Bet com t mudo

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BET COM T MUDO... Quem me conhece, reconhece? Já me imagino receptora deste blog. Quem é esta mulher? Quem é esta Eli, Elisa, Betina, Betuska, Betî, resumida numa Bet com t mudo? Esta afirmação diminuta diz (ou desdiz?) uma identidade... Assim, quem sou eu? Sou (sim) uma idealizadora das pessoas, das relações, das amizades, das produções minhas e dos outros. Consequência: um sofrimento que perdura... na mulher crítica que procura saber e tomar consciência finalmente de quem é e do que ainda pode fazer (renascer?!) nesta fase da vida, um envelhecimento em caráter de antecipação do inevitável. Daí a justificativa do blog. Percorrer olhares, visualizar controvérsias, pôr e contrapor, depositar num receptor imaginário (despojá-lo do ideal, já que eu o sou!) uma escrita em que o discurso poderá trazer uma Bet com t falante... LEITURAS, ESCRITAS, SIGNATURAS...

sábado, 3 de agosto de 2019

MURILO MENDES: A MEMÓRIA ALÉM DOS LIMITES DA PROSA


Retomando ensaios e estudos. Esclarecendo: este trabalho foi originalmente adaptado de trechos de minha dissertação de mestrado, sob orientação de meu amigo e  professor Boris Schnaiderman, em Teoria Literária e Literatura Comparada, defendida na Universidade de São Paulo, em 1981. Reescrevi este estudo em 1990 para ser apresentado no 2º Congresso da ABRALIC na UFMG, em Belo Horizonte, em 1990. Leio, releio, há sempre algo a ser tirado ou acrescentado. O que também me impressiona, neste século onde vivo e rememoro, o quanto certos estudos são esquecidos ou ficam restritos ao momento em que foram criados e aos poucos leitores de então... O que espero então em mais este registro? Ampliar seguidores, repensar e estimular leituras e críticas.

Resumo acadêmico: o trabalho objetiva mostrar como a prosa memorialista de Murilo Mendes em seu livro A IDADE DO SERROTE (1968) se caracteriza na representação de uma linguagem que oscila permanentemente entre prosa e poesia. Memórias além do meramente referencial, já que o discurso fragmentário utilizado pelo autor recupera não só o tempo passado mas,  voltando-se para si mesmo, perfaz o caminho literário, em que ficção e realidade se complementam.

Adendo: No final deste trabalho, apresento uma cópia da carta de Murilo Mendes endereçada a Boris Schnaiderman, de 1975, pouco antes do falecimento do poeta, sobre a pesquisa que então eu começava sobre sua obra.



A IDADE DO SERROTE de Murilo Mendes (1901-1975) foi escrito em Roma durante os anos de 65 e 66 e publicado originalmente pela Editora Sabiá do Rio de Janeiro, em 1968 (as citações aqui são indicadas por esta edição). Esse livro tem na capa, fazendo parte do trabalho gráfico de apresentação, um cartão onde se lê memórias. E o são de fato, embora cheguem somente até um certo momento da vida do autor: infância e adolescência, situadas na cidade mineira de Juiz de Fora, terra natal do escritor Murilo Mendes.
            Apesar de ter sido reeditado em Obras Completas (Rio, Nova Aguilar, 1994) e de ter tido outra edição do livro em referência, o próprio Murilo Mendes se queixava de um certo “descaso” para com sua obra[1]. A IDADE DO SERROTE, como muitos outros textos de sua obra vasta e variada, é muito pouco usado ou estimulado, principalmente em livros didáticos ou antologias, já que me parece exemplar para tal. São 42 capítulos curtos, cada um constituindo um texto completo. Quase todos giram em torno de retratos de pessoas invulgares ou bizarras, de palavras evocativas ou fatos, enfim lembranças que marcaram de um modo ou de outro a formação do poeta.
            É como se abríssemos um palco para a entrada dos personagens, máscaras e tipos que irão desfilar muito mais suas excentricidades do que uma conduta linear, desmitificando quase sempre uma ambiência provinciana em sua dialética conservadora e revolucionária ao mesmo tempo para, talvez, justificar a formação do poeta, também ele um tipo considerado excêntrico pelos seus contemporâneos. E aí Murilo se desnuda como nunca, desnudando-se na forma de sua linguagem tão específica, tão peculiar. E é aí, nesse ponto, que temos seu testemunho realmente biográfico e referencial, como o artista sobrevive: através de sua obra. São fragmentos de memória em que Murilo Mendes apresentados como rememoração e representação de uma realidade que vive enquanto discurso, enquanto linguagem literária.
          A análise dos livros de poesia de Murilo deixa entrever facilmente a observância de um processo regular de rememoração – muito mais acentuado em suas últimas obras. Esta invariante memorialista, em alguém tão inquieto criativa e criticamente como foi Murilo Mendes, converge em A IDADE DO SERROTE para outro tipo de linguagem, que é sua prosa. Uma prosa riquíssima, muito mais linguagem poética do que “prosaica” em sentido restrito.
            A oscilação poesia/prosa quase que permanente nesse livro é que nos levou a uma série de conjeturas sobre o problema dos limites entre prosa e poesia. Boris Schnaiderman[1], crítico literário, já nos alertara sobre isso em texto de 1976. No caso específico de Murilo, o que temos como procedimento constante é o desfiguramento metalingüístico do discurso, uma escritura que, indo e vindo também pelos limites do tempo, articula um significado poético, chamando a atenção sobre si mesmo.
            A “deformação” é anda mais sentida porque está hiperbolizada na forma de memórias. Uma sondagem pelos labirintos do passado autobiográfico seria o que de mais referencial poderíamos denotar dentro do discurso prosaico e,  no entanto, temos uma linguagem poética em seu alcance mais denso e que não deixa de ser prosa.
            No capítulo “Belmiro Braga”, a evocação do poeta mineiro inicia-se com dois decassílabos perfeitos e acentuação na 2a. 6a. e 10a. sílabas. Poderia até ser o início de um soneto.

“Lá vem o volantim Belmiro Braga
sorrindo no seu terno de xadrez.”

Ou este trecho do 1o. capítulo:

“...Superadas pianolas, minhas avós de carne e osso, ó vós, ovas sem ovações, mulheres-avós que eu nunca vi, desovadas em ricos dioscuros da obscura, difícil Minas de pedra, que me fazia doer o peito por falta de mar: vindas de vulvas montanhosas e de falos insapientes da importância da futura inflação humana e financeira do Brasil; bisavós remotas casadas com gigantones cabezudos; deixando cair as fazendas em usocapião, abolindo os domínios Paraopeba e Congonhas.” (página 9 da edição referida no primeiro parágrafo).

