Elisabet Gonçalves
Moreira
Para Genivaldo
do Nascimento
Notas de
viagem... de uma que se foi recente, já que nos recentes me preparo para outra,
saindo deste sertão, indo para um mundão que me desafia.
Pois bem, se
o assunto é de outra rota, nela retorno. Em registro de palavras/crônica, uma
narrativa do que teve encantos e também alguns contrários.
E nos
entretantos, também há questionamentos: para que serve uma viagem, aquela tida
como lazer ou turismo? O que nos move, como indivíduos, a estas aventuras, além
da zona de conforto do lar-doce- lar, para o desconhecido e possíveis
imprevistos?
Sim,
prevemos antecipação de olhares, alegrias, conhecer e mostrar – também - que
consumimos lazer em viagens de turismo, que compramos lembrancinhas, que
comemos o que há de típico, que tiramos fotos, que postamos em redes sociais e
que ficam armazenadas em nosso computador. Mas, o que fica em nossa memória? O
que pudemos presenciar, nos distantes, permaneceu e permanece nas proximidades
de nossas lembranças e no “upgrade” de nosso conhecimento?
A saída de
Petrolina, nestas margens do rio São Francisco, se deu num setembro, já
passado, de um ano que passa neste 2016. Éramos seis, com o motorista Chico,
ex-caminhoneiro, eu, Dri, Juli, Veronique, Lucas. Uma dobló e seis pequenas
malas, matulão de último tipo.
Cedinho,
pela estrada de Ouricuri, fomos vendo as paisagens do sertão pernambucano. Pequenas
cidades, vilas, arruados, fazendas cercadas. A seca castigando tudo, mas em
tudo havia uma cisterna de sobrevivência, aquela que capta a água da chuva. As
pedras, serrotes e olhares distantes acompanhando nosso trajeto.
Santa Cruz
da Venerada, vista da rodovia, pareceu tão linda quanto seu nome. São Francisco
apareceu venerado no nome do posto em parada para algumas delícias sertanejas a
gosto de café da manhã.
Visita ao
Museu do Gonzagão em Exu. Primeiro entrave: quase nada se pôde ver, centenas de
estudantes, seus professores e comitivas em visita. Mas pisamos na terra do
“rei”... havia certa pressa em chegarmos ao Ceará, almoço combinado para Nova
Olinda e um dia todo a ser preenchido. Programações antecipadas, horários, são limitações
que também cerceiam usufrutos e descobertas.
A Serra do
Cariri nos acompanhava, magnífica, pelo lado esquerdo. Sabíamos que o Ceará
estava do outro lado. No caminho
passamos também por Bodocó e ouvimos a canção dos antigamente, do sofrimento na
beleza da música de Luiz Gonzaga, pelo interfone de um paulista prevenido na
escuta.
Pau de Arara
Quando eu vim do sertão,
seu moço, do meu Bodocó
A malota era um saco
e o cadeado era um nó
Só trazia a coragem e a cara
Viajando num pau-de-arara
Eu penei, mas aqui cheguei (bis)
Trouxe um triângulo, no matulão
Trouxe um gonguê, no matulão
Trouxe um zabumba dentro do matulão
Xóte, maracatu e baião
Tudo isso eu trouxe no meu matulão
seu moço, do meu Bodocó
A malota era um saco
e o cadeado era um nó
Só trazia a coragem e a cara
Viajando num pau-de-arara
Eu penei, mas aqui cheguei (bis)
Trouxe um triângulo, no matulão
Trouxe um gonguê, no matulão
Trouxe um zabumba dentro do matulão
Xóte, maracatu e baião
Tudo isso eu trouxe no meu matulão
E, se houve
a saída, sempre houve a esperança do
Último pau-de-arara
A vida aqui só é ruim
Quando não chove no chão
Mas se chover dá de tudo
Fartura tem de montão
Tomara que chova logo
Tomara meu Deus tomara
Só deixo o meu cariri
No último pau-de-arara
Só deixo meu cariri
No último pau-de-arara
Enquanto a minha vaquinha
Tiver o couro e o osso
E puder com o chocalho
Pendurado no pescoço
Quando não chove no chão
Mas se chover dá de tudo
Fartura tem de montão
Tomara que chova logo
Tomara meu Deus tomara
Só deixo o meu cariri
No último pau-de-arara
Só deixo meu cariri
No último pau-de-arara
Enquanto a minha vaquinha
Tiver o couro e o osso
E puder com o chocalho
Pendurado no pescoço
Eu vou ficando por aqui
Que Deus do céu me ajude
Quem sai da terra natal
Em outros cantos não para
Só deixo o meu Cariri
No último pau-de-arara
Só deixo meu Cariri
No último pau-de-arara
Que Deus do céu me ajude
Quem sai da terra natal
Em outros cantos não para
Só deixo o meu Cariri
No último pau-de-arara
Só deixo meu Cariri
No último pau-de-arara
A subida da
serra é muito bonita. Grandes planos podem ser avistados, paisagens em
andamento. Lá no alto, o Ceará em divisa. Nada tão longe que não se possa fazer
em dois dias, como fizemos.
