Minha alma curiosa está sempre a estabelecer pontes...
conhecimentos e informações relacionadas, um desvelar de enigmas e histórias a
preencher os dias em desafios. Gosto disso, dessa sincronicidade que surge como
uma maravilha do cotidiano e, talvez, do além dele.
Assistindo pela TV à série Hinterland, disponível na
Netflix, vejo, no primeiro episódio, com o nome “Devil´s Bridge” ou Ponte do
Diabo, essa referência que despertou minha curiosidade e que vai se relacionar
não só com a história, como a toda a série (três temporadas completas), de
forma bem significativa.
Traduzido do inglês - Hinterland - Y Gwyll - na
versão original em língua galesa - é uma série de drama policial noir,
ou seja, um policial mais psicológico, com aspectos mais humanizados nos
conflitos e menos tiroteios, perseguições pelas estradas e outros estereótipos
do gênero. A tradução de hinterland é interior, e é ali que se passa,
numa cidade interiorana do país de Gales, à beira mar, com um enfoque sobretudo
nas pequenas propriedades rurais, no entorno da cidade, onde geralmente
acontecem os crimes e as investigações.
A Ponte do Diabo /
Pontarfynach em Ceredigion, País de Gales, apresenta três pontes construídas
uma em cima da outra. A ponte original data de 1075–1200, enquanto a segunda é
uma ponte de pedra do século XVIII. Ela foi colocada em cima da primeira quando
se acreditava que não era mais estável. No século 20, a última parte da ponte
foi adicionada para reforçar toda a construção. A altura é considerável até as
corredeiras abaixo.
Não conheço esta ponte, mas imediatamente me lembrei de
outra ponte do diabo, na França, que visitei em uma viagem no ano de 2014. E
uma geração de associações foram ativadas.
Ponte do Diabo, sobre o rio
Herault, nas proximidades de Saint-Guilhem-Le-Désert, sul da França; foto de
minha autoria. A ponte mede 50 metros, foi construída entre 1028 e 1031, pelos
monges de duas abadias próximas, de Aniane e Gellone, que controlavam ambas as
margens do rio. Considerada uma das mais antigas pontes medievais
francesas, Patrimônio Mundial pela UNESCO, faz parte do Caminho de São Jacques
de Compostela na França, desde 1998. Este caminho tem relação com o Caminho de
Santiago, com várias indicações para os peregrinos.
Minha amiga francesa contou a versão conhecida da lenda no
lugar. Como invariante dessas lendas, acontece o pacto com o diabo a fim de
construir a ponte, já que parecia impossível ser construída por mãos humanas. O
diabo aceita construir a ponte, mas quer, em troca, a primeira alma que a
atravessasse. Aí aparecem algumas variantes, histórias da tradição oral, mas o
fato é que a ponte é construída - geralmente em uma única noite - e o diabo é
enganado, pois o homem ou a mulher, com muita esperteza, faz um animal
primeiramente atravessar a ponte.
Em outras versões, o diabo se
comprometeu a construir a ponte em uma noite, antes do amanhecer um galo
canta; o diabo, acreditando que o dia está raiando, deixa cair a última pedra e
desaparece. Normalmente, esta última pedra ainda está faltando. Isso justifica
também os solavancos que podem ser sentidos na travessia da ponte.
Para cada ponte do diabo há uma
história particular. A tradição oral está perpetuada no nome, na simbologia e
nos mistérios de nossa humanidade.
Encontrei, na web, outra história desta ponte, um diálogo
singular entre o demônio e São Guilherme (Saint Guilhém). Coloco a versão
traduzida e adaptada no final deste texto.
Só na França existem dezenas de “pontes do diabo”, assim
como em toda a Europa. Tanto as pontes como as lendas que as cercam estão
catalogadas na classificação de AArne-Thompson, número 1191, o diabo logrado.
No Brasil não existem pontes do diabo, mas em Portugal, com muito mais séculos
de história, sim, há.
E por que elas ficaram conhecidas como pontes do diabo? São
pontes muito antigas, do tempo romano e da Idade Média, construídas com pedras,
numa engenharia que causa admiração, pois o perigo das águas, dos abismos e
desfiladeiros desafiam a imaginação. Como foi vencida esta dificuldade?
O imaginário se pôs a justificar. Só pode ser obra do
demônio...
