Bet com t mudo

Minha foto
BET COM T MUDO... Quem me conhece, reconhece? Já me imagino receptora deste blog. Quem é esta mulher? Quem é esta Eli, Elisa, Betina, Betuska, Betî, resumida numa Bet com t mudo? Esta afirmação diminuta diz (ou desdiz?) uma identidade... Assim, quem sou eu? Sou (sim) uma idealizadora das pessoas, das relações, das amizades, das produções minhas e dos outros. Consequência: um sofrimento que perdura... na mulher crítica que procura saber e tomar consciência finalmente de quem é e do que ainda pode fazer (renascer?!) nesta fase da vida, um envelhecimento em caráter de antecipação do inevitável. Daí a justificativa do blog. Percorrer olhares, visualizar controvérsias, pôr e contrapor, depositar num receptor imaginário (despojá-lo do ideal, já que eu o sou!) uma escrita em que o discurso poderá trazer uma Bet com t falante... LEITURAS, ESCRITAS, SIGNATURAS...

quarta-feira, 29 de setembro de 2021

MOMENTOS COM PAULO FREIRE

 Tantas homenagens neste centenário do educador Paulo Freire (1921-1997)... estou comovida e triste. Essas comemorações por centenários ou décadas nem sempre traduzem sinceridade. Mas, neste momento de escuridão bolsonarista, sim, é muito bom recordar quem foi Paulo Freire e sua importância. Muito além de frases de efeito, pensar na proposta educacional, afirmativa, concreta, da atuação dialógica no aprender/apreender/ver/ler o mundo. Essa troca fundamental em que se baseia nossa humanidade.

Paulo Freire visitou Juazeiro da Bahia em três momentos, a convite de Dom José Rodrigues, bispo católico, identificado com uma igreja progressista e atuante sobre as injustiças da realidade socioeconômica de nosso país. Em 1983, realizou um curso de formação de educação popular com 25 monitores. Nesse ano ele autografou para mim seu livro “Pedagogia do Oprimido”, que me nutria ideologicamente, seja como professora, seja como militante em movimentos sociais e políticos.

         
Paulo Freire e Dom José Rodrigues.          Roda de conversa com Paulo Freire  
                                          Acervo da Diocese de Juazeiro, BA

Em 1984, um trabalho de formação com 11 ciclos de cultura, que funcionavam em três bairros da periferia da cidade e oito em cidades do território “Sertão São Francisco”, onde a Diocese atuava. Em 1986, o educador retornou à cidade juazeirense para continuar o trabalho de formação.

Foi nesse momento que pude participar dessa formação, ainda que morasse em Petrolina, Pernambuco, do outro lado do rio São Francisco e não fizesse parte da Diocese ou de movimentos católicos. O movimento das Diretas Já, que sacudiu o Brasil desde 1983, consolidara o fim da ditadura militar (1965-1985). Desde os tempos de estudante na USP, nos anos bravos da repressão, agora em Petrolina para onde me mudara em 1976, nunca deixei de atuar politicamente. Essa é outra história, mas alguns fatos dela ainda quero narrar, pois fui até perseguida pelos acólitos do poder local, já que atuava como crítica dos desmandos políticos em jornais da cidade.

Amigas me falaram da possibilidade de participar desse encontro com Paulo Freire e não hesitei. Foi uma semana intensiva, todos alojados em Carnaíba do Sertão, distrito de Juazeiro, onde havia um Centro Diocesano de treinamento. Elza Freire, esposa de Paulo, estava também presente. Infelizmente ela viria a falecer ainda neste ano, em outubro de 1986. Era, como Paulo, uma pessoa amável e firme em suas convicções. Havia uma divisão de tarefas, lembro bem. Enquanto Paulo falava teoricamente sobre Educação e seu posicionamento pedagógico, Elza se dedicou a uma parte mais prática, mostrando exemplos de como alfabetizar a partir da conscientização, tirando dúvidas em geral.

O mais legal dessa semana eram os papos descontraídos, nas varandas do alojamento, à noitinha, após o jantar. Foi ali que o homem Paulo Freire se me apresentou em várias facetas. Um ser amoroso que transbordava fé e empatia. Conto aqui alguns detalhes... Muito me surpreendeu ele se declarar devoto fervoroso de Santa Teresinha do Menino Jesus, como é conhecida Teresa de Lisieux, nascida em França. Não confundir com outra Teresa, Santa Teresa de Ávila (1515-1582), nascida na Espanha, embora haja alguns pontos em comum na história destas duas santas, freiras carmelitas. Não sendo católica praticante, eu conhecia superficialmente alguns detalhes. Teresa de Ávila é conhecida por seus êxtases, um misticismo exacerbado e o fato de ser considerada uma das grandes escritoras da literatura espanhola.