            A linguagem se auto-referencializa pela constante reiteração dos sons /v/ e sibilantes, uma linguagem que pode ser até caracterizada como antropofágica em suas metáforas, numa oscilação dos limites entre ficção e realidade.
            Estes e outros recursos não tiram, porém, ao livro o caráter de prosa ritmada, mas bem prosa narrativa: discursiva, até derramada nas palavras de Boris Schnaiderman. Há realmente algo de malícia neste emprego de recursos fáceis. A facilidade aqui, parece, se torna ironia e crítica do próprio discurso. Uma ironia e um humor descendentes diretos do Modernismo de 1922, e muito mineiro. Não só nas imagens, mas até na oralidade registrada como “guais maginando”.
            Segundo um ensaio de Iúri Tinianov[2] é o “umbral semântico” o fenômeno que estabeleceria o limite essencial entre prosa e poesia.
            Prosa e poesia se distinguem entre si não pela sonoridade imanente, não porque a poesia se orienta de modo coerente e sistemático para o som e a prosa para os significados, mas, substancialmente, pelo modo como esses elementos influem um sobre o outro; pelo modo como o aspecto sonoro da prosa é deformado pelo seu aspecto semântico (pela orientação da atenção para os significados) e o significado da palavra é “deformado” pelo verso.
            Não é só neste livro que a prosa de Murilo Mendes parece ser antes o jogo dos princípios constitutivos de prosa e poesia: a função do significado deformado pelo som na prosa e a função sonora igualmente deformada pelo significado. Essa deformação constitui-se num fator de dinamização verdadeiramente artístico tanto em uma como em outra, contribuindo para o enriquecimento de ambas.
            O tempo também não é o tempo de uma visão realista, nos moldes cronológicos e biográficos. Vai-se e volta-se constantemente pelos limites do tempo rememorativo: não só o passado subsiste como narrativa poética na maioria das vezes, chega-se a um outro tempo – o da escrita – presente da ação e futuro em oposição ao passado. E ao tempo da leitura, leitor em sua recepção e presença.
            O primeiro capítulo, intitulado “Origem, Memória, Contato, Iniciação”, foi objeto de uma análise textual admirável, feita pelo professor e crítico Antônio Cândido, na USP, num curso de 1975, do qual participei e passo a sintetizar anotações feitas na época.
            O professor mostrou como Murilo Mendes manipula a palavra em dois sentidos: num primeiro, o de reforçar a semelhança da palavra com o mundo e, em outro sentido, o de desmanchar tal semelhança. Este duplo movimento é que vai garantir e perturbar ao mesmo tempo o nexo com o mundo. Justamente é esta tensão de ambiguidade que permite a formação da mensagem literária especificamente. Na imagem, na metáfora, o poeta possui e não possui o mundo.
            A palavra, atuando sobre o mundo, vai desfigurando-o e trazendo-o para dentro do discurso. A palavra realça o discurso, devorando os objetos nos campos sonoro e semântico, do significante e do significado. Sabemos que, nos limites, o discurso poético faz esquecer o mundo e se torna um novo mundo. Se no nível sonoro constitui-se um sistema específico de sentido, sabemos, como Jakobson[3] demonstrou várias vezes, que o discurso poético chama a atenção sobre si mesmo. Temos, portanto, no caso de Murilo Mendes, efeitos de cunho sonoro e depois os de cunho analógico.
            Com esta colocação do discurso de Murilo Mendes é que podemos dizer que temos memórias ao nível de poesia. Ele nos apresenta o mundo desmanchado (ou “deformado”, segundo Tinianov); propõe o mundo mas propõe a si mesmo, utilizando-se de uma lógica sobretudo anafórica e paronomástica. Temos um discurso não como correspondência entre texto e sociedade, mas como esta se transforma em elemento estruturador do discurso.
            O processo de concorrência do mundo do discurso pode ir mais longe, ter sentido quase que só nele próprio. É o caso deste seqüência do primeiro capítulo, por exemplo:

As têmporas de Antonieta. As têmporas da begônia.
As têmporas da romã, as têmporas da maçã, as têmporas da hortelã.
As pitangas temporãs. O tempo temporão. O tempo-será. As têmporas do tempo. O tempo da onça. As têmporas da onça. O tampão do tempo. O temporal do tempo. Os tambores do tempo. As mulheres temporãs. O tempo atual, superado por um tempo de outra dimensão, e que não é aquele tempo. Temporizemos.

            Esta é uma seqüência mágica. O que interessa mais é o discurso, sensação poética extraordinária, fragmentos rememorativos e/ou associativos num contexto poético. Jogo sonoro: de tempo – ra – rã (têmporas). Jogo de significados: observa-se em compressão o tempo que passa, seja nas “têmporas de Antonieta”, seja nos avisos – tambores – seja nas outras associações. Há encanto e pavor por este mesmo tempo. É o tempo da infância, não o atual, mas o das memórias,  representadas pela escrita. A resultante é, pois, um avançado estágio de desfiguramento do mundo, um discurso literário, não referencial e, sim, poético.
            No primeiro capítulo está também justificado o título do livro: “As primeiras letras. As primeiras lutas. Perto do colégio – uma serraria.”  Para Murilo Mendes são instrumentos hostis o serrote, o martelo, a torquês, símbolos “torcionários”. E essa “idade do serrote” é justamente aquela em que o mundo agiu “torcendo” não o pequeno rebelde, mas o “voyeur” na infância e na adolescência. Aliás, esta espécie de reflexão e inserção do discurso em outro plano, de diálogo consigo mesmo e com o leitor se dá sincronicamente, após a evocação, quase sempre no final dos capítulos. Vozes e consciências que se alternam sem ingenuidade.
            Só em A IDADE DO SERROTE, o poeta parece livre, nesta linguagem rememorativa e poética, para rememorar também sua própria linguagem do início de seus poemas, a linguagem algo debochada e desmitificadora de HISTÓRIA DO BRASIL e que Murilo Mendes renegou a certa altura. Parece-me que a explicação do termo “memórias” justifica inconscientemente esta re-aceitação de um discurso “renegado”.
            O fato de escrever memórias lhe garante esta volta às origens, já que, no plano mitológico, reside aí a função da memória: não reconstrói o tempo e nem o anula. “Ao fazer cair a barreira que separa o presente do passado, lança uma ponte entre o mundo dos vivos e o do além ao qual retorna tudo o que deixou a luz do sol. (...) O privilégio que Mnemosyne confere ao aedo é aquele de um contacto com o outro mundo, a possibilidade de aí entrar e de voltar dele livremente. O passado aparece aí como uma dimensão do além.”[4]
            Murilo Mendes “assume” o tempo todo o seu texto como memórias, consciente desta atitude de representação. Citando:

“Movido por um instinto profundo, sempre procurei sacralizar o cotidiano, desbanalizar a vida real, criar ou recriar a dimensão do feérico.” (p. 62)
ou
“Juntando estes e outros atos que guardo nas prateleiras da memória.” (p. 50)

