29 de junho do pandêmico 2021, dia de São Pedro, fechando o ciclo junino, aniversário de Gícia Amorim, mãe de Maria Alice Amorim, poeta que (re)lança seu livro de poesia, dedicado à mãe, anamnese no desencadear de mulheres e deusas míticas transfiguradas em palavras e evocações. Memória deflagrada pela história da tataravó Aurora, cigana raptada pelo português Pedro, nas beiradas da fazenda Ouricuri da Bahia, município sertanejo de Casa Nova, tempos idos dos finais do século XIX, distribuindo-se e arraigando em outros acampamentos e sítios nômades de avós e tias artistas de outras histórias.
Ao nosso alcance um poema, uma narrativa subliminar em
versos, um livro primorosamente editado. Salve Funcultura PE, lei Aldir Blanc,
Zanzar editora e uma equipe antenada.
ERRE AURORÆ ERRE (capa do livro)
Vejo uma sombra rosa de letras em minúscula grafia sobreposta
no título: a ou e? Ou ambas amalgamadas? O que dizer destas
folhas desenhadas e coloridas sobre o fundo verde? Assim como nuvens ou ondas
separando partes do livro?
Questionamentos gerando inferências, interpretantes indiciais para uma
possível e múltipla decodificação.
ERRA AURORÆ ERRA
Uma constatação ou uma ordem emanada para um verbo
imperativo? É para Aurora errar? Ou apenas um fonema destacado, um substantivo,
o nome da letra erre/errae? Que Aurora é
esta? Nome próprio ou comum no significado de manhã, de um convite para o
alvorecer?
A ambiguidade se instaura... é a voz da poesia que detém o
poder de resposta ou uma leitora atenta neste processo de decodificação.
Imagens, cores, palavras, tudo se mescla e instiga.
À procura de resposta divago em minhas próprias lembranças.
Estudei latim no antigo ginásio do século passado e entendo este Æ. A
desinência característica do nominativo singular é -a e a do
genitivo singular é -ae, identificando a primeira declinação. A
pronúncia é outra história, ae ou é. Lembram do curriculum
vitae, ou seja, currículo de vida (em português, essa relação é normalmente expressa pela preposição de).
Ora, nesta cadeia de associações, esclarecedor é saber que a palavra
“genitivo” vem do verbo “ginere”, que significa gerar, originar. Logo, genitivo
é o caso que traz a origem, a raiz. Não é isso que a nossa poeta procura?
Já começamos a nos
inquietar. Essa gênese hereditária que se associa também, no caso
genitivo, a uma relação de posse, entre o nome e outro nome. Seria o erro de
Aurora? O que Maria Alice quer nos
dizer – ou nos jogar - nestes cruzamentos e fronteiras de signos e linguagens?
Ela nos provoca
para mais falas: “quem virá dizer-nos palavras aladas, aurora” (p. 43). Reiteração
do mote na narrativa da própria Alice, dessas avós ciganas, de questões tão femininas
que ressoam em nossas vozes e consciências... só se faz poesia com vida.
Essa Amorim, Maria, que mora na rua da Aurora. Erres rolando,
variações fonéticas de nosso português brasileiro, sem a dureza gutural de
outras falas. Dali, nesta parte de um antigo Recife, avista-se o rio
Capibaribe, limite para outra margem. Alice se situa numa história de migrante,
de caminhos vários. Construiu pontes por lá, desde que saiu de Petrolina,
margem esquerda do rio São Francisco, onde nasceu e cresceu. Como o rio
nordestino que desagua no Atlântico mar.
De uma rua que virou prosopopeia, ganhando vida, além da
simbologia do nascimento dos dias, todas as manhãs que se estendem ao longo de
erros e acertos.
“o universo é incrivelmente simples, aurora
dizem os astros”
Na dedicatória que fez no meu exemplar, Alice alegou
simbolicamente “Desejo que AurorA e_rre feliz sob a brisa do Velho Chico.”
Entendi e estendi a caligrafia diferenciada para o título, replicando a chamada
da atenção para o significado, metáfora de capa. Essa errância de voos e
leituras adivinhatórias, desafios de entendimentos, seriam mesmo tão simples
assim?
Na contracapa, sem ainda abrir o livro, podemos ler de uma
proposta trilíngue:
“escrito em português,
logo veio o desejo de que
o poema fosse lido, dito e
ouvido em mais duas línguas:
o espanhol e o francês.”
