I. Que mulher é esta?
Agnieszka Wrzosek - An illustration for K Mag magazine #51, march 2013 (https://cargocollective.com/agiewu/Anna-Karenina)
Entre centenas de ilustrações que pesquisei, destaco esta da artista polonesa contemporânea, Agnieska Wrzosek, para uma revista essencialmente feminina, K Mag magazine, com foco em filmes, música, design de arte e moda.
Figurativa, com certo ar fashionista, notam-se vários
índices da leitura sobre a personagem Anna Kariênina, do livro de mesmo nome,
de Liev Tolstói. O desenho aparece no início da revista, ao lado do sumário, ilustrando
o teor jornalístico e informativo do periódico. O que faz Anna K. neste espaço?
Solitária, sem a aparência condescendente de certo padrão de beleza da mulher russa, a vemos recostada em uma chaise longue sobre um piso xadrez, com um leque de abano em uma das mãos, um chapeuzinho do final do século XIX, um vestido que a cobre inteiramente, deixando o colo livre, adornado com um colar de várias voltas. A estamparia do vestido lembra girassóis espelhados, como os brilhos e o glamour das grandes estrelas do cinema em seus vestidos de gala. Há uma simbiose entre a estampa do vestido e a chaise longue. Posicionada de lado, há certa ambiguidade na simbologia de um quadril largo, ancas poderosas no imaginário coletivo.
Releitura de Madame Récamier, pose típica da mulher chique, rica
e ociosa. Para o público da revista, pode-se incluir um ar de sensualidade, embora
eu veja também certa arrogância ou enfado.
Qual teria sido o modelo de Anna K. para a ilustração de
Agniezka W.? Revisitando estereótipos, a artista parece ter complementado a
descrição (écfrase) da personagem, como está no livro de Tolstói, a partir do
olhar de Kitty.
“Alguma coisa sobrenatural atraía os olhos de Kitty na
direção do rosto de Anna. Ela estava encantadora com seu simples vestido preto,
eram encantadores seus fornidos braços com braceletes, era encantador o seu
pescoço firme com o cordão de pérolas, encantadores os cabelos encaracolados
com o penteado em desalinho, encantadores os movimentos leves e graciosos dos
pequeninos pés e mãos, encantador o belo rosto com sua vivacidade; mas havia
algo de horrível e de cruel no seu encanto.” (TOLSTÓI, 2017, p. 93)
Esse olhar inaugural atravessa o romance desde o cenário do
baile em que Anna dança com Vrónski e Kitty nota o enlevo dos dois. E é isso
que fazemos até hoje. Todo signo interpretativo existe no tempo. Na cadeia
semiótica, que é a cadeia do tempo, evolutiva, nenhum signo dará conta da
incompletude subjetiva. Qual o encantamento possível hoje?
O uso do discurso indireto livre, em certa medida, isentou o
autor de uma descrição e avaliação de Anna para que isso seja feito pelos
olhares da subjetividade de cada um que atravessar seu caminho ou sua vista.
Uma mulher que não deixa de ser irresistível, nesta aura de encantos que a
envolve, ao lado de um suspense pré-concebido na imprevisibilidade de um mal
anunciado.
Não vejo no desenho do rosto de Anna, na ilustração de
Agniezka, nenhuma meiguice, muito longe do carinho e ternura demonstrados com o
filho ou os sobrinhos. Aliás, ela rejeita a menina que teve com Vrónski, com
poucos momentos de atenção, oscilando entre o estereótipo da mãe amorosa e de
um egoísmo doentio no relacionamento com o amante. Várias faces de Anna se
apresentam no decorrer da história, sem um destaque específico, mostrando-a complexa
e incoerente.
Destaco, nesta mesma página, o corte abrupto da narrativa na
frase final desse Capítulo XXIII, primeira parte. No silêncio desse corte, somos
levados a inferir que Anna está irremediavelmente envolvida com Vrónski, ao desistir
de voltar para sua casa, em S. Petersburgo, como havia dito que o faria. O
signo da negativa reitera uma disposição inevitável para a continuidade da
história de Anna e, subjetivamente, para o sim de seu infausto relacionamento
amoroso.
“Anna Arcádievna não ficou para o jantar e não viajou.”
Mas Tolstói, num lance formidável, nos leva, a seguir, no
Capítulo XXIV, para outra narrativa paralela que se opõe a essa vida falsa e luxuosa
da alta sociedade. Liévin, como protagonista, tem compromissos mais naturais e
afetivos, mais ligados ao campo, fazendo um contraponto crítico na arquitetura
do próprio romance. A relação entre fábula e trama é construída nesses
paradoxos, trazendo o leitor para o caráter folhetinesco em que foi construído
e apresentado o romance Anna Kariênina, na Rússia do final dos anos 1800.
Entretanto, para este trabalho de análise, foco na análise
das representações imagéticas de Anna K. A propósito, intencional ou não, a
ilustração de Agniezka Wrzosek colocando-a sobre um tapete xadrez é o desafio alegórico em qualquer leitura
que se faça sobre Anna K.