            A consciência de estar trabalhando com a palavra aparece nesta identificação metalingüística: “as pessoas são frases” (p. 70) e a presença do leitor, receptor em outra realidade, está até num machadiano “confesso ao leitor nada poderoso que me sinto feliz com...” (p. 70). Afinal, “Quem ousaria negar que – ao menos para uma memória fértil – o passado situa-se a posteriori?” (p. 154).
            Interessante que Murilo, circunscrevendo suas memórias ao tempo da infância e da adolescência, também elas estão circunscritas num espaço preciso e delimitado: Juiz de Fora até o Morro do Imperador, constantemente citado. A justificativa parece coerente: as descrições singulares e observações demasiadamente precoces têm uma lógica “espacial”, se assim podemos chamar: “Escapando-nos o mar, oprimindo-nos a montanha relativa, a gente se vinga com um desafio maior do cotidiano; a cidade pequena, ao mesmo tempo que nos circunscreve, propõe-nos um treino mais intenso dos sentidos e da imaginação. Evadimos da realidade transfigurando-a.” (p. 95/96)
            No capítulo “Florinda e Florentina” (p. 95), a imaginação do poeta deixa em suspense o que poderia ser o final de um conto não trabalhado. O casamento das gêmeas, a reivindicação de uma delas alegando (ficção ou não?) uma permuta de corpos dá um toque todo especial a esta parte.  Aliás, o livro funciona como partes principalmente. Sem a seqüência cronológica, sem um fio condutor, linear, pode-se ler cada capítulo isoladamente, como fragmentos de escritura, cuja origem foram fragmentos de memória.
            E que é a memória se não fragmentos de uma realidade já “transfigurada”? Daí eu poder dizer que Murilo Mendes trabalha não só com memórias em linguagem poética, mas também com suas características hiperbolizadas, poli-memorizadas, metalinguagem em suas idas e vindas dos mais diversos pólos.
            A divisão da realidade cotidiana, o vulgar e o insólito estão presentes a todo momento, no fio da navalha, como a linguagem: prosa e poesia. E Murilo, amplamente possuidor deste processo de colocação dicotômica das coisas prosaicas da vida, esclarece, mesmo que a respeito de sua relação com o cinema: “... soube então que a realidade é inumerável. Desgraçados dos que admitem só algumas parcelas da realidade.” (p. 105)
            Num mundo sempre em crise, Murilo justifica-se (e ao seu discurso) como um ser insólito e precocemente sensível. Essa agudez de percepção do universal ele soube captar em um pequeno mundo circunscrito em um espaço geográfico delimitado e provinciano. Talvez que o excêntrico Murilo concorresse para cultivar seu próprio mito... Inclusive há muito de ironia, de riso e até de emoção fácil em alguns momentos, como a vida,  aliás.
            Suas memórias fazem-no, como em Proust, “senhor da própria experiência”, não desencadeada pelo sabor de um biscoitinho e, sim, me parece, por uma vontade que deve ser colocada no plano ideológico da escolha da atitude, isto é, de justificar, através do passado, um presente em todas as idas e vindas pelo tempo. Daí também a característica crítica, imanente em toda a sua obra.
            Boris me alertava que se pode procurar as raízes deste tipo de memórias aqui mesmo, na Literatura Brasileira. Marques Rebelo e outros já colocavam o fragmento, o retrato e outras características afins em suas memórias. Mas a referência da prosa memorialista de Murilo Mendes, ao lado das memórias de Pedro Nava (por coincidência de Juiz de Fora e, curioso, nem um nem outro se citam, embora fossem contemporâneos), constituem algo realmente invulgar na Literatura Brasileira. 

E, infelizmente, uma prosa pouco conhecida e estudada.




[1]  Os Relâmpagos de Murilo Mendes, in Língua e Literatura no. 5, São Paulo,  Revista da USP, 1976, páginas 433-441, resenha escrita em colaboração com Elisabet G. Moreira, sobre o livro Retratos Relâmpago de Murilo Mendes.
[2] “Sobre la composición Del “Eugeni Onegin” in Formalismo Y Vanguardia,  Madri, Alberto Corazón Editor, 1973, 2ª. Ed.
[3] JAKOBSON, Roman. Questions de poétique. Paris, Seuil, 1973.
[4] VERNANT, Jean-Pierre. Mito e Pensamento entre os Gregos. S. Paulo, Difusão Européia do Livro/USP, 1973, p. 78). 

(Transcrição da carta de Murilo Mendes a Boris Schnaiderman)

                                                                                   Roma, 27 maio 1975.

Querido Boris Schnaiderman,

            Muito lhe agradeço o envio da interessante página plano de pesquisa, feito por V. e pela sua orientanda Elisabet G. Moreira.
            Achei ótima a idéia, e tudo leva a crer que a realização também o será. Como é natural alegrei-me ao ver uma pessoa da sua categoria tão interessada na minha obra, tão pouco conhecida e sobre a qual se tem escrito tantas tolices. Certos críticos escreveram tão mal sobre ela, que estou certo de que a conhecem muito pela rama. O interesse dos críticos mais moços me consola.
            Sou suspeito no caso, querendo ser juiz em causa própria, mas creio que você e sua orientanda disseram coisas exatas. De resto, é possível que só agora, com o recuo do tempo, se possa começar a ver mais claro nos meus textos.
            Na bibliografia falta o livro “Retratos-Relâmpago”- 1a. série, publicado pelo Conselho Estadual de Cultura de S. Paulo com data 1973, mas na realidade saído em 1974. O Haroldo, quando esteve aqui, uns 3 meses atrás, disse-me que desconhecia a existência desse livro. De qualquer maneira, creio que o Prof. Santa Cruz, da “Livraria Duas Cidades”, poderá lhe arranjar um exemplar. Gostaria que V. e a senhora Elisabet o lessem e mandassem me dizer algo sobre.
            Também poderá constar da bibliografia o artigo de Lélia Coelho Frota, “Retratos, o Microcosmo de Murilo Mendes”, no “Jornal do Brasil” de 7.5.75.
            De novo, mil agradecimentos.
            Na esperança de o rever em Roma, Saudade e eu abraçamo-lo afetuosamente.
                                                                                               Murilo.

Queira transmitir nossas saudações a D. Elisabet.
                                                                       M.

           
Notas:
  1. Murilo Mendes faleceu três meses depois de ter escrito esta carta, em Roma, onde era professor de Literatura Brasileira e crítico de arte, bastante respeitado.
  2. Boris Schnaiderman e eu fizemos uma resenha sobre o livro Retratos-Relâmpago.  “Os Relâmpagos de Murilo Mendes”, publicada em Língua e Literatura no. 5, São Paulo,  Revista da USP, 1976, páginas 433-441. Minha dissertação de mestrado, sob a orientação de Boris Schnaiderman, com o título “Murilo Mendes: uma representação operacionalizada”, em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo, foi defendida e aprovada com distinção em 1981, tendo como arguidores os professores Alfredo Bosi e João Alexandre Barbosa.
  3. Maria da Saudade Cortesão era sua esposa, citada no final da carta.
  4. Trabalhos meus sobre Murilo Mendes, alguns em colaboração com Boris Schnaiderman, constam da indicação bibliográfica no final do livro Murilo Mendes – Obras Completas, Rio, Nova Aguilar, 1994.
Elisabet Gonçalves Moreira




domingo, 7 de julho de 2019

Sobre um pequeno livro e uma proposta: Leituras exemplares (à maneira de Tolstói)


De minha autoria, saiu publicado em tiragem limitada, estilo cartonera, quase manual, o livro 
Leituras exemplares (à maneira de Tolstói).

Por que este título? Por que este livro?

Foi somente após ter ganho os três volumes dos Contos Completos de Liev Tolstói, tradução de Rubens Figueiredo, editado pela CosacNaify em 2015, que vim a conhecer os textos da Nova Cartilha e Livros Russos de Leitura no volume 2.

Tolstói usa e escreve, quase compulsivamente, fábulas, casos, raciocínios, histórias reais, contos, pequenos grandes textos escritos e reescritos para sua cartilha e livros de leitura. Motivada, memórias em desafio, escrevi os primeiros textos. Fui me entusiasmando, foram me incentivando e, por fim, uma iluminação: por que não os reunir em um livro?

Mesmo poucos, esses textos do que chamo “Leituras Exemplares” me representam... sem a pretensão do que a cartilha e os livros de leitura foram para Tolstói e seu projeto educativo.

O conde Liev Nicolaievitch Tolstói (1828-1910) se dedicou pessoalmente a alfabetizar crianças em sua propriedade, Isnaia Poliana, e essa frase me faz refletir ainda mais sobre o processo pedagógico pelo qual se empenhou: “Quem deve aprender a escrever com quem, as crianças camponesas conosco, ou nós com as crianças camponesas?” A atualidade deste questionamento é fundamental e, pensando bem, acho que foi isso que, subliminarmente, me motivou a escrever.

A apresentação dos Contos Completos, feita pelo tradutor, Rubens Figueiredo, é esclarecedora sobre aspectos fundamentais do artista e de sua obra. “A preocupação contínua do escritor com as narrativas orais, de origens antigas, disseminadas entre as populações ágrafas ou analfabetas, foi um componente decisivo em seu esforço para elaborar formas diferentes de narrar. As fábulas, as vidas dos santos, as aventuras de heróis populares, as lendas, as parábolas, em lugar de serem vistas como formas elementares, atrasadas, superadas pelos padrões literários modernos, representam pontos de vista alternativos, de onde os vitoriosos se revelam menos consistentes em suas pretensões.” (página 28, volume 1).

