“Santo Antônio Pequenino
Ou Santo Antônio Viajante
Me dê um casamentinho
Que já perdi a esperança
Quero casá no domingo
Ou quando chegar as festas
Se eu me casá este ano
Eu agradeço a sua oferta”
Se apelar é “invocar proteção ou testemunho”, o homem ou
a mulher do sertão, da periferia da cidade, espera das autoridades um olhar
efetivo sobre suas dificuldades. Mesmo convivendo com elas, tem consciência das
limitações de seu protagonismo. Na verdade, quer ser ouvido, ser social
historicamente alijado, mas presente.
Esta mediação entre o eu, poeta popular até o outro,
generalizado em seu apelo, seja o doutor, a entidade pública, o vigário, o
coroné, o Poder enfim, se dá através de vários índices. Assim, o apelo, função
conativa da linguagem, na classificação linguística de Roman Jakobson, funciona
como pretexto para a expressão do eu coletivo, diria mesmo épico em sua
representação.
Observem que o uso do vocativo é feito de uma maneira
muito respeitosa, sem agressividade. O apelante, vamos chamá-lo dessa forma,
não é nem o leitor/ouvinte explícito. É apenas uma referência, já que ele nunca
estará presente. A função social da literatura e do poeta é evidente nestas
intenções. Mas é assim que funciona no senso comum sua capacidade de expressão,
seu mundo invisível, longe do poder constituído. E por ele esquecido...
Algumas vezes em que tive ocasião de ouvir Patativa e
outras “cantorias”, os poemas pessoais, intimistas, mais curtos inclusive, não
são declamados em público. Poemas narrativos ou jocosos são sempre bem
recebidos. J.Borges, por exemplo, com a
leitura de seus folhetos é sempre um sucesso.
As reações do leitor ou do receptor são predeterminadas
pelas estruturas de apelo. Elas precisam do receptor para adquirir sentido e
significação. Não é mais só o artefato artístico isoladamente, mas sua condição
de vivência como obra de arte.
Assim,
se projeta o sentido ali depositado em palavras, vozes que ainda insistem em
fazer poesia e dar testemunho. Ouvidos moucos são daqueles que percebem, mas
fingem não perceber, a existência desse mundo escorraçado. Mas tudo tem seu
tempo, a história dos oprimidos está em processo neste país e ainda há esperança.
“Quero um chefe brasileiro
Fiel, firme e justiceiro
Capaz de nos proteger,
Que do campo até a rua
O povo todo possua
O direito de viver.”
Patativa do Assaré, primeira
estrofe do poema “Eu quero” em Cante lá
que eu canto cá (Petrópolis, Vozes, 1978, p. 116)
https://www.youtube.com/watch?v=PLPp_tlWvUM
(Petrolina,
março de 2015. Refeito em junho de 2018.)
Nenhum comentário:
Postar um comentário