Boris Schnaiderman foi admirador e amigo pessoal do poeta
Guenádi Aigui, divulgando sua poesia no Brasil. Para mim e para alguns leitores
deste blog a descoberta de um grande poeta, desafios de leituras, reflexões e o
prazer desse alcance. Seguimos.
Em abril de 2011 foi lançado o livro Guenádi Aigui – Silêncio
e Clamor, traduzido por Boris Schnaiderman, agora com a parceria de Jerusa Pires
Ferreira, publicado pela editora Perspectiva, de São Paulo.
Poeta tchuvache: Guenádi Aigui (1934-2006)
(Ah, pelas referências na Parte I, dedico a Anélia Pietrani)
Talvez agora ler, em voz alta, um poema de Guenádi Aigui. E
depois, seu “autorretrato”, um depoimento tocante sobre o fazer poético e a
vida, indissociáveis. O que conhecemos da literatura e seus artistas?
Silêncio
1
no clarão
da angústia desfeita em pó
conheço o desnecessário como os pobres conhecem a
roupa última
e os velhos trastes
e sei que este desnecessário
é o que o país precisa de mim
confiável como um acordo secreto
o calar-se como vida
e para toda a minha vida
2
no entanto, o
calar-se é doação, e para mim mesmo: o
silêncio
3
acostumar-me a tal
silêncio
que seja como o coração que não se ouve bater
como a vida
que pareça um de seus lugares
e nisso eu sou – como a Poesia é
e eu sei
que meu trabalho é árduo e existe para si mesmo
como no cemitério da cidade
a insônia do vigia
1954–1956
(Tradução:
Boris Schnaiderman)
Fragmentos do autorretrato de Guenádi Aigui. Memórias da vida em desafios e conflitos, sobretudo na então União Soviética, mas o poeta crê em seu ofício e nele se consagra. Um caso exemplar para refletirmos no agora e em nossas circunstâncias.
Sobre mim mesmo
sucintamente
Nasci na Tchuváchia, num povoado com florestas sem fim, ao redor. Parte da minha
infância (1939-1941) decorreu na Carélia, de onde a nossa família, durante a
guerra, foi enviada de retorno à pátria. As impressões da Carélia encontraram
expressão, bem recentemente, no ciclo dos meus versos sobre a infância.
Aigui é o sobrenome de nossa gente, conservado desde os tempos do paganismo, em
tradução ele quer dizer "aquele mesmo".
Em meus primeiros versos escrevi muito sobre meu pai, o culto infantil e
juvenil do pai se expressou também no meu primeiro livro de versos.
Dezenas de lembranças vivas estão ligadas a meu pai. A par dos relatos de minha
mãe, elas testemunharam ter sido ele um homem extremamente sociável e
expansivo, amigo das improvisações e das mistificações inocentes. Ele concluiu
uma faculdade operária tchuvache e ensinava língua russa e literatura numa
escola. Sua sociabilidade não entrava em conflito com seu nomadismo: não
conseguia trabalhar no mesmo povoado mais de dois ou três anos; deste modo, a
minha primeira infância decorreu em diferentes povoados tchuvaches, tártaros e
morduínos. Somente depois da morte de meu pai eu soube que, na juventude, ele
se empolgara com a criação poética. Vários de seus poemas entraram em
coletâneas tchuvaches.
(...)
lembrava-me de como meu pai cantarolava com frequência aqueles versos de
Púschkin: "A tempestade cobre o céu de treva [ ... ]" lembro-me
também de que, ficando em casa sozinho, eu tinha medo do retrato de Gógol,
pendurado acima do armário de livros.
(...)
Meu pai foi morto em combate em
1943, nas proximidades de Smolénsk.
(...)
Voltando da Carélia, residimos em nosso povoado, no sul da Tchuváchia. Havia
ali duzentas casas, deixaram de voltar da guerra para lá perto de trezentos
homens. Falando daqueles anos, eu não posso deixar de me referir ao trabalho
penoso dos habitantes, à fome de 1946 e aos meus colegas de classe, muitos dos
quais não conseguiram concluir o curso secundário.