O grande escritor russo, autor de “Guerra e Paz” e “Ana Karenina”, entre outras obras que marcaram o século XIX, tinha em mente que a Arte deve comunicar sentimentos do bem, pois o bem é eterno, ao contrário da beleza que é temporária. Em síntese, um bom artista é aquele que consegue passar uma mensagem complexa da forma mais simples possível. Pode-se não concordar com ele ou com o extremismo de algumas de suas ideias e atitudes, mas sua obra e seu legado o tornam uma das grandes referências da literatura mundial.

A Mulher e a Galinha (Fábula)
Uma galinha botava um ovo por dia. A dona achou que, se desse mais comida, a galinha poria duas vezes mais ovos. Assim fez. Mas a galinha engordou e parou de botar ovos.
(Tolstói, Contos Completos, vol. 2, página 68)

Usei esta pequena fábula, que aparece em Esopo e em outras culturas antigas, reescrita por Tostói, como epígrafe do livro. Mas o importante foi o questionamento feito pela amiga Irene Britto. Aqui, ao deixar sem a moral, Tolstói “abre” a interpretação... “Por que não entender a moral das fábulas e contos sob outra perspectiva em tempos tão plurais?”

Justifico, sob esta perspectiva,  a reescritura de alguns casos e da minha opção ao criar e classificar os textos. Sei que poderia ter escrito mais textos. Às vezes me acodem outras ideias, registro, penso em desenvolver talvez um segundo livro... mas aí também entra a proposta da publicação e de sua recepção. Minha experiência como professora em vários níveis de ensino e a literatura, conjugada com aulas de redação, durante décadas, sem dúvida serviu de arcabouço para os textos que fui criando “à maneira de Tolstói”.

A classificação dos textos, feita por Tolstói, serviu não só para me orientar como me motivar para a redação dos textos, sua diversidade possível. É certo que classificar um texto em determinado tipo ou gênero nem sempre é o mais adequado para o leitor ou para o próprio texto. Por exemplo, uma fábula pode ser um conto ou uma lenda. Uma história tida como real, não é recontada? Qual o critério para uma descrição ou um raciocínio? Ou para escolher episódios da História e contá-los de acordo com seu ponto de vista?

Ademais, Tolstói não separou os textos, agrupando-os por sua classificação. Para mim, isso foi também uma descoberta. A cada página uma leitura diferente, contrastante às vezes, mas reveladora dos significados com que apreendemos a realidade.

Odomaria Bandeira, educadora múltipla, fez várias observações sobre o livro, ainda nos originais. Mas o que mais me tranquilizou foi ela ter sintetizado “Esses textos denotam um modo de pensar, certa filosofia do cotidiano na qual se encontram muitos ensinamentos para quem quiser aprender, inclusive sobre lógica e linguagem; e nos remetem aos fluxos da memória e da tradição oral, a práticas sociais como metodologias do conhecimento e epistemologias que estruturam tipos de pensamento”.



Penso, pois, que este pequeno livro também possa ter um caráter utilitário e pedagógico, leitura para crianças, desafios para professores e alunos, alternativas de escritas, depoimentos. Acreditar que, sobretudo, seja um livro prazeroso, uma leitura marcante em possibilidades significativas.




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Eis a relação dos textos e sua classificação. Penso em publicá-los aos poucos, neste blog, um espaço que me satisfaz em divulgação nestes tempos digitais...

1.       Sotaque da cidade (História real)
2.       Como uma filha festeira denunciou a si mesma (História real)
3.       O céu do sertão (Descrição)
4.       O ribeirinho e o remo de ouro (Fábula)
5.       A flor de cinco pétalas (Raciocínio)
6.       Pau-de-colher (História)
7.       O poder das carrancas (Lenda)
8.       Os cafutins (História oral)
9.       Um causo de João Grilo, o Treloso (História oral)
10.   A mãe do Mato (Conto popular, História oral)
11.   O apanhador de Sonhos (Lenda)
12.   O gato e os filhotes de passarinhos (História real)
13.   Brincadeiras de menina (Conto/reflexão)
14.   O banquete das formigas (Fábula)
15.   Um governo tirânico e genocida (História)
16.   A computação eletrônica e o domínio de seu uso (Raciocínio introdutório)

Notas explicativas

  • Os dois textos que classifiquei como História oral foram um recorte de contos pesquisados oralmente e transcritos para o projeto Contos Populares Brasileiros, Pernambuco, coordenador: Roberto Benjamin. Recife, Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 1994.

  • “A Mãe do Mato” foi ligeiramente adaptado da publicação Contos de Sequeiros e Ribeirinhos: mapeamento de histórias orais. Organização de Cristiane Amador.  Editado pela Secretaria de Cultura do Estado de Pernambuco, Funcultura/Fundarpe, s/d.

  • Somente o último texto “A computação eletrônica e o domínio de seu uso” foi publicado no blog e teve a colaboração de Cecílio Bastos.  Não coloquei referências bibliográficas em textos pesquisados, pois a releitura foi com a intenção de sintetizar, em linguagem tipo artigo, considerações gerais. À maneira de Tolstói...
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Gosto muito de desenhar e fiz algumas ilustrações com lápis preto.  Um viés amador e pessoal em toda a produção.

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Uma seleção ilustrativa do que escrevi... apreciação geral. Observação: se alguém se interessar pela aquisição do livro me escreva. Prazer em divulgar.

Como uma filha festeira denunciou a si mesma
(História real)
Manhãzinha, a mãe acordou e percebeu que alguém entrava em casa, abrindo a porta com chave.

Deu de cara com a filha que havia saído à noite para dormir na casa de uma amiga, numa sexta-feira.

Para não ser surpreendida, vinha com os sapatos na mão, mas a mãe nem retrucou: o cheiro de suor da filha, os olhos embaçados, cabelos em desalinho, nada a esconder.

E sequer soube o lugar onde fora, com quem, se uma festa inocente ou indecente, se amigas ou namorados casuais... perigos que coração de mãe quer proteger e a vida adolescente quer para si em destemor. Melhor acreditar que tudo correu bem, a volta à casa.

Vá tomar um banho, menina!

O ribeirinho e o remo de ouro
(Fábula)
O ribeirinho, ao pescar no meio do rio, deixou cair o remo na água. Sem ter como remar, viu-se perdido na madrugada e no caminho das águas.

Rezou e pediu ao espírito benevolente do rio que lhe devolvesse o remo. Sua vida e o sustento de sua família estavam em risco.

O barco bateu num banco de areia e lá estava um remo brilhando ao sol, como as escamas do dourado. O ribeirinho agradeceu ao espírito do rio e levou o remo para casa.

A partir daquele dia, o ribeirinho pescou com abundância e sem perigos até o fim de sua vida.
Todos os ribeirinhos das correntezas e redondezas ficaram maravilhados com o remo. Mas o compadre invejoso foi até o rio em seu barco, jogou o remo na água. Rezou também e pediu um remo de ouro ao espírito das águas.

O fato é que nunca mais se teve notícias do compadre.

Pau-de-Colher
(História)

Casa Nova, na Bahia, município que faz parte da região do vale do rio São Francisco, fica situado na parte de cima da represa de Sobradinho, inaugurada em 1979, que transformou o rio num grande lago, um dos maiores do mundo.

Pertencendo ao município, existia um lugarejo chamado “Pau-de-Colher”, na caatinga longínqua, mas próxima de vários estados, Bahia, Pernambuco e Piauí. Com o nome do lugar, ficou conhecido o massacre de gente pobre por militares desses estados, em uma grande operação de guerra.  O fato aconteceu muito antes da represa, em 1938, após uma resistência dos que ali viviam em comunidade há alguns anos, com rígidas normas religiosas e de convivência.