Até me pergunto, por que não obra de Deus? Bom, Deus está
muito ocupado com coisas intangíveis e não com construções. Aliás, o diabo está
mais próximo de nós do que pensamos...
Voltemos ao episódio da série, com alguns elementos que se
relacionam nesta leitura. Não se preocupem, não vou fornecer o nome do
assassino e ser uma estraga-prazeres (spoiler). O foco subliminar está
no mal e no bem, essa dualidade que nos caracteriza e nos acompanha, na vida e
na ficção, interfaces em desatino.
Sempre há uma morte para desencadear a história. Na casa da vítima, uma idosa, o detetive, que
chegara de Londres, recolhendo pistas, vê um quadro no chão com o vidro
quebrado. Aliás, este quadro vai aparecer em outras paredes e episódios, também uma conexão e um mistério a ser decifrado.
Salem – pintura
de Sydney Vosper, datada de 1908, representando uma cena dentro da Capela batista
de Salem, em Pentre Gwynfryn, Gwynedd, País de Gales.
A parceira do detetive, que é da localidade, logo esclarece
também o detalhe mais significativo da pintura. É que, no xale da figura
principal do quadro, vestido com o traje nacional galês, aparece a figura do
diabo. A avó lhe havia mostrado quando criança e ainda sente medo. O detetive –
e eu – também não consegue ver. Será que olhamos direito?
Pesquisei e essa representação é bem polêmica. Reproduções em massa dessa pintura foram feitas em todo o início e meados do século 20, tornando-a famosa, um ícone de Gales.
Observe o quadro a seguir: é assim que se identifica o diabo
na pintura... Como o próprio detetive afirma mais adiante “Fica muito claro
quando você sabe o que procura”, apontando os detalhes no quadro.
A detetive diz que, na localidade, ameaçavam as crianças de
serem levadas à ponte se não comessem verduras, por exemplo, ou se comportassem
mal. Intrigado, o detetive pergunta o
porquê do nome de ponte do diabo. A parceira então sintetiza a lenda da ponte
que reproduzo aqui, a partir das legendas do episódio.
“Um dia, uma senhora e sua vaca ficaram separadas. Ela
estava em um lado do rio e a vaca estava no outro. Enquanto ela estava pensando
em como resgatá-la, o diabo apareceu e se ofereceu para construir uma ponte.
Mas isso custaria a alma do primeiro que a atravessasse. Ela aceitou. Na manhã
seguinte, lá estava a ponte. O diabo disse: “Eu cumpri minha promessa, agora
cumpra a sua.” A senhora pegou um pão do seu cesto, jogou do outro lado da
ponte e seu cachorro foi buscá-lo.
- Então o diabo foi enganado por uma senhora?
O diabo ficou tão constrangido que nunca mais voltou a
Walles.
- Alguns dizem que ele nunca foi embora.”
Como bom detetive, ele vê marcas de sangue no parapeito da ponte, desce até às corredeiras e encontra o corpo da idosa assassinada. Detalhe: todos os dentes lhe haviam sido arrancados.
Gosto muito destes índices simbólicos que aparecem e nos
fazem refletir. Mesmo que tenha sido uma vingança, uma retaliação contra a
megera, neste caso, ter os dentes arrancados é perder a força agressiva, a
energia vital, uma tortura terrível.
Os conflitos da história são entre uma educação religiosa
puritana e os atos que profanam essa mesma educação, merecendo castigos cruéis,
sádicos. Inclusive, o fato de a idosa assassinada ter sido levada para a Ponte
do Diabo é também analisado pelo detetive. “Se você for o diabo”, leva-a para
casa.
Intrigou-me também o fato de que, nas imediações do antigo
lar infantil, encontra-se uma espiral celta, feita de pedras, simbologia da
jornada entre a vida e a morte. Naquele lugar fora enterrada de modo
clandestino uma bebê, para despistar a mãe e resguardar o local. Evidentemente
que, em uma narrativa, cinematográfica ou não, todos os índices fazem parte da
dinâmica da trama.
Há, portanto, muitas referências da presença do mal, dos
“perigos do pecado”, para justificar os abusos e castigos às crianças
abandonadas que viviam no lar infantil. Não só o quadro da pintura desencadeava
as piores lembranças, como o “hard room” ou quarto do isolamento, a cela
solitária como a conhecemos, um purgatório para expiar as culpas. A própria idosa acreditava estar fazendo o
bem, era muito devota. Afinal, por que ela fora assassinada? Por quem? Qual o
motivo?