Em Nova
Olinda, almoço simples e sertanejo, quase um prato feito, na Fundação Casa
Grande, no centro da cidade. Ansiosos pelo café, soube do gosto quando feito
sem coar... No pequeno museu, dois meninos sabidos e simpáticos nos ensinavam
sobre os cariris, descendentes todos destas tribos ancestrais, dizimadas no
“desbravamento” e conquista do sertão.
Mas a
curiosidade e a intenção era visitar logo a oficina/ateliê do mestre Espedito
Seleiro e... claro, comprar peças exclusivas de sua arte no couro. Desenhos “ciganos”,
além das peças da vaqueirama, hoje em bolsas, sandálias, carteiras de consumo
“chique”. Até Vero, a francesa, levou uma linda e original bolsa das artes
sertanejas...
Vejam este
link, achei interessante porque bem ilustrado.
Os desenhos
de seu Espedito também se encontram em outras releituras. Como numa camiseta
que ganhei de Lucas, comprada ainda na Fundação.
O calor
abrasava no lugar comum da tarde. Para mim, algumas limitações depois dos 70,
mas Juli ainda foi conversar com os filhos e sobrinhos do mestre no ateliê,
artesãos em atividade. Já eu o conhecia de outra viagem, um artista em sua
glória.
Saída para
Santana do Cariri. Cidade linda, daquele interior onde a vida passa
lentamente... Visita ao Museu de Paleontologia, administrado pela URCA –
Universidade Regional do Cariri, cuja sede fica na cidade de Juazeiro do Norte.
Jovens adolescentes agora são acompanhantes das visitas. Bem informados,
mostram que aprenderam a lição. Aliás, vale a pena aumentar o conhecimento.
Esse mundo
pré-histórico, que conhecemos globalmente como jurássico, ali impressiona. Fósseis,
montagem e recriação de dinossauros e entornos, são um instigante registro para
pensarmos nosso planeta e suas incertezas...
Mas havia um
pôr-do-sol à nossa espera. Exatamente às 16 horas daquela terça-feira
memorável, subimos para a “cruz do pontal” no extremo da serra. Visão
espetacular. Antevisão do que deve ter sido o sertão quando foi mar.
Do
restaurante vinha o cheiro da paçoca de carne de sol sendo feita. Café
acompanhou o prazer que teve até sorvete para alguns. Lucas, Dri e Juli fizeram
a trilha da descida do pontal. Tudo muito seguro, tranquilo. Seu Chico “desce”
com o carro para pegar os aventureiros que depois sobem e todos nós vamos
apreciar o entardecer.
Fotos e mais
fotos; rapidamente o sol se põe atrás da serra, no outro extremo do vale.
Aplaudi, entusiasmada. Mas fui chamada a atenção para o medo imbuído da noite
que se instalava e da pouca gente no local.
Ida para a
cidade do Crato, onde passaríamos a noite. Estrada ruim, o nosso moderno
“pau-de-arara” chiava, apitava, num automático aviso de que havia porta
destravada. Às vezes seu Chico parava, batia as portas e daí a pouco tudo recomeçava.
Mas chegamos ao hotel Encosta da Serra, cansados e prontos para um banho e
saída para jantar.
Restaurante
Pau-d´Arco, ao lado do hotel. Suco de
laranja com couve, boa pedida. Mas o pedido foi de outra monta, de outra
bronca. “Espera” me ordenam. Algo explode acumulado dentro de mim, sem eu me
dar conta. Pode uma viagem também demonstrar o que estava dentro sem ser dito.
Nem foi a primeira vez, para me lembrar – ainda hoje - que sou apenas uma
engrenagem na peça, de valor equânime, mesmo em relações filiais. Enfim, viver
é aceitar seus desafios e aprender a ficar no que somos, em viagem ou em casa. A chegada de
Rúbia foi providencial; sem estragar a noite, o jantar foi selado. Assim
pudemos voltar mais tranquilos para o descanso na encosta da serra na Chapada
do Araripe.
Segundo e
último dia da viagem. Café da manhã no hotel, saída para Juazeiro do Norte,
atravessando a cidade do Crato. Seu
Chico assegurava que havia consertado o automático do carro...