II. Lance para um xeque-mate?
Tradução da legenda: “Existe outra mulher em mim. Estou
morrendo de medo dela. Foi ela que se apaixonou por aquele homem. Eu queria te
odiar e não pude. Eu sou real agora, estou completa.”
“Não se surpreenda comigo. Ainda sou a mesma... Mas em mim
há uma outra mulher, tenho medo dela: ela se apaixonou por aquele homem e eu
queria odiar você e não conseguia esquecer a mulher que havia antes. Eu não sou
ela. Agora sou a verdadeira, sou eu toda.”
Doug McLean provavelmente deve ser o autor da ilustração,
como pude verificar na parte inferior da página, não no desenho. Acompanha uma
entrevista da escritora americana Mary Gaitskill para o periódico The Atlantic,
de 3 de novembro de 2015, em uma seção específica By Heart, série
assinada por Joe Fassler em que autores compartilham e discutem suas passagens
favoritas na literatura.
Assim, Mary Gaitskill destaca esta passagem, mostrando como,
em um único momento, Anna Karenina revela o eu oculto de sua personagem. “Anna
está falando sobre as decisões que tomou na terceira pessoa, como se a pessoa
que traiu Kariênin fosse uma estranha. E ela parece estar transformada, como se
tivesse se tornado uma pessoa diferente. Fiquei tão surpresa com isso. Eu penso
nisso como uma visão muito moderna, a ideia de Tolstói de que pode haver duas
ou mais pessoas diferentes dentro de nós.”
Esse “como se” é uma reiteração subjetiva, reveladora de um
discurso interpretativo para uma leitura que considero adequada da passagem em
referência e do desenho, também ele interpretativo, por outro olhar. A típica boneca
russa, matrióska, é utilizada metaforicamente para representar o caráter
essencial da pluralidade da personagem, apontado pela escritora, uma boneca
dentro da outra. O desenho feito pelo ilustrador mostra uma dessas bonecas
caída e a outra boneca inserida na base inicial da matrióska. Essa queda é
mesmo simbólica do caráter em julgamento subliminar de Anna. Em qual boneca
encontraremos a verdadeira Anna? O cruzamento de linguagens interpretativas se
dá também numa geração de significados possíveis.
No romance de Tolstói, este é um momento de grande efeito dramático (a própria Anna acreditava que iria morrer), sendo assistida pelo amante e pelo marido, também destacado por Mary Gaitskill. A metáfora é contagiante, Kariênin também se transforma, Vrónski chora e depois tenta se matar e nós, leitores, também ficamos perplexos e transtornados... Momento único na narrativa, pois isso não irá mais ocorrer. Nem a própria Anna irá se lembrar de que esse foi seu instante epifânico, em que se revelou múltipla e verdadeira.
Associar com o conceito de polifonia de Mikhail Bakhtin é
inevitável em sua abrangência. Cito Cristovão Tezza que, em sua tese sobre
Bakhtin, sistematiza e reitera o ideário bakhtiniano, pois a linguagem,
considerada em sua dimensão de uso concreto, é dialógica em todos os seus
estratos. “No plano estritamente individual, a palavra nasce já sob a sombra de
múltiplas relações; ela é, antes de tudo, uma resposta a uma palavra anterior;
e ela se dirige a alguém, a um centro de valor, diante do qual ela se
posiciona.” (TEZZA, 2003 p. 237)
No jogo intenso da literatura, não dá para encurralar o
grande Tolstói em seu tabuleiro criativo, apenas um lance paliativo e modesto
na compreensão fragmentária de sua grandeza.
III. Em que nível ideológico contrastam e confluem estas duas
ilustrações?
Ambas são traduções/leituras sígnicas da personagem Anna
Kariênina para revistas (magazines), mídias diferentes em seus objetivos e
receptores. Sem dúvidas, esta persona se tornou um ícone da literatura mundial,
adquirindo vida e significado além do romance de Tolstói.
Duas ilustrações em desenhos figurativos, o primeiro, um
retrato artístico de Anna K. e o segundo uma interpretação de uma fala da
personagem, através da boneca matrióska; pelo senso comum, um signo
imediatamente associado à Rússia. São obras bem distintas entre si e do
original. Recepção e criação se dão dinamicamente, tanto na linguagem
escolhida, como no tempo e no espaço.
A consciência da relação dialógica entre o signo e o leitor,
entre diferentes sistemas de signos, evidencia leituras ideológicas
fundamentais como caminhos e vias da interpretação. Nas interfaces, muito além
da oposição verbal x não verbal (não só o suporte ou o rótulo do meio, desenhos,
nesta análise), articulam-se percepções e pontos de vista.
No desenho de Agniezka há uma clara intenção de mostrar Anna
Kariênina como uma referência icônica para uma revista feminina atual, no mito
de uma personagem que atravessa a história, se pensarmos em suas escolhas e
desafios numa época de opressão e de aparências sociais conservadoras. Já na
ilustração da revista americana The Atlantic, a matrióska só se completa na
referência direta à obra de Tolstói, a uma passagem específica e de grande
intensidade dramática. Anna vista como uma boneca, e não como gente, é também
um lance misógino estereotipado.