Aí é assistir ao episódio, ou à série toda, três temporadas,
e descobrir você mesmo.
O que desejo ressaltar aqui é o imaginário coletivo, lendas
e referências da tradição oral e histórica que dialogam na ficção e fornecem a
trama para outras narrativas.
Assim, a Ponte do Diabo, que narra uma das muitas histórias da
tradição oral em que o diabo foi enganado, nos faz questionar também o alcance
de seus poderes. Ora, ele é um engenheiro tão poderoso para construir uma ponte
em uma única noite, mas é enganado por alguém mais esperto, de uma forma jocosa
e humilhante. Parece até que ele não é assim tão mau. No exemplo, o diabo vai
atender a uma mulher que perdeu a vaca, sem dúvida uma pobre camponesa.
No conto popular, já se observou, o diabo às vezes parece
mais um ser humano do que um personagem agressivo. Isso está em contraste com as
doutrinas da Igreja, que o retratam como uma criatura demoníaca horripilante,
sempre à espreita para nos levar ao inferno, a cair em tentação. Essa
ambiguidade é interpretada sob os mais variados aspectos, desde o fato original
de ter sido um anjo expulso do paraíso. Para você acreditar no céu, você tem
que acreditar no inferno, isto parece óbvio.
“A noite acabou e o dia chegou. Vamos descartar as obras
das trevas e vestir a armadura da noite.” Romanos 13:12
Esta citação bíblica aparece no filme, um recado deixado
pela vítima em seu papel de catequese, no qual acreditava e se justificava.
Não é objetivo deste trabalho, para um blog em tempos virtuais, ir a fundo em questões tão polêmicas. Historicamente falando, a essência do Mal é reconhecida em toda e qualquer cultura, e sempre existiram tentativas de personificá-lo. É preciso reconhecer o papel do simbolismo religioso que nos oferece uma dimensão mais profunda da realidade. Vejo, com preocupação, o fanatismo que procura invalidar as tradições orais e seu poder de encantamento e catarse lúdica, de uma memória coletiva que subjaz em nosso inconsciente e cultura.
A humanidade atribui sentidos a fatos do cotidiano, a obras de natureza de procedência invulgar, desconhecida, onde não consegue estabelecer razões sensoriais. Também é essa a justificativa para os mitos que surgem a partir da necessidade de se explicar a origem das coisas. As lendas são narrativas que se inserem nesta realidade fantástica. Modificam-se, atualizam-se, mas continuam a desafiar nossa maneira de ver e compreender o mundo.
E assim continuamos a nos questionar. Atravessemos as pontes
de nossa subjetividade com a paixão pelo conhecimento... Amém!
Elisabet Gonçalves Moreira
Petrolina, 1 de setembro de 2020
...ooo0ooo...
A lenda da ponte do
Diabo
Os monges das abadias de Gellone e Aniane, situadas às margens do rio Hérault, não poupavam esforços para a construção de uma ponte sobre o rio, na foz das perigosas gargantas da planície. Porém, todas as manhãs, notavam que a obra realizada na véspera fora sistematicamente destruída. As duas congregações monásticas logo perceberam que o projeto era sabotado. Pedem então a proteção de seu padroeiro Guilhem que, uma noite, decide ir sozinho ao local para prender possíveis criminosos.
Depois de algumas horas, postado à espera, Guilhem percebe que o Diabo, disfarçado em uma fantasia de cabra preta, está destruindo o trabalho na ponte. Guilhem então o chama:
"Satanás, eu te reconheci em
seu ridículo disfarce. Por que você destrói o trabalho de meus irmãos desta
forma? "
- "Eu não me importo com os
negócios de seus cães servos na terra. "
- “Satanás, em vez de nos
confrontar aqui, vamos tentar resolver nossa disputa de forma inteligente.
"
- "Pela primeira vez,
concordo com você Guilhem! Então me escute com atenção. Eu proponho construir
uma ponte mais sólida em três dias. Em troca, você concorda em me entregar a
alma de um de seus cães servos. Aquele que cruzar primeiro a ponte será meu e
levarei sua alma comigo até o fundo dos abismos do inferno. "
Sem responder às provocações do
Diabo e com estas garantias, Guilhem retrucou:
- “A alma de um dos meus cães
servos! Você não poderia dizer melhor Satanás! Vamos nos encontrar aqui em três
dias e três noites, quando você tiver construído a ponte."