Teresa de Lisieux (1873-1897) teve problemas de saúde desde a infância, tornou-se freira e pautou sua vida pela busca da santidade, acreditando que não era necessário realizar atos heroicos e nem "grandes feitos" para atingir a santidade e nem para expressar o amor de Deus, “A única forma de provar meu amor é espalhando flores e estas flores são todos os pequenos sacrifícios, cada olhar, cada palavra e cada pequeno ato de amor.” Como não entender o olhar e a devoção de Paulo Freire inspirados pelo amor ao próximo?

Aliás, Frei Betto, lhe colocou um epíteto síntese: “Paulo Freire, o educamor”, numa crônica de 2001, quando da comemoração de seus 80 anos. Décadas e memórias se avolumam e se desdobram...   

Outro diálogo essencial com Paulo Freire se deu ao conversarmos sobre nossa situação pequeno burguesa. Sendo professora, trabalhando em até três períodos muitas vezes, com condição financeira relativamente satisfatória, sempre tive empregada doméstica. E, mesmo antes das leis de regulamentação do trabalho doméstico, eu já pagava o salário mínimo e respeitava os horários da jornada. Bom, isto pode não vir ao caso agora, mas Paulo me ajudou a entender – se não justificar – o processo em que se inserem estas relações dentro de nossas casas. Se pagamos o serviço, sempre seremos os empregadores, os patrões, com toda a carga semântica que envolve essas designações no universo do trabalho e suas diferenças sociais.

Portanto, se se luta por justiça social, o serviço que as empregadas domésticas executam devem ter esse lado justo, profissional sim, pago com todo o merecimento e respeito. E foi assim que Paulo Freire, um dos fundadores do PT, Partido dos Trabalhadores, também disse que, já com certa idade, sem saber dirigir, mas com condições financeiras, comprou um carro e contratou um motorista.

Foi quando ele deixou claro: sim, classes sociais diferentes, mas, para qualquer posicionamento, “eu sei de que lado estou”, de uma luta de classes em que os menos favorecidos têm que ter voz e direitos. Igualdade e justiça social como parâmetro de nossas vidas, na luta pelo bem comum.

Paulo Freire gostava de citar este caso e ele aparece no livro/entrevista “Essa escola chamada vida”, depoimentos ao repórter Ricardo Kotscho, de Paulo Freire e Frei Betto (Ed. Ática). Nessa prática, nessa escola chamada vida, um camponês no Maranhão questionou um voluntário: “Meu amigo, se você pensa que vem aqui ensinar nós a derrubar o pau, não precisa, porque nóis já sabe. O que nóis quer saber é se você vai tá com nóis na hora do tombo do pau”. (página 62)

Sim, “a confiança do grupo popular no intelectual que se coloca a serviço dele nasce da experiência de estar na hora do tombo”, um aparte conclusivo de Frei Betto (página 63). Por isso que sempre postulo, nas horas de desafios, de consciência das desigualdades, “sei de que lado estou”.

Nos vários livros que tenho de Paulo Freire ou sobre ele, encontrei, depois de 35 anos, anotações feitas em um bloquinho sobre a essência política e pedagógica de seus conceitos sobre Educação. Minhas anotações estão datadas: 19/4/86. E ali também encontro, com sua letra, o endereço e o telefone de sua casa, no Sumarezinho, em São Paulo.

Assim que viajei a São Paulo, acredito que em 1987, não tenho certeza, telefonei para ele e recebi um convite para almoçar em sua casa. Uma linda casa e um almoço delicioso, tipicamente pernambucano, com baião de dois e carne de sol. Lá estavam presentes também Frei Betto e um convidado especial, o escritor americano Ira Shor. Ambos escreveram livros sobre Paulo Freire.

Só lembrando que o livro de Ira Shor, “Medo e Ousadia”, publicado no Brasil pela editora Paz e Terra, é tido como um referencial qualificado para os tempos atuais, pelo avanço do fascismo e da extrema direita tanto nos Estados Unidos como aqui no Brasil. Temos cada vez mais dificuldades históricas para desenvolver o espírito crítico, uma educação emancipadora, numa sociedade que retroage pedagogicamente.