No povoado havia poucos livros, logo eles estavam todos lidos. Lembro-me de um
caso: pedi à direção do kolkhoz brochuras quando estivessem sobrando.
Ficou- me na memória uma delas: instruções para o combate ao gorgulho nos
depósitos. Era difícil também conseguir livros na sede do distrito, onde eu
depois cursei a escola normal. Até o outono de 1958, eu não tinha lido nenhum
poeta russo do século xx além de Maiakóvski.
Esses anos e os seguintes ligam-se em minha memória, viva e dramaticamente, até
à dor, com a imagem de minha mãe. Sua morte prematura coincidiu com o período
em que fui vítima de ataques violentos na imprensa e em manifestações verbais.
Minha mãe era meu único amigo, que compreendia plenamente as razões pelas quais
eu defendia tenazmente minha concepção do dever de criação.
O seu comportamento no cotidiano lembrava o aperfeiçoamento moral de um artista.
A seriedade e o que havia de profundo em seu íntimo, a relação inquieta com
tudo o que havia de vulgar e superficial destacavam-na dos demais, que me
cercavam desde a infância.
O meu avô materno foi o último sacerdote pagão de nosso povoado, esta atribuição
era transmitida por herança. Minha mãe conhecia bem os ritos pagãos, que eram
recusados, mas não proibidos pela Igreja. Ela e sua irmã conheciam muitas
orações e esconjuras pagãos, minha mãe os lia frequentemente a meu pedido.
(...)
Vou falar sucintamente sobre o
período ulterior de minha vida, já mais próximo de nós. Ingressei em 1958 no
instituto literário de Moscou. (...) E,
pensando no início de uma autoconsciência séria, eu sempre lembro em primeiro
lugar de Mon coeur mis a nu (Meu Coração Desnudado) de
Baudelaire e O Nascimento da Tragédia de Nietzsche.
Em 1956, eu conheci B. L. Pasternak, a relação amistosa comigo foi mantida pelo
poeta até sua morte. Ao contrário de opiniões expressas frequentemente, tenho
certeza de que a poética de Pasternak não exerceu influência sobre mim. E sobre
a influência de sua personalidade, extraordinariamente forte e inesquecível, eu
só poderia falar depois de me preparar como criador. A estrutura dos meus
versos da juventude está ligada com a produção da mocidade de Maiakóvski.
Para caracterizar meus versos desse período, vou transcrever um trecho do
prefácio que escrevi para eles mais tarde:
"Nos últimos anos, pensando na criação poética em termos de
desenvolvimento dos recursos poéticos, adivinhando a diferença entre os que
constroem e os que refletem, eu não procurei voltar aos meus primeiros versos.
Refletiram-se neles aqueles traços de juventude que, numa idade mais madura,
começam a parecer perniciosos para a arte. Acrescentou-se algo pessoal ao
romantismo inerente aos versos juvenis: o trabalho com o verso aparecia para
mim, antes de tudo, como a obtenção de material poético. O olhar de fora sobre
a língua russa, que me ajudou nos primeiros tempos, tinha que desaparecer.
Eu escrevo em russo desde 1960. O primeiro leitor que aprovou os meus textos
foi Nazim Hikmet, que já me havia aconselhado, assim como Pasternak, a escrever
nessa língua".
(Escrito em russo para a revista tcheca Svet Sovetu)
O Povo como Templo
e as almas que nem
velas se acendem uma a outra
Aldeia
de Romáchkovo
6 de janeiro de 2002, véspera de Natal
ah, vai mais um,
porque fiquei de fato arrebatado:
Jardim-Tristeza
é
(talvez)
o vento
que inclina – tão leve
(para a morte)
o coração
1994
(Tradução: Jerusa Pires Ferreira
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