“Livro destrincha obsessão humana por histórias”, texto de
Helio Schwartsman, na Folha de São Paulo on line, de 24/7/22, me motivou a ler
e escrever... Ou, pelo menos referendar algumas histórias que, nos últimos dias,
me instigam a encontrar um receptor. Abro com esse despertar e relato depois o
desdobrar possível em outras histórias.[1]
Sim, a humanidade sempre contou histórias e gostou disso.
Signos verbais ou não, desde narrativas em desenhos nas paredes, lendas e mitos
fazem parte do que somos, da cultura que nos pertence. O texto de Helio Schwartsman
inicia com a questão, talvez tirada do livro ou de seu aporte de estilo. “Qual
é a história mais antiga do mundo?” Provavelmente a façanha de perseguição a
uma grande presa que termina nos céus, no mito da Caçada Cósmica.
O colunista nos informa então que essa história consta de
"The Science of Storytelling" (a ciência de contar histórias),
de Will Stor,
na pretensão de ser um manual de composição literária, mas que, em sua opinião,
é “uma obra cativante para quem apenas tenta entender o fascínio humano por
mitos, histórias e até fofocas.”
Como não li o livro de Storr, fico com as inferências de H. Schwartsman,
como o fato de que, ao nos envolvermos com as histórias, estas se tornam um
veículo privilegiado de aprendizagem e persuasão. Enfim, um gosto pela ficção
que faz parte de nossa realidade, no fato mesmo de sermos humanos.
E, agora, o meu gosto por estas leituras, viajando pelo
imaginário como na figura a seguir. Acredito que você a tenha visto em algum
livro de história do Brasil ou artigo didático. Ela sempre me encantou, seja
pelo movimento, pelo insólito na maneira de montar e guerrear destes indígenas
cavaleiros, histórias de um mundo que não vimos, urbanos que somos e estamos.
Ataque da cavalaria Guaicuru (Charge de cavalerie Gouaycourous) 1834 - Litogravura original de Jean Baptiste Debret (33 x 22 cm)
Alguém me destacou até a beleza da tatuagem, mas é na
narrativa subliminar conotada pelo galope dos cavalos, pela posição desses cavaleiros
em que o próprio animal se torna um escudo, que a faz tão instigante e
inusitada, pela inteligência e destreza de quem domina desse modo sua montaria.
A arma que carregam não é mais arco e flecha, agora uma
lança com uma ponta de ferro, sem dúvida aumentando a eficácia no arremesso e
no objetivo esperado. Não existe sela e, sim, uma pele de onça sobre uma
espécie de tecido. Um tecido que também veste o cavaleiro, como se fora um
calção. Há uma rédea na boca do animal, mas o cavaleiro o segura pela crina.
Observa-se também o que parece um estribo, tipo um pedaço de pau, para apoiar o
pé. A composição continua à direita, em outro plano figurativo, numa paisagem
de fundo para esta perseguição de uma guerra entre serras e penhascos.
E que guerra seria essa? Ou guerras? Entre conquistas e
inimigos tribais e, talvez, há quem lembre, uma guerra explícita, a Guerra do
Paraguai, já que nela os Guaicurus atuaram. Como sua localização temporal, 1864-1870,
está fora dos anos vivenciados por Debret, o mito da singularidade e valentia desses
indígenas cavaleiros, nativos desta região “inóspita” e selvagem, já fazia
parte do imaginário dos conquistadores. Muitas histórias então se espalhavam.
Jean-Baptiste Debret (1768-1848) foi um pintor, desenhista,
decorador e professor francês. Integrou a Missão Artística Francesa que veio ao
Brasil em 1816, em atendimento à solicitação do príncipe regente D. João. Aqui
morou vários anos e seus desenhos, na linha neoclássica da época, registraram
cenas, retratos e olhares de nosso país que constituem importante acervo para o
conhecimento da realidade de então. Nunca esquecer, no entanto, que essa realidade
era representada como a via e aprendera Debret, uma concepção pessoal e
acadêmica de sua arte.