Com essas palavras, Guilhem
voltou para a aldeia.
Três dias e três noites se
passaram e chegou a hora de Guilhem e seus companheiros voltarem à ponte para
ver o final da obra. Chegando à orla do local, Satanás lhes dá as boas-vindas,
alegre com o trabalho que acabara de concluir e com a ideia de levar consigo
uma alma humana. Ele então se dirigiu a Guilhem nestes termos:
- "O trabalho está
terminado. Cumpri minha parte do trato. Agora cabe a você dar o que me prometeu.
"
Guilhem tirou um osso da jaqueta,
jogou-o pela ponte e o cachorro, que estava ao lado dele, atravessou a ponte.
Enquanto o Diabo não entendia a manobra, Guilhem exclamou:
- "Satanás, veja que eu
respeito meus compromissos. Três dias atrás você me pediu a alma de um dos meus
cães servos. Bem, aqui está o mais fiel de todos. "
- "ARRRRGH !! Guilhem !!
Você me traiu. Minha vingança será terrível! "
Em sua raiva, o Diabo tentou
destruir a ponte, mas, tendo prometido isso da forma mais sólida possível, não
conseguiu. Finalmente, percebendo que não poderia se vingar, ele se jogou,
apesar de tudo, nas águas do Hérault e cavou um abismo negro em sua queda.
Às vezes, em tempos de inundação,
a raiva do Diabo parece despertar e seus gritos surgem do fundo do abismo.
É assim que, por muitos e muitos
anos, peregrinos e pessoas, cruzando a ponte, carregavam pedras para jogá-las
no rio na esperança de deixar o Diabo lá.
https://www.saintguilhem-valleeherault.fr/la-legende-du-pont-du-diable
Rico em conhecimento da historia da humanidade a Europa nos deixa ver esta nitidez de cultura religião e muita escravidão humana.
ResponderExcluirGostei do texto
Desconhecido amigo, obrigada. Gostaria de saber o nome...
ExcluirBet,texto massa o teu: uma narrativa acerca de outras narrativas. Não sabia a história dessas pontes do Diabo. Muito bom. Abraço
ResponderExcluirOutro desconhecido? Obrigada pelo incentivo... quem será?
ResponderExcluirUuuuaaaii, Bet! Ainda bem que aqui, no Recife, quem comandou a construção da Ponte...
ResponderExcluirfoi Maurício de Nassau!
Um abraço!
Liliana
Adorável Liliana, seu bom humor inaugura esta manhã... obrigada
ExcluirAmo o jeito como você se entrega ao seu imaginário e as pesquisas sobre qualquer coisa que lhe deixe intrigada, vó! Obrigada por tanto! Beijos!
ResponderExcluirObrigada querida Sofia, não sei se isto é bom ou mau, mas mantém meu cérebro ativo... rsss
ExcluirAmo o jeito como você se entrega ao seu imaginário e as pesquisas sobre qualquer coisa que lhe deixe intrigada, vó! Obrigada por tanto! Beijos!
ResponderExcluirIdem...
ResponderExcluirNão conheço a série, nem sabia de associações entre pontes e o diabo. Para mim, pontes em si são metáforas dos ritos de passagem.... sempre levam a mudanças. A par disso, ingressando na tradição oral, lendas e mitos nos formam (ou formavam noutros tempos, outros mitos) para além das simples considerações teóricas das narrativas, ou seja, independentemente de a racionalidade teórica explicar, o sentimento e a “visão” deles não só ficam como preenchem. Lembra-se das representações sociais naquele dia lá, no Clisertão? Pois é..Mas seu texto me fez repensar (porque meu pensamento é insistente neste ponto) sobre “mitos” atuais que forjam imaginários....Tem que ter aspas, porque falta a substância narrativa por trás deles. Aí eu me lembro de tanta coisa e fico pensando o que meus netos estão perdendo nesse sentido, embora com ganhos outros que não suprem aqueles...faltou a ponte..... Dessa parte eu não gosto, confesso (rsrsrsrs). Bacio.
ResponderExcluirIrene sempre em considerações outras, passagens por pontes e mudanças de perspectiva. Obrigada.
ResponderExcluirVerdade....Acho que estou na contramão da banda..rsrsrs. bj
ResponderExcluirVerdade....Acho que estou na contramão da banda..rsrsrs. bj
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
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