Eram liderados por beatos e penitentes, dos quais de destacaram José Senhorinho e Joaquim Bezerra — o “Quinzeiro”. Representantes da mediação entre o mundo do sagrado e os pecados terrenos, atraíam lavradores pobres ou mesmo remediados que abandonavam tudo para ali viver e esperar a salvação eterna. Ascéticos, não bebiam nem fumavam, não comiam carne nem gordura, passavam o dia rezando pela salvação de suas almas, usavam luto pela morte do padre Cícero e tratavam uns aos outros como irmãos.

Cedinho, eram acordados pelo beato, com rezas cantadas em quadrinhas, como esta:

Alevante pecador
Trata do que há de fazer
Vamos cuidar em nossa vida
Antes de morrer

Esse modo de vida chocava a população urbana e perturbava a ordem social em vigor. Onde conseguir trabalhadores e consumidores? Sem dúvidas, as coisas caminhavam para um enfrentamento. A violência acabou se fazendo presente e “caceteiros” foi como ficaram conhecidos os sertanejos participantes da comunidade, pois usavam porretes com uma cruz para abater inimigos ou descrentes.  Boatos se espalharam. Dizia-se que ali, em Pau-de-Colher, havia centenas de cangaceiros se preparando para atacar toda a circunvizinhança e implantar o comunismo.

O comunismo era visto e difundido como a pior praga neste mundo de Deus, contra a verdadeira religião e a favor da tomada dos bens de quem os tinha para serem distribuídos entre todos. No imaginário dizia-se até que comunistas comiam crianças. O Brasil vivia uma ditadura, o chamado Estado Novo, cujo presidente era Getúlio Vargas.

A repressão chegou violenta, com a chegada da polícia militar baiana, depois por soldados piauienses, apoiada por jagunços, mercenários dos coronéis ricos e proprietários de muitas terras. Os caceteiros reagiram e houve mortes dos dois lados.

Para a destruição final, o comandante geral, tenente-coronel Maynard, auxiliado por batalhões do exército, comandou a operação, apoiado pelo coronel Dantas, interventor baiano, por policiais militares do Piauí e pelo capitão Optato Gueiros, de Pernambuco, temido comandante das forças volantes de combate ao cangaço.

Sabe-se que, armados de metralhadoras, os policiais pernambucanos abriram fogo, matando centenas de homens, mulheres e crianças. Depois de 42 horas de batalha, os sobreviventes foram caçados como animais e degolados. Há relatos de mais de 400 mortos. Outros foram presos. Os pais perderam o direito pátrio sobre os filhos, que foram entregues como escravos a famílias da região e da capital baiana. Essa brutalidade injustificável ainda choca na memória dos remanescentes vivos ou de seus descendentes.

Pau-de-Colher deve ser considerado não como fato isolado, mas uma confluência de acontecimentos semelhantes, um processo contínuo de perseguições a movimentos populares, de cunho religioso em sua base estrutural, desde o Ceará. Movimentos esses caracterizados como insurgentes contra o governo autoritário da época, contra os ricos coronéis e seus latifúndios, detentores de um poder patriarcal e secular. Tudo agravado pela seca que faz parte do clima da região e que desencadeava a penúria para os nordestinos sem terras, moradores da caatinga.

Portanto, esse ainda é o tipo de exemplo de história em que se quer atribuir justificativas reducionistas, seja pela ignorância de um povo iletrado ou pelo fanatismo religioso de cunho milenarista, o credo no apocalipse do fim do mundo, como lhes havia ensinado a Igreja colonizadora.

O então presidente do Brasil, ditador Getúlio Vargas, enviou um telegrama ao interventor Dantas, felicitando-o pelo extermínio de Pau de Colher, entre outras comemorações da vitória dos soldados sobre os “fanáticos”.

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Agradeço também às pessoas que foram ao lançamento do livro no espaço Janela 353, gentileza de Chico Egídio e do Café de Bule. Palavras generosas ouvi. Muito obrigada.

 





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quinta-feira, 30 de maio de 2019

O destino da agulha

Na literatura - talvez como na vida - aprendi que a narrativa de um conto deve caminhar para o clímax e um final abrupto para lhe dar mais suspense. E fazer o leitor refletir nas possibilidades de interpretação, do que vai lhe marcar na memória dessa mesma leitura. 
A literatura policial, os modernos roteiristas de cinema e tv sabem disso. Aliás, nada de novo se lembrarmos de Poe, de Machado, de Horácio Quiroga (ah, "O almofadão de plumas") na narrativa tradicional. 
Mas ainda quero escrever um conto como Tchekhov o fazia... na quebra dessa perspectiva...
Pois bem, o conto abaixo é ficção mas baseado num fato real que ouvi há tempos e nunca me saiu da memória: a mãe e o filho acompanhando aterrorizados o momento em que uma agulha seria espetada no coração... (quebrei o suspense?!) 
Acompanhe a história.


O destino da agulha

Madalena costurava e costurava...

Grávida de um homem casado, precisava se amparar e amparar o fruto de seu ventre. 
Concebido com muito pecado, todos apontavam-lhe o dedo da culpa. 
Feia, solteirona, morando com a mãe idosa e doente, poucas alegrias tinham.

Os olhares do senhor dono da bodega atiçaram-lhe desejos nunca adormecidos. 
Deu-se com vontade numa noite de estreia. 
Não houve reprise.

O barrigão aumentava a cada dia. Inquieta com a possibilidade a chegar, comprou um berço e o colocou ao lado da máquina de costura. Servia para guardar tecidos das freguesas e até figurinos enquanto aguardava a hora. 

A hora chegou. Entregar um vestido para a madame que ia ser madrinha de casamento. Mas o bebê também quis a luz.
Desnorteada, entre alinhavos e alfinetes, colocou o vestido no berço. E no chão da pequena sala onde trabalhava desde sempre, seu bebê nasceu.  Madalena fez de tudo para não manchar o vestido, conseguiu aos trancos tirar o vestido e ali colocou a criança recém nascida.

Do resto tomou de conta. Limpou, lavou, tudo como deve ser. E voltou à máquina de costura. 

Desde sempre, seus pés, mãos, tesouras, agulhas, linhas, tecidos, faziam parte de sua rotina.

O menino que nascera era bem feinho. Mas Madalena o achava lindo. Cantava para ele, sorria, às vezes até se atrasava com as entregas das costuras, entregue ao sentimento prazeroso de sua maternidade, que lhe preenchia, agora, a solidão desde sempre.

No entanto, o menino chorava muito, muito mesmo. Ainda no berço, ela viu um pequeno furo vermelho nas costas da criança, mas achou que pudesse ser alguma picada de inseto. 

Por mais que ela tratasse bem seu filhote, sempre limpinho, dando-lhe o leite necessário, essa criança chorava sem parar, como se uma dor terrível tivesse. Seria dor de ouvido, dor de dente, dor de cólica, tudo era aventado, remédio dado, benzeção e nada resolvido.

De todo modo a criança foi crescendo. Ficou apático, um menino mirrado para a idade. Sentia dores, cada vez num lugar incerto. Chorava muito, nem gostava de brincar, pois aquela dor não passava.

Madalena sentiu sua provação, sua culpa, máxima culpa. Pediu perdão, fez promessas, andou de joelhos na igreja, mas o menino realmente tinha algo que ninguém sabia dizer.

O menino ficou moço. Aos 18 anos teve que se apresentar para o serviço militar.

E aí descobriram. Exames médicos. Radiografia do pulmão.

Bingo! Ali estava a causa: uma agulha de costura em seu peito. Impossível de ser extraída.