Por exemplo, esta cena dos Guaicurus cavaleiros. Claro que
Debret jamais os vira em ação, mas concebeu a cena, certamente através de
relatos e de uma perspectiva até mesmo ideológica. No entanto, conseguiu uma
admirável expressão de dinamismo e de uma narrativa subentendida, de uma
“selvageria” ambígua na caracterização desses guerreiros, uma tribo dos povos
originários do Brasil colonial, de um mundo em que “civilizados” precisavam corajosamente
conquistar, em sua ganância por terras e riquezas. Observei também o “olhar”
tipicamente europeu no título dado à obra, no original de Debret, “charge de
cavalerie”, uma reminiscência de quem também desenhou e pintou na guerra
napoleônica, como consta de sua biografia.
Pesquisando, ficamos sabendo que os primeiros contatos dos
antigos Mbayá-Guaikurus com cavalos aconteceram desde o século XVI. Por
travarem inúmeras batalhas contra colonizadores europeus, rapidamente os
indígenas se apossaram dos animais, domando-os e usando-os para garantir o seu
domínio na região, incluindo outras tribos. Aliás, a organização social deste
povo é também singular, já que os “cativos”, por exemplo, fazem parte de sua
cultura, servindo lhes como trabalhadores e garantindo assim sua vida nômade e
guerreira.
Segundo relato do padre jesuíta José Sánchez Labrador
(1771-1776), que tentou evangelizá-los, "eles conhecem as enfermidades dos
cavalos melhores que as suas próprias. Em seus animais, não usam selas nem
estribos. Montam em pelo, e com um salto estão sobre eles".[2]
Debret certamente teve que adaptar alguns adereços para o suporte da cena que
idealizou. Selvagens sim – como a pele de onça – mas exímios cavaleiros.
“Acredita-se que os Mbayá-Guaikurus tiveram de 6 mil a 8 mil
cavalos sob seu comando naquela época. O que se sabe, porém, é que a tropa foi
bastante usada: só contra brasileiros e portugueses, os indígenas travaram
intensas batalhas por mais de 70 anos, desde a década de 1720 à virada do
século 19.” [3]
Mas é bom referendar uma história mais atual para quem quiser
avançar, entender a situação contemporânea do povo Kadiwéu, descendente dos
guaicurus. Conta-se que, no fim do século 19, foi o imperador Dom Pedro II quem
lhes deu a terra onde vivem ainda hoje, na fronteira do Mato Grosso do Sul com
o Paraguai. A concessão de uma gigantesca reserva seria uma recompensa pelo
apoio de seus antepassados, durante a Guerra do Paraguai.
O fato é que estas terras nunca lhe foram concedidas e, por conta da guerra, eles quase desapareceram, os Kadiwéus foram aqueles que sobreviveram, hoje reduzidos a poucas centenas de indivíduos. Anotando: a grafia do nome Kadiwéu aparece em tantas variantes que é preciso tomar uma como referência. Imagino que a pronúncia também o seja, naquilo que é ouvido. Somente um antropólogo ou um linguista de boa cepa poderia nos indicar corretamente... e contar mais histórias.
Mas, pretendo ir além na motivação desta página. Na geração das
pesquisas, nesse encadeamento bibliográfico que às vezes nos leva a outros
caminhos, quis saber mais sobre os Kadiwéus, cuja história e arte é motivo de
reconhecimento e estudos, por antropólogos, historiadores e artistas.
E, aí, vem a figura e outra história fascinante. Guido Boggiani e a arte dos Kadiwéus, para uma continuação...
[1] https://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2022/07/livro-destrincha-obsessao-humana-por-historias.shtml (Acesso em 24/7/22)
[2]
[3] https://www.bbc.com/portuguese/brasil-50481327 (Acesso em 25/7/22)
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