Juazeiro do
Norte, a terra do Padre Cícero, a porta para se entender a fé e a religiosidade
do nordestino, dos seus romeiros em peregrinações. Conhecer como funciona esse
mercado da fé é realmente algo instigante. Desde a ida ao Horto para mais uma
subida de serra, e dali avistar não só a paisagem da seca ou a “arquitetura da sobrevivência”
nas casinhas coladas umas às outras. Ter olhos também para constatar, florescida
aos pés da gigantesca estátua do “padim”, centenas de romeiros, mendigos, doidos,
beatas, ambulantes de todos os tipos, ex-votos, cenários, instalações, numa apologia
da representação dos desígnios da fé. O que seria da história da humanidade sem
suas crenças e seus lugares sagrados?
Lá você vê,
revive histórias só com o olhar, se souber fazer isto. Ao seu lado, há uma
beata pagando promessa, há uma mulher que chora emocionada durante a missa, uma
vela, um terço, uma estátua do padim, um retratinho, uma lembrança para sempre
preciosa.
Veronique se
sentiu incomodada na sala dos ex-votos. Compreendo-a. É um soco no estômago. Um
parêntese: quando estive na cidade, também santuário, de Lourdes, na França,
muito me marcou ver placas e placas nas paredes da igreja, com os recados das
mães pedindo proteção por seus filhos na primeira guerra mundial. A vida pulsa
– como sempre – nas incertezas de nossa humanidade e nos mistérios da vida e da
morte. Compreendo também como surge a fé e a esperança...
Vero me
lembra, na releitura destas frágeis linhas pós-escritas, que, no mercado havia
dezenas de exemplares de literatura de cordel. Compramos alguns e marcante está
o folheto “A oração do fechamento de corpo que Padre Cícero deu a Lampião.” O
cruzamento de mitos, de heróis e santos dialogam no imaginário sertanejo e
pulsam até hoje.
Nosso
pequeno grupo, que se dispersara, reúne-se para ir ao centro de Juazeiro do
Norte visitar o memorial e a igreja do Padre Cícero. Preferi ficar por perto,
nas barracas da praça, verdadeiro mercado de lembrancinhas religiosas, comidas,
artesanato barato. Dali fomos para o almoço no restaurante típico, “Coisas do
sertão”, um self-service, que, ao chegarmos, tinha quase todos as panelas, num
grande fogão à lenha, já no final, raspados... Mas deu para “encher o bucho” e
ainda comer rapadura de sobremesa.
E a volta...
seu Chico e suas falas para a dobló que continuava a apitar sem parar...
Paramos no entanto nas imediações de Bodocó para comprar queijo manteiga,
queijo coalho, espécimes bem sertanejas. E, de novo, em Santa Cruz da Venerada
para uma ida ao banheiro, café, doces...
Houve uma
curiosidade: sim, seu Chico fez questão de mostrar e demonstrar. Logo depois de
sair de Exu, na rodovia, o carro, mesmo em ponto morto, “sobe na descida” como
se estivesse em marcha à ré... Vôte!
A serra do
Cariri foi ficando para trás, no nosso lado direito. A chegada a Petrolina se
deu antes de 7 da noite.
Dois dias
apenas, mas bem cheios. Uma rota que nos mostrou – mesmo a mim que já a
conhecia – o quanto este sertão oferece para viajantes em busca de horizontes,
geográficos e humanos.
A crônica
mereceu aprovação de Juli que assim se manifestou:
“Esta viagem foi maravilhosa, acho que uma das mais belas que já fiz na minha vida. ... Éramos vários transplantados de outros mundos (São Paulo, Grécia, Itália, USA, França) convergendo numa viagem às brenhas de um sertão esquecido por tantos. Revivi o sertão, vi com outros olhos, passei tempo com a família e amigos queridos. Muitas descobertas e redescobertas não apenas das minhas raízes, mas de mim também e de cada um.”
Apois, o mundo está nas pegadas da história, do conhecimento
que fazemos e conseguimos usufruir. Ponto final.
(Fotos de Juliana G. Moreira)
(Petrolina,
em 10 de outubro de 2016)
(Releitura e fotos em 03/05/2020)
(Releitura e fotos em 03/05/2020)
Que emoção sentir o sertão fazendo uma intersecção com o mundo!! Privilegiados!!! Lindo momento!! Viva o sertão!!!
ResponderExcluirO texto é bonito. A região é bonita. A blogueira é arretada.
ResponderExcluirRelendo aqui essa crônica, senti uma saudade enorme daquela região mítica e bela. As imagens das palavras de Bet produziram esse sentimento. Abraço
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