O terror se anunciava. Madalena se lembrou do vestido inacabado no berço da criança.

Nesses anos todos, a agulha ficara instalada no corpo do pequeno.  Alfinetando culpas e dores. Em circulação, entrou na corrente sanguínea sem pedir licença. No balanço de sístoles e diástoles, estava se aproximando do destino final de sua viagem.

Madalena e o filho puderam então acompanhar a morte anunciada.
  
Dia após dia, poderia ser o dia. 

Então chegou...




Bordado feito à mão por esta blogueira, com base em desenho Pinterest










quarta-feira, 1 de maio de 2019

UMA AMIGA SABRA

Quase toda estudante paulista, nos anos 70, tinha um sonho: conhecer a Bahia. Mais do que praia e sol, ver gente morena e bonita, um Brasil verdadeiramente tropical. Já naquela época sair da São Paulo poluída, infatigável, era também um propósito de uma vida mais “paz e amor”.

E assim foi. Quer dizer, fui. Era para ser fomos, mas minha amiga de nome estranho Zipora Rubinstein, que fazia o curso de Hebraico na USP, não pôde ir de última hora. Fora convocada para fazer o serviço militar em Israel, com urgência, pois, do contrário, ficaria apátrida. Era sabra, isto é, nascida em Israel e, como me explicou, embora morasse no Brasil há muitos anos, também não era cidadã brasileira.

Não entendia bem destes trâmites, numa cidade cosmopolita como São Paulo, onde confluem tantas nacionalidades e histórias de vida de “displaced persons”.  Zipora morava relativamente perto de minha casa e, às vezes ia visitá-la, a pé.

Esta aprendizagem de uma cidade plural foi bem interessante e me alicerçou na visão do respeito à diversidade, principalmente cultural. Eu vinha de uma pequena cidade do interior de São Paulo, descendente pelo lado materno de italianos imigrantes e do lado paterno de portugueses, índios, negros em miscigenação e, provavelmente, até de alemães, como atestava a altura e os olhos azuis de meu avô mineiro, tropeiro no início do século XX.

No pequeno apartamento de Zipora, seus pais, um tanto idosos, me falaram alguma coisa de sua origem, após o término da segunda guerra mundial. O que me lembro é do sabor, do colorido vermelho do morango quente que escorria de um pão delicioso feito para uma ocasião especial. Não me aprofundei nos costumes judaicos, mas sabia que havia uma relação com o sábado.

Zipora tinha uma irmã muito linda, de longos cabelos lisos e loiros, diferente dos de minha amiga, mais escuros e enrolados. Esta irmã adorava festas e as baladas da época. E contava coisas que eu não teria contado a ninguém, com muita naturalidade. Mas isto também me ajudou a ver o mundo menos hipócrita...

Cheguei a sair com Zipora poucas vezes, indo a algum bar com os amigos dela, uma turma de jovens, todos filhos de pais judeus. Interessante que, por causa de meus grandes olhos,  motivo de admiração, procuravam saber qual era minha ascendência. E diziam que eu, com certeza, também pelo meu nome de família, era descendente dos chamados judeus novos... É, pode ser, mas uma outra amiga, mais tarde, de ascendência árabe e italiana me dizia que, com certeza, eu era descendente de árabe, dos mouros que invadiram Portugal... É, pode ser...

Zipora me contou, muito reservadamente que, antes de ir para Israel, teria de fazer um treinamento numa fazenda, no estado do Rio, para se preparar militarmente para a vida no kibutz. Uma mulher militar, outra aprendizagem para abrir os olhos da menina ingênua que descobria possibilidades e desafios.

O fato é que eu não quis abrir mão dessa viagem a Salvador e fui, assim mesmo, sozinha, três dias de ônibus, em 1969. Essa jornada será outro relato, dado que, em minha volta, nunca mais fui a mesma; minha vida mudaria completamente.

E também nunca mais encontrei Zipora. Tinha saudades, me lembrava dela, de sua atenção. E gostaria de saber o que havia feito de sua vida. Tinha certeza que ela voltara ao Brasil, também pelos seus pais, a quem tinha muito apreço.

Eu me mudei para Petrolina, em Pernambuco, no ano de 1976, já casada, com filhos, trabalhando como professora. Fiz outras amizades, outros olhares para diferentes realidades não só geográficas como históricas neste Nordeste desigual.

Uma dessas amigas, tendo se mudado para Brasília, me envia de presente um livro.  Era dezembro de 1995. O livro: o Eclesiastes, traduzido do hebraico por Haroldo de Campos. Ou: Qohélet = O-que-sabe: Eclesiastes: poema sapiencial (São Paulo, Perspectiva, 1991). E então tive notícias de Zipora, escrito como Tzipora.  Primeiro a surpresa, aquele lance de que as coisas confluem em sua vida de maneira inesperada.

Nota Prévia do livro, escrita pelo autor, nos comunica. “Num outro plano, mais geral, quero registrar o meu débito para com a professora Tzipora Rubinstein, cuja morte prematura, em 16 de junho de 1989, tanto consternou os seus amigos.  Embora não tenha tido participação direta neste trabalho, cujo projeto e execução, em todos os seus aspectos, são de minha exclusiva responsabilidade, não poderia faltar, neste preâmbulo, uma referência ao fato de que fui seu aluno, por cerca de cinco anos, do idioma hebraico. Um aluno nada convencional, interessado em nugas filológicas e gramaticais, que recebeu de sua parte, durante esse longo período de aprendizado e convívio intelectual, provas constantes de dedicação e solicitude. Minha homenagem à sua memória.”

Meu mundo de referência desmontou. Como? O que fez ou o que foi feito de Zipora? Telefonei para Boris Schnaiderman em São Paulo que me confirmou a morte de minha amiga, após enfermidade. 

Eu, viva, continuo a catar memórias, a relacionar, a pensar nestas pontas de coincidências fortuitas...
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Algumas décadas depois, temos internet e pesquisas on line numa perspectiva jamais vista. Então, mais uma vez, me encontrei com Zipora em referências que continuaram a demonstrar a pessoa especial que ela foi. Existe uma escola pública estadual em São Paulo com o nome de Professora Zipora Rubinstein. Sua inteligência e competência foram distinguidas também por Jorge Schwartz e J. Guinsburg no seu livro Shem Tov de Carriónum elo entre três culturas (São Paulo, EdUSP, 1993). Também fico sabendo que ela fez outras traduções, inclusive do romance Hóspede por uma noite de Sch.I. Agnon (Nobel 1966), editado pela Perspectiva em 2015.

Shem Tov de Carrión é um ensaio sobre a obra do poeta medieval Shem Tov, dito de Carrión, autor cujos textos hispano-hebraicos trazem a síntese da Espanha do século XIV, marcada pelo cruzamento entre a cultura árabe, a cristã e a judaica. A Disputa entre o Cálamo e a Tesoura, de sua autoria, é considerado um poema clássico da literatura judaica. Zipora Rubinstein (1946-1989) foi professora de Língua e Literatura Hebraica na USP e Unicamp.

(resenha do livro para o Google Books)



Comprei o livro pela Estante Virtual. Principalmente a tradução do poema me encantou. E todas as referências ali fundamentadas, um trabalho primoroso de pesquisa. Nosso (des)conhecimento de obras magistrais da literatura, às vezes, dependem do acaso...

Encontrei também um artigo que diz, de forma clara e com autoridade, a importância da obra de Tzipora e do significado da abordagem feita em sua monografia de mestrado. Veja a referência.

Sleiman, M. (1994). A metalinguagem da fraternidade de Shem Tov de Carrión - O cálamo e a tesoura nas asas de Tzipor. Revista USP, (23), 166-169.