A bonequinha caída – ou derrubada - é sugestiva, dialogando
com a fala de Anna K., uma legenda que legitima o significante. Realmente a
escolha de uma escritora, Mary Gaytskill, justificada na entrevista como sua
passagem favorita na literatura, é “quebrada” pela ilustração, no julgamento
subliminar de uma condenação moral de Anna K. O significado extrapola,
portanto, leituras em conflito.
Criações ficcionais, plenamente realizadas em sua grandeza
artística, é que são capazes de nos transportar para o mundo real onde o ser
humano dialoga com suas verdades e suas representações.
Como não amar Anna Kariênina e a própria literatura?
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Nota: O julgamento moral de Anna K. parece ser uma
invariante em leituras menos acadêmicas do romance de Tolstói. Por esta razão
explícita e pela baixa qualidade do mangá, de origem japonesa, que adquiri, na
versão em espanhol, com a intenção de também incluir neste estudo, desisto de
fazê-lo. Produzido em 2012, editado em 2017, em Barcelona, Espanha, transmitem-se
apenas os fatos relevantes, ainda que uma análise da intermidialidade seja interessante como estudo desta versão contemporânea.
Pelo índice, ao abrirmos a revista, temos a visão do direcionamento ideológico nestes quadrinhos, assim disposto em 8 partes: A explosão do amor - Paixão - Um amor depravado - A reputação da alta sociedade - Felicidade incompleta - Amor rasgado - O colapso da fé – Epílogo. (www.laotrah.com)
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Referências bibliográficas
PLAZA, Julio. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2013.
TEZZA, C. Entre a prosa e a poesia: Bakhtin e o formalismo russo. Rio de Janeiro: Rocco, 2003.
TOLSTÓI, Liev. Anna Kariênina. Tradução de Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
Referências apanhadas eletronicamente, via internet
Agnieszka Wrzosek - An illustration for K Mag magazine #51, march 2013 https://cargocollective.com/agiewu/Anna-Karenina - agosto de 2021
https://www.theatlantic.com/entertainment/archive/2015/11/by-heart-mary-gaitskill-tolstoy-anna-karenina/413740/ - agosto de 2021
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RESUMO:
Análise de duas ilustrações contemporâneas sobre a
personagem Anna Kariênina para revistas (magazines), mídias diferentes em seus
objetivos e receptores. No final, faz-se referência a um mangá adaptando
a obra de Tolstói. Figurativas, a primeira ilustração é traduzida num retrato
artístico de Anna K. e a segunda remete a uma fala da personagem na obra de
Tolstói, ilustrada através da boneca matrióska; pelo senso comum, um
signo imediatamente associado à Rússia. São obras bem distintas entre si e do
original. Recepção e criação se dão dinamicamente, tanto na linguagem
escolhida, como no tempo e no espaço.
Nas interfaces, muito além da oposição verbal x não verbal
articulam-se percepções e pontos de vista. A consciência da relação dialógica
entre o signo e o leitor, entre diferentes sistemas de signos, evidencia
leituras ideológicas fundamentais como caminhos e vias da interpretação
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Nota de esclarecimento:
Este trabalho foi escrito para seminário e avaliação final (mesmo que eu tivesse sido dispensada!) do curso “ANNA KARIÊNINA”: POÉTICA, DIALOGISMO E TRADUÇÕES INTERSEMIÓTICAS" que fiz como aluna especial no Departamento de Letras Modernas da Universidade de São Paulo, no segundo semestre de 2021 (aulas virtuais) com a professora Elena Vássina e o professor Biagio D´Angelo.
Petrolina, 8 de agosto de 2021.
Excelente como tudo que vc tem escrito até hoje. Gratidão pela partilha ....é sempre uma grande oportunidade para aprendizados. Confesso que não conhecia nada de Anna Kariênina até ler o texto escrito por vc. E que bom nos permitir aprender sempre. Buscar é viver....se sentir viva fazendo algo de novo é muito bom para a nossa autoestima . Parabéns pelo texto!
ResponderExcluirObrigada amigo (des)conhecido... tenho uma pista de quem seja, mas de antemão agradeço o comentário. E leia, sim, Tolstoi...
ExcluirBet, excelente análise! Sei que esta obra representa muito para você. Tentei seguir seus passos e lê-la na adolescência, mas desisti. Amei o filme recente com uma das minhas atrizes favoritas, Keira Knightley. Aprendemos muito com Anna sim. Na sua análise gostei como você destacou o "ar de arrogância e enfado," a matrioska e suas várias bonequinhas (nossa essência, lá dentro!), e a frase "Agora sou a verdadeira, sou eu toda." Estes exemplos (e os signos que vc analisou) captam muito bem a complexidade da personagem, que nos oferece reflexo/identificação com nossa complexidade universal como mulheres, humanos. Aplausos para você!
ResponderExcluirObrigada querida Juliana, sempre atenta às entrelinhas mesmo de uma análise acadêmica... o filme é excelente, outra linguagem, mas sempre vale a pena o olhar que temos ou desenvolvemos sobre as grandes obras. Então, leia Tolstoi agora...
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