Virgílio
Siqueira - “Poeta; e mais do que isso não quero ser” - foi homenageado em uma
mesa acadêmica na UPE, Universidade de Pernambuco, na 3ª. Semana de Letras de
Petrolina, em novembro de 2023, com o título “Uma poética ao sol e à chuva”. Convidada
que fui, entre outros, apresentei esse trabalho.
Assumidamente
poeta, Virgílio Siqueira é cioso do seu fazer, dessa lida com as palavras.
Sem
dúvidas há muito a se dizer sobre a poesia de Virgílio, natural de Ouricuri, onde
nasceu em 1956, e que fez de Petrolina seu lugar mais assente. Um bom poeta
pernambucano, como o caracterizou Lourival Batista, o Louro do Pajeú, não
confundido com seu xará, o Virgílio italiano.
Sabemos
que a poesia brasileira contemporânea, de modo geral, está num plano de diálogo
e de busca que incluem o sujeito e a maneira como ele se coloca diante do
mundo, já que “aos atentos se revela inteira”, como ele diz em um de
seus poemas. Ao mesmo tempo está inserida na busca pela criação e pela
experiência estética, aliada à tradição e à linguagem.
Seu
volumoso “Vaga-lumear”, uma reunião de mais de 500 poemas, entre outras obras, editado
por ele mesmo, mostra o cuidado com a seleção, a montagem e o visual gráfico. Aliás,
ele se “explica” nas três dezenas de páginas introdutórias, se justifica, se
afirma... Dilemas existenciais sim, mas, sobretudo, coerência e ética em seu mister
de poesia.
Observem
essa foto das páginas 56 e 57, como exemplo preliminar desse cuidado gráfico e
assim destacar a visualidade no branco da página, um índice de leitura.
“Vertigens e vestígios” (página 56), simbolicamente metáforas do sertão em “chamas” e em “chuva”. “Vale-tudo” (página 57) um libelo de xingamentos contra o poeta “fedido”, crítico feroz desses que arrotam poesia como se poetas fossem... Não sei se esse “desabafo” foi contra alguém específico, mas ele “perde a paciência” ... entendemos!
Aqui destaco dois versos porque neles reconhecemos o olhar do poeta “Leveza bruta de paisagem que aos atentos se revela inteira/sem que se revelem aos não eleitos, os seus claros encantos...” E assim possamos acompanhar seu discurso poético.
Entretanto,
Virgílio faz um alerta nesses versos, que até me fizeram repensar a participação em mesa acadêmica, aceita porque validada pelo apreço ao poeta local.
“O livro
de minha vida pode ser aberto
Lido e relido; revolvido e reavaliado
É dentro dele que eu estou guardado
E, dentro dele, secretamente liberto
Levo e lavro a minha vida assim
E devo ter vivido, naturalmente
Meus momentos controversos
Mas, se
quiserem mesmo saber de mim
Dissequem meus versos”
(in “Vida,
minha vida”, página 479, do livro Vaga-lumear)
Que
anatomia teriam os versos onde o poeta pede para dissecá-los? Provocações
metalinguísticas perpassam seus poemas. Fica o desafio... sua extensa produção,
num poeta vivo e atuante, tão próximo de nós, precisa ser mais divulgada,
trabalhada, fruída.
Então, em
minha especialidade, vou tentar “dissecar” um poema de Virgílio, escolha
difícil, mas que me tocou como poesia em primeiro plano. Nos vários sonetos em
que se expõe, este me segurou e prendeu...
Sem
fuga
Da faca
não foge o fio
Nem
foge o rio do leito
O
amor não foge do peito
Nem a
vergonha do brio
A
tristeza do sombrio
A
inveja do despeito
A
frieza do suspeito
Nem a
vileza do ardil
O eco
não foge do grito
Nem a
aflição do aflito
Nem o
martírio da cruz
Crápula
não foge do escuso
Nem
equívoco de confuso
E nem
o lume da luz
(página 232 de Vaga-Lumear)
E tem música, como me avisou
Virgílio, em tempo... https://www.youtube.com/watch?v=YCezR0Td8ZM
Um soneto bem construído, 2
quartetos e 2 tercetos, redondilha maior, ou seja, versos de 7 sílabas
poéticas, rimas no esquema abba nos quartetos; ccd eed nos tercetos, com efeitos
sonoros de aliterações que intensificam o ritmo poético da versificação.
A negação, explicitada e repetida pelo advérbio não, afirma o que nega, um paradoxo que estranha o discurso poético e nos prende a ele. Isso é poesia, isso é literatura. Se “Da faca não foge o fio”, significa, óbvio, que o fio faz parte da faca... Ah, e nesse caso, a gente lembra de João Cabral de Melo Neto, quando diz “uma faca só lâmina” ...
As aliterações reforçam o ritmo nesses sons de fe (faca
foge fio). Essa não fuga que foi alardeada desde o título, também negativa, sem
fuga.
Já no segundo verso aparece outra palavra que aumenta o
significado da negação: nem, que se repete sete vezes no poema. Nesse
caso, analisando morfologicamente, a palavra nem funciona no contexto
como uma conjunção aditiva se observarmos sua correlação de sentido com o não
explicitado. “Da faca não foge o fio/nem foge o rio do leito”. E no último verso, temos explicitamente a
conjunção aditiva e acompanhando nem “E nem o lume
da luz”.
Interessante notar que o verbo fugir, na sua forma do
presente do indicativo foge, está implícita logo após o nem.
Reiterado nos três primeiros versos, ele se “oculta” nos outros, com exceção do
nono e do 13º. Há certa ambiguidade morfológica e sintática que evidenciam
procedimentos e desafios para o leitor atento.
Além disso, o poeta trabalha símbolos e imagens em uma
sequência de constatações da nossa realidade, de causas e consequências que nos
constituem humanamente, incluindo aí nossas vilezas. Sem a possibilidade de
fuga, o poeta encerra com “Crápula não foge do escuso/Nem equívoco de
confuso/e nem o lume da luz.”
Aqui aparecem duas palavras que chamam a atenção, pela
pronúncia e pela colocação: “crápula” e “equívoco”. Nas relações feitas durante
o poema há um tom filosófico de condenação nessas atitudes antiéticas, uma
postura ideológica do caráter de um indivíduo do qual não há fuga. Mas o último
verso se ilumina. Sempre haverá um discernimento luminoso. Talvez a esperança
que não se apagará.
Virgílio
Siqueira, finalizando: o sertão é seu lugar definido, mas o mundo o
atrai em paisagens e pessoas... um Dom Quixote metafórico no que lhe toca de
injustiça e de impotência social. Sem falar de sua sensualidade desmedida,
cinco sentidos visíveis, musicalizados, intertextos e referências em labirintos
e vozes que ressoam...
“Na lasca do mundo, no oco do nada e do nunca” (destacado na página 513) tomei como título desse trabalho. A escolha das palavras pelo poeta se faz na caracterização quase niilista do seu fazer e do seu lugar, mas que se combinam nessa referência de um espaço muito maior da sua poesia.
Para sempre, obrigada Virgílio.
Elisabet Gonçalves Moreira
Petrolina, novembro de 2023.
https://www.instagram.com/virgiliobsiqueira/
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