No entanto, sinto que falta ainda uma análise mesma do poema, imanência a demonstrar os artifícios da linguagem, os argumentos do debate, as metáforas universais nas escolhas, enfim a justificá-lo como poesia. Transcrevo o início da parte 5 do livro, a tradução feita por Zipora do “Debate entre a Pena e a Tesoura”.

“Resolvi em minha mente a história que acontecera, quando eu com a pena escrevera. A fim de a justificar, e às gentes e aos príncipes mostrar quem me induziu a esta forma, de recortar com o ferro fragmentos e ornamentos, estando a pena e a tinta guardadas e encostadas. A respeito disso, do meu coração saquei palavras e fiz discursos:

                    Poema

Em nome do Autor dos Grandes feitos
e Criador das Alturas e das Profundezas,
escrevo canções e letras
inigualáveis em belezas;
igual à sua beleza não há bordados
abundantes em cores e formas;
não se compara a elas a beleza das moças; são bem-feitas,
e proporcionadas,
não com tinta e cálamo
mas com a espada de dois gumes
para deixá-las para as gerações,
para ganharem glória e renome.
E aqueles que as verão dirão:
Entre todas as belas formas,
entre todos os bordados e ornamentos,
existem, iguais à escrita e às letras?”


Contracapa do livro, talvez uma disputa entre Zipora, Shem Tov e Haroldo de Campos




(Petrolina,  reescrito em abril de 2019)



quinta-feira, 4 de abril de 2019

A computação eletrônica e o domínio de seu uso


A vida em sociedade deste século XXI não consegue prescindir de dispositivos de computação eletrônica. Computadores, tablets, celulares, ficam cada vez mais atraentes, práticos e acessíveis. Sua evolução é inimaginável em possibilidades de uso e apresentação.



Desenvolvidos desde o século passado, são ferramentas essenciais para o conhecimento, a interação e a informação e nos tornaram praticamente dependentes da tecnologia digital e da necessidade de uma educação nesse sentido. Começa-se pelo domínio de um vocabulário terminológico em língua inglesa, requisito básico da universalidade de sua compreensão.

Para a comunicação entre o homem e a máquina, foram desenvolvidas interfaces, a do hardware e a do software, necessárias à interação das linguagens de programação. São emissores e receptores mediados por códigos e sistemas, um mundo vasto e complexo, dinâmico e interativo, retroalimentado e retroalimentando-se constantemente.

A interface de software é a principal responsável em proporcionar a tradução intersemiótica, ou seja, a tradução em outros sistemas de símbolos não verbais, como a linguagem de uma máquina para uma linguagem humana. É o código que diz o que a máquina deve fazer e, consequentemente, interfere no comportamento de interação do usuário.

Um exemplo: se estou na fila do autoatendimento de um banco para sacar dinheiro e, inesperadamente, aparece na tela da máquina que eu preciso me dirigir a outro terminal para sacar, significa dizer que um não humano (coisa/objeto) gerou uma ação para um humano realizar. Isso foi possível graças ao código que, rapidamente, sobrepondo interfaces, fez uma leitura de, pelo menos, parte do contexto e comunicou o que e como fazer.

Autômatos, fazemos o que a máquina manda. E aí entram os algoritmos - códigos numéricos que regem o funcionamento do sistema - que não respondem à pergunta “o que fazer?” mas, sim, a “como fazer?” Semelhante a um tutorial passo a passo, seguimos procedimentos ordenados para alcançar o que desejamos ou para abrir “links” que nos encaminham a seus derivados e interesses, numa geração quase infinita de possibilidades. Observem as propagandas que aparecem em seus dispositivos eletrônicos, como se adivinhassem nossos desejos e alcance de consumo.

Diante desse “automatismo”, precisamos, urgentemente de uma alfabetização algorítmica em todos os níveis da educação. Pierre Lévy, filósofo referência nesta área, afirma que a inteligência humana evolui graças à tecnologia e que essa é, essencialmente, linguagem. Assim, é preciso dominar essa linguagem para contribuir e potencializar a inteligência coletiva, algo que precisa ser construído e não algo que se deve apenas observar. Temos um conhecimento cumulativo, que sempre vai criar algo novo. O fundamental é, pois, aumentar a capacidade cognitiva, aumentar a reflexão e estar mais cientes da forma como nos comunicamos.

A questão, neste momento, é que o domínio dessa linguagem é exclusivo de poucos, e não podemos nos limitar a ser, apenas, seguidores autômatos. Por isto o desafio de nos tornamos também criadores. Comparemos este desafio com a invenção do alfabeto – um código - na história da humanidade. De simples usuários, o que muitos ainda são, tornamo-nos criadores de vários outros códigos, inclusive os da comunicação algorítmica. Mas a mudança de status - usuários para criadores - leva tempo e muito esforço.

A rede mundial de computadores, Internet e Web, a interface gráfica da rede, é algo tão poderoso que sequer conseguimos ter ideia do seu pleno alcance, tanto no presente, como para o futuro. Seja nas relações pessoais ou institucionais, se pensarmos nas pesquisas de uma forma mais geral, pensarmos também na política, na guerra, no desenvolvimento que desejamos, não podemos ficar à margem do bem e do mal entre o automatismo que vem se impondo e a alienação paulatina de nossa cognição.

Mais do que nunca é hora de ficarmos atentos com estas constatações, cobrar das escolas de nosso país, públicas ou particulares, não só uma educação tecnológica fundamental, mas também um olhar crítico sobre o uso dessa mesma tecnologia, de sua dinâmica e de nossa capacidade interativa e criadora.

Vivemos numa sociedade da informação e do conhecimento. Nessa realidade, constatamos também que o desenvolvimento e a Economia das nações se fundamentam muito mais no conhecimento de uma Economia de Dados, de informações substanciais até para o equilíbrio mundial, do que numa Economia basicamente de Mercado, como poderíamos achar correto até há pouco tempo.

Estamos preparados para isso?



Elisabet Gonçalves Moreira (colaboração de Cecílio Bastos) 

Petrolina,  abril de 2019

"nenhuma violação de direitos autorais pretendida".

sexta-feira, 1 de março de 2019

RELATO DE UMA EPIFANIA



Epifania significa aparição ou manifestação de algo, normalmente relacionado com o contexto espiritual e divino. Do ponto de vista filosófico, a epifania significa uma sensação profunda de realização, no sentido de compreender a essência das coisas.  Ou, no meu caso, de buscar e interagir com essa essência. Um olhar que envolve também pesquisa e aprendizado.

Assim, relato: quando estive nas ruínas de Delfos, na Grécia, como turista ocasional, meus olhos se deslumbraram. Visitando o museu arqueológico, de uma sala a outra, depois de admirar a estátua da Esfinge (se você não fizer isso, não foi a Delfos e seu museu, eis o pressuposto), o ideal da beleza grega sobretudo nos corpos adultos e nus masculinos, na riqueza dos infinitos detalhes dessa cultura milenar,  me deparei com a mais graciosa e inesperada estátua. Foi esse o momento quase mágico da epifania.

Olhando para a criança que sorria delicadamente, parei embevecida, emocionada. A expressão singela e o realismo inusitado “quebraram” a monumentalidade do que eu havia visto. Ela parecia sorrir para a foto ou para a posteridade?

Vida, senti vida, além da representação artística, atemporal.  Quanto afeto transmitido nesta criança... hoje posso conjeturar, mas, naquele momento, como mãe e como ser humano inundado de ternura para com o outro, vi nosso potencial amoroso e o que ele pode fazer como registro.  

Por que esta estátua foi feita? Por quem? O braço perdido, quebrado sem dúvidas em algum dos muitos terremotos, ou de guerras e saques havidos na região, não lhe tirou a beleza ou seu significado. Reproduzo novamente a estátua, com mais definição do que a minha fotografia.