Descontraídos, conversamos assuntos vários. Ainda me enterneço quando lembro do seu carinho e atenção. Ira Shor se ofereceu para tirar a foto, a seguir.

Elisabet G. Moreira e Paulo Freire, em sua casa, em São Paulo, idos dos anos 80.

Ainda outra lembrança me veio. Paulo Freire esteve rapidamente em minha casa, ainda no ano de 86. Na conversa, falei de meus estudos de língua e literatura russa, na USP, e, já naqueles idos, falamos na relação dialógica do discurso, estudada por Mikhail Bakhtin. Paulo tinha conhecimento da importância dos estudos linguísticos a par do aspecto político e filosófico da linguagem.

De repente, surgiu um nome e um livro até hoje maldito: “Os condenados da Terra” de Frantz Fanon (Civilização Brasileira). Uma das leituras fundamentais de meu marido e que fez a ponte para Paulo Freire se manifestar, dizendo também que, para ele, este livro lhe foi a grande referência. Assim como a “História da riqueza do homem”, de Leo Huberman (Zahar Editores), livro que me abriu os olhos para consciência da exploração capitalista, desde os tempos de estudante.

Só para situar ligeiramente: Frantz Fanon (1925-1961) nasceu na Martinica, mas dividiu a sua vida entre a militância pela independência anticolonialista, sobretudo na Argélia, e a teoria crítica, desenvolvendo uma tese pioneira que chamou de psicopatologia da colonização. Em síntese, os colonos, representando a civilização, nunca viram os nativos como membros de sua espécie, daí que o processo de descolonização sempre foi violento e violentador. Sejam condenados da terra ou oprimidos em seu desafio no ato de libertação, Paulo Freire soube refletir e atuar no contexto pedagógico dessas relações.

Paulo Freire também foi um grande intelectual, sem dúvidas. Mas não se colocava como um provedor infalível de conceitos. Deixava claro que não há ninguém mais culto do que o outro. O que há são culturas paralelas, socialmente complementares. Lições que se desdobram dialeticamente em vários textos, livros e ações. Pensar e repensar a prática é prover a si mesmo e a vida.

Talvez eu ainda escreva na continuação de registros, de momentos... geração de fatos e significados, no reforço de um aprendizado. Tive uma experiência marcante com um grupo de mulheres trabalhadoras, lavadeiras, na periferia de Petrolina, em 87, como voluntária. Depois de décadas, avaliar o que não consegui atingir nos finalmente pode ser exemplar nas ambiguidades dos contextos, da relação teoria e prática.

Pouco sabemos e saberemos de Paulo Freire se não o revisitarmos continuamente. Momentos que se superpõem e nos instigam como educadores e como cidadãos. Entender a pedagogia do oprimido pelo vocábulo grego Paideia significando ao mesmo tempo educar e civilizar, o outro e eu, uma educação libertadora, de conscientização do sujeito e da História onde atuamos e vivemos.

Petrolina, 28/09/21

10 comentários:

  1. Maravilhoso o texto e os detalhes. Aprendendo com eles

    ResponderExcluir
  2. Um marcante registro de décadas e memórias...Uma prática,um pensar,lições que se desdobram dialeticamente... Continuo aprendendo.

    ResponderExcluir
  3. Quanto sentimento! Paulo Freire deixou a semente do bem no mundo. Santa Teresinha do Menino Jesus, almoço pernambucano, quantos detalhes. Fico feliz por vc, Bet. Que tesouro! Realmente uma bela e rica homenagem! Parabéns!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigada Rúbia, os afetos fazem parte do aprendizado, vc já disse isso também.

      Excluir
  4. Querida Bet, precisamos conversar sobre algumas passagens vividas com o querido e inesquecível Paulo! Elas nos transportam ao homem, querido e simples; amável e falível, que muitos desconhecem em sua essência de puro amor ao semelhante. Belos e felizes momentos que você registrou! Bjs

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigada João, sim, palavras e trocas, Paulo Freire, "educamor".

      Excluir
  5. Em tempo : quanta saudade também de Elza…

    ResponderExcluir
  6. Sim, sem dúvidas, companheira pouco lembrada, mas complementou a vida e obra de Paulo.

    ResponderExcluir