Continuando... ainda na literatura, José de Alencar idealiza um vaqueiro, ou melhor, um sertanejo que faz um ferro para sua amada e marca corajosamente um boi selvagem na paisagem inóspita de um Brasil colonial... diferente do Fabiano, vaqueiro humilhado de Graciliano Ramos, mais de um século depois. Lembrando ainda os vaqueiros e bois mitificados nas cantigas sertanejas, outro olhar participante.
(...)
Relendo o romance O Sertanejo, de José de
Alencar (1829-1877), ali encontrei a narração de um fato que também ilustra
este trabalho sobre ferros de marcar o gado. Sem entrar em detalhes da estrutura
narrativa ou da ideologia do autor, nesse romance “colonial” de Alencar, o
Romantismo traz subcódigos que exacerbam o “bom selvagem”, até mesmo o realismo
de certas práticas e descrições, como já se observou.
Arnaldo,
o herói do romance, salvador de donzelas cobiçadas, é o protótipo do vaqueiro.
Na voz do narrador: “Essa corrida cega pelo mato fechado é das façanhas do
sertanejo a mais admirável. Nem a destreza dos árabes e dos citas, os mais
famosos cavaleiros do velho mundo; nem a ligeireza dos guaicurus e dos gaúchos,
seus discípulos, são para comparar-se com a prodigiosa agilidade do vaqueiro
cearense.” [1]
Exagero
ou não, na trama, ficamos sabendo do Dourado, um touro selvagem, e que Flor, a
donzela, filha do capitão-mor, amada por Arnaldo, diz com arrogância explícita:
“O Dourado há de ter o meu ferro! Exclamou com um arzinho de princesa que
lhe assentava às maravilhas.” (ALENCAR, p. 161)
Pouco
depois, acompanhamos a perseguição ao touro, como se fora uma caçada da nobreza
europeia. Claro que é Arnaldo quem encontra o touro nas brenhas do sertão e
matas virgens e o domina.
“Apeou-se
e tirou um ferro de marcar, da maleta de couro que trazia à garupa, e a que no
sertão se dá o nome de maca.
Todo o
bom vaqueiro tem seu tanto de ferreiro quanto basta para fazer um aguilhão, para arranjar as letras com que marca as reses de sua
obrigação e as de sua sorte, para dar têmpera à faca de ponta, e até mesmo
para consertar a espingarda.
Arnaldo,
havia anos, fabricara na forja da Oiticica um ferro que representava uma
pequena flor de quatro pétalas atravessada por um F. O feitio era mais apurado
e de menores dimensões do que os ferros geralmente usados no sertão.” [...] Por toda parte, nas rochas, como nos troncos
seculares, ele tinha esculpido este símbolo de sua adoração. Como os
descobridores de novas terras erigiam um padrão, ou fincavam um marco para
tomar posse dessas paragens em nome de seu rei, ele, Arnaldo, na sua ingênua
dedicação, pensava que, daquela sorte, avassalava o deserto a D. Flor, e
afirmava o seu império sobre toda a criação.” (ALENCAR, p. 179)
Seria assim?
O que se destaca, na
descrição do ferro, é o fato de ser uma flor de quatro pétalas atravessada por um F, já que Flor é o nome da donzela. Uma
alegoria do desejo e do ato sexual na posse masculina sobre uma flor mais
delicada, pois “a atravessa”. Essa sombra erótica é subliminar, até mesmo na
delicadeza de ter o “feitio mais apurado e de
menores dimensões do que os ferros geralmente usados no sertão”. A
observação não me parece muito acertada, pois, no livro de registro de ferros
do qual farei referência, podemos ver como esses ferros podiam ser bem
“apurados”. No caso, penso que o autor quis mesmo destacar o romantismo
implícito no amor do vassalo por sua nobre donzela.
É preciso associar também, no
imaginário sertanejo, histórias de animais famosos pela valentia. Isso ficou nas
canções, no “folclore”, como a encenação e narrativas do “bumba-meu-boi”. Uma
aura fantástica cerca a figura de animais glorificados em epopeias
versificadas. Bem menos laudatória, temos a lenda do “Vaqueiro Misterioso”, com
algumas variantes locais. Trata-se de um homem, vestido com gibão de couro
surrado, e um chapéu de vaqueiro sempre à cabeça, que lhe encobre o olhar. Não
se sabe de onde veio nem o que faz.
Aparece nas ocasiões em que há vaquejadas, ferração ou
encontros similares. Devido à sua aparência humilde, torna-se alvo de zombaria
dos demais vaqueiros. Contudo, é o mais ágil deles, um herói que vence a todos.
É aclamado, desejado pelas mulheres, convidado de honra do fazendeiro. Ele,
porém, recusa todas as honrarias e desaparece da mesma forma como surge. Para
Luís da Câmara Cascudo, o vaqueiro misterioso "é um símbolo da velha
profissão heroica, sem registros e sem prêmios, contando-se as vitórias
anônimas superiores às derrotas assistidas pelas serras, grotões e várzeas,
testemunhas que nunca prestarão depoimento para esclarecer o fim terrível
daqueles que vivem correndo atrás da morte.”[2]
E é interessante notar que sobejam loas à personificação
do animal, que, por sua vez, na contramão da cantoria, nela subentende-se a
valentia necessária para subjugar a fera. Mitifica-se assim o herói anônimo em
sua peleja com a fera bruta, um respeito épico.
Cito o belíssimo “Romance
do Boi da Mão de Pau”, de Fabião das Queimadas (1848-1928), impresso no livro Vaqueiros e Cantadores, de Câmara Cascudo,
citado na nota 10. No romance O
sertanejo, de Alencar, ferrado o touro, afirma-se também o romantismo utópico
do autor, pois, num gesto “afetuoso” com o animal, ele o solta.
Esse
orgulhoso e heroico vaqueiro não é assim representado em Vidas Secas de
Graciliano Ramos (1892-1953). Sem dúvidas, é preciso considerar outro contexto,
outra linguagem. No capítulo “Fabiano”, ele é apenas um trabalhador sem teto e
sem gado em seu destino de retirante da seca, mostrada como um flagelo da
natureza e das condições sociais dos que ali vivem.
“Apossara-se da casa porque não tinha onde cair morto,
passara uns dias mastigando raiz de imbu e sementes de mucunã. Viera a
trovoada. E, com ela, o fazendeiro, que o expulsara. Fabiano fizera-se
desentendido e oferecera os seus préstimos, resmungando, coçando os cotovelos,
sorrindo aflito. O jeito que tinha era ficar. E o patrão aceitara-o,
entregara-lhe as marcas de ferro.
Agora Fabiano era vaqueiro, e ninguém o tiraria dali.
Aparecera como um bicho, entocara-se como um bicho, mas criara raízes, estava
plantado.” [3]
O aceite desse
acordo “trabalhista” está na entrega das “marcas de ferro” pelo fazendeiro,
dono do lugar. E a lida do vaqueiro fica implícita. Há mais violência aí do que
propriamente no ato de ferrar o animal. Fabiano é o personagem-símbolo das
relações de poder num mundo que desconstrói o mito do herói improvável, por sua
eterna carência econômica e social, submisso e alienado. Sem perder a grandeza
da literatura de Graciliano Ramos, essa visão do nordestino oprimido acabou estereotipada
e absorvida pelo imaginário como incontestável.
[1] ALENCAR, José
de. O Sertanejo. São Paulo: Edigraf, 1961.
[2] CASCUDO, Luís da Câmara. Vaqueiros e Cantadores. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo, Ed. Da Universidade de São Paulo, 1984. Páginas 119-124