Em Delfos estão as ruínas do templo do deus Apolo, local de seu santuário e do oráculo. Os gregos consideravam Delfos o centro do mundo e a cidade teve grande importância na Antiguidade, lugar de peregrinação por séculos. Como viviam então as crianças neste mundo?

Procurando conhecer um pouco deste universo e de seu legado para nossa cultura, soube que as crianças eram incluídas na vida adulta assim que tinham condições de viver. A vida da comunidade grega era interligada, desde o nascimento até a morte.  A infância era apenas uma idade de passagem, ameaçada por doenças, incerta quanto ao futuro e, sobre ela, se fazia um mínimo investimento afetivo. Explica-se assim porque eram representadas como adultos em miniatura. No entanto, no final do século IV a.C., na Grécia, as representações de crianças passaram a receber proporções e características infantis.

Olhe novamente para a foto. Teria quantos anos essa criança? Talvez três ou quatro. Ela se veste como um adulto, isto é certo. 
Uma túnica longa colocada no corpo, ajustada no corpo com um cordão. Percebe-se a abertura lateral, pela perna exposta, quase num gesto de alguém que caminha. Acessório complementar é o manto enrolado em torno de seu corpo e que termina solto, sobre o braço esquerdo. As dobras do tecido estão bem detalhadas, fruto de um trabalho artesanal de qualidade. Seja de mármore ou terracota (argila cozida), o material não lhe tira a importância do significado. 

Seu cabelo está primorosamente penteado. A mão, que parece um pouco grande, quase masculina no conjunto, se bem observada, destoa em certa medida da delicadeza da estátua. Soube depois que a cabeça foi aplicada separadamente no corpo e que data do início do período helenístico, no século III a.C.

Embora esta criança esteja vestida como um adulto, nem me importa se menino ou menina, o enlevo está mesmo no seu sorriso ligeiramente esboçado. Se não tem os olhos desenhados, o olhar está inserido na cavidade figurativa, realista. Há um dinamismo no conjunto que quebra o caráter fixo e imóvel das estátuas de um modo geral. Esta criança talvez esteja querendo passear conosco, brincar, pedir que lhe conte uma história...

Então, quem teria mandado fazer esta estátua? Sem dúvidas alguém com dinheiro e poder. A humanidade e a divindade eram próximas no cotidiano grego. Agradar aos deuses era uma forma de viver e assim se justificam os milhares deles e de sua fascinante mitologia, fundamento de uma visão de mundo.  

Na polis, valores cívicos também eram transmitidos pelas estátuas.
Seriam, pois, expectativas e esperanças trazidas pelas crianças para a força e o futuro da comunidade, outra justificativa coerente? Ou seria minha referência apenas um ex-voto em agradecimento ao deus Apolo pela vida de um filho, de um herdeiro ou de sua saúde?

Decoração, ex-voto, até mesmo uma oferenda fúnebre, esta estátua resiste em pleno século XXI, gerando perplexidade e indagações. Sobretudo o registro eterno de uma criança que sorri para o mundo, que me deixou mais humana nesta nossa história de ontem e de hoje. Tão somente isto...
Elisabet Gonçalves Moreira
Petrolina, fevereiro de 2019.


domingo, 20 de janeiro de 2019

DENTRO DE CASA

Minha casa é inundada de pequenos objetos, lembranças, curiosidades... todos com uma história de apego e conhecimento e não mera decoração. Tudo eu vou atrás, quero saber... já me disseram que tenho espírito de pesquisadora. Gostei disso, pois entre tantas observações que fazem sobre nossa pessoa (quanta aparência e sentidos temos?) está o valor que dou à curiosidade, às leituras mais profundas do que nos rodeia.

Talvez por isso também tenha me identificado com a Semiótica, essa leitura dos signos onde tudo é passível de leitura: “textos” em diferentes níveis de análise, encadeamento gerativo de ideias e significações.

Nestes dias de reclusão (por conta de uma convalescença) meus olhos se voltam para detalhes. Desenhando, procurando ver também nos ângulos, na luz e sombra de uma tendência “hiper-realista”, escolhi um pequeno anjo de liga metálica que fotografei, imprimi, copiei, pintei. Este anjo tem apenas 9,5 cm e uma referência “Faithfull Angels” by Ganz. Anjo dos milagres, escrito na tag. E com um pequeno texto, uma oração eu diria, que traduzi do inglês: “A fé vê o invisível, acredita no incredível, e recebe o impossível.”


Mas, nesta direção, um pequeno demônio se inseriu. Uma gárgula pensativa, cópia em resina (com um ímã nas costas) de uma gárgula da igreja Sacré  Coeur de Paris. Irônica, parece perguntar: E eu? Não faço parte de sua “instalação” doméstica?


Faz sim... quase sem perceber, também executei o mesmo procedimento. Os desenhos feitos ainda carecem de reparos. Apenas exercícios para percepção de luz e sombra, volume, e uso de diferentes materiais.

Mas a comparação do significado, deste contraste entre um anjo idealizado na figura feminina e um mítico monstrengo, fica inserida subliminar, a partir da própria escolha, consciente ou não. E na ousadia de fazer um texto sobre isto e uma pequena reflexão sobre a natureza humana.

Primeiramente uma referência sobre as gárgulas... Quem assistiu à animação da Disney “O corcunda de Notre Dame” viu como essa figura é usada. Quasímodo, o personagem criado por Victor Hugo, é similar a uma gárgula. E há várias adaptações cinematográficas, algumas antológicas.

Uma amiguinha de 8 anos me disse que viu a gárgula numa animação do Scooby Doo. Há jogos que   também usam a personagem, geralmente do mal, personificado pelo seu aspecto demoníaco. Em francês, a palavra é "gargoille", originalmente conhecida como "garganta". Daí “cuspirem” a água das chuvas, que escoa pelos telhados, fazendo parte da arquitetura gótica, nas catedrais medievais.

Existem diversos modelos de gárgulas, do grotesco ao satírico, mas é pela sua força simbólica que resistem e impregnam o imaginário ainda nos dias de hoje. Podem dar um aviso:  atenção, o demônio está sempre de olho. Ou, contemporizando, as gárgulas, lá do alto, servem para afastarem o mal, agindo como guardiãs da igreja.

Já os anjos, em toda sua inesgotável plêiade iconográfica, remetem a mais questionamentos do que as gárgulas. As representações destes seres do bem são sempre idealizadas. Tidos como seres perfeitos, carregam o conceito de beleza de nossa cultura através dos tempos. Beleza física e espiritual. Também os anjos são guardiões dos fiéis, protegendo-os do mal.

Existe uma hierarquia de anjos, categorias e funções bem definidas que o esoterismo e algumas correntes religiosas divulgam e complementam com associações de todo o tipo. De imediato eu só associo que os demônios são também anjos, expulsos do céu pelo Deus pai criador.

Assim, estas miniaturas que fazem parte do meu acervo doméstico – tenho muitas outras figuras de anjos – além de tê-las desenhado, carregam um significado especial para mim, apesar de minhas descrenças religiosas. A espiritualidade que se insinua, ancestral, fazendo parte da vida e de seus desafios. Alegorias? Sim, idiossincrática, gosto de pensar nestes desvãos sobretudo filosóficos.

Na eterna luta do Bem e do Mal, o homem sempre se viu dividido entre crenças e religiões, entre objetos, ícones e símbolos que tanto podem significar proteção como poder, medo ou fé. Escolhas que fazem parte de nossa humanidade e de suas contradições.


Gárgula original da Igreja de Sacré Coeur em Paris, pensativa e observando a cidade.



Petrolina, 20 de janeiro de 2019

Elisabet Gonçalves Moreira