Por que especificamente estas duas línguas, proximidade de
origem, latinidade atávica? Arregalamos olhos. Aguçamos ouvidos. Mas, justamente, nessa tradução, em parceria
trilíngue, é que o livro nos desafia para outras leituras e outros leitores.
Não é mais só um livro, são três leituras distintas, com cargas semânticas
diferenciadas. Também a possibilidade acessível de ouvir o livro traz esta
inovação contemporânea pelo QR Code, tecnologia avançando na recepção da obra.
Como todos os livros de Maria Alice, esse também é um livro
lindo, com uma diagramação especial, objeto para ficar à mostra. Sua dona
entende de semiótica e isso pauta a produção. Signos visuais compartilham
diálogos e experiências. Não há nada figurativo, antes a subjetividade
implícita das escolhas e da voz poética.
Seu talento como pesquisadora de cultura popular abre-se
numa produção exclusiva de poesia, prima vez, e, na abertura, Alice reproduz um
verso de Safo, voz feminina de priscas eras e que nos conclama “Encontra, tu
mesma, tua própria voz”. Tanto fez que encontrou.
“em que cascalhos trotam os teus
cavalos, aurora
onde se escondem suas rédeas
sumiu o prumo da caravana” (p. 39)
“en cuál grava trotan tus caballos, aurora
donde se esconden sus rendas
desapareció la plomada de la caravana” (p. 89)
“dans quel sable trottent tes chevaux, aurore
où se cachent tes brides
le cap de la caravane s´échappe” (p. 139)
Transcrições literais, mas cujo ritmo os diferencia
estrategicamente. Novos poemas se apresentam. Precisaríamos de muito mais
leituras, comparações, escolhas. Por este momento apenas uma breve indicação. Os
caminhos da caravana, das vozes, dos apelos às musas várias vezes reiterados,
deusas e ninfas das errâncias existenciais.
“erre aurora erre”
Não dá para decifrar tudo. Mistérios que fascinam e
continuam...
E repensar – sempre - os caminhos da poesia e das vozes
femininas que ousam. A lembrança de Gícia, que se perde em delírios dos
esquecimentos senis, percorre versos sem erros, memória que se atualiza, afetos
acumulados e que rescalda Maria Alice para seu primeiro livro de explícita
poesia. Irmano contigo.
Sim, te entendo. Oui, je te comprends. Por supuesto que
sí.
Elisabet Gonçalves Moreira
Petrolina, 29 de junho de 2021
(Para solicitar o livro, escrever diretamente para a autora por e-mail, linguadepoeta@yahoo.com.br ou procurar no instagram
@zanzarcoletivo)
Afetos acumulados, palavras aladas. Bet viaja nós erres e variações da tataraneta da cigana Aurora com tanto gosto que nós, admiradores da pesquisadora de cultura popular, agora queremos com mais afeto aínda a explícita poesia de Maria Alice Amorim.
ResponderExcluirÉ isso mesmo Carlos Laerte, obrigada... queremos mais.
ExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirElisabet, recebi o livro de Maria Alice (vc sempre muito gentil em suas lembranças de mim) há dois dias, mas só quis dizer algo após começar a "errar". Praticamente de um fôlego só, li os poemas, ensejosos ensejantes de mais. Errando, encontrando, me perdendo, catando... literalmente “zanzei com Aurora”, como Alice me convidou. Poemas pequenos, lapsos do dia, de memórias, de quereres profundos ou simplesmente vivências boreais de uma aurora poética ou de uma Aurora também buscada em outras (auroras). Em meio a tudo, fica um "cadê", procura por mais e mais querer também ele. Na verdade, a gente pergunta mas não quer resposta: quer auroras. Tantas que até meus olhos leram o francês (3º subtítulo), mas preferi uma revelação transmutada em verbo (coisas de como as representações se manifestam de imediato, independente de outros elementos): erre aurore (-se)(e) erre. Uma contínua procura que talvez se associe à impressão de versos que me gritaram um percurso: “a carroça se desprende/vejo teu rosto duplicado no lete”(p. 40); “a neblina andeja/talvez me roube a visão” (p. 47). Mas, Aurora, “não suma...não some, não some” (p. 41). Aurore-se, Maria Alice.
ResponderExcluirObrigada também I pela resposta, sempre criativa, instigadora e instigante... aproveito para perguntar: cadê suas errâncias?
ResponderExcluir