Sim, há semelhanças, embora, reconheça-se, haja muito mais
diferenças. O estudo comparativo entre corridos e literatura de cordel é um
desafio instigante e merece um aprofundamento não só acadêmico, como de suas
características peculiares. Este trabalho pretende mostrar pressupostos básicos
e suas possibilidades de ampliação em leituras e pesquisas, com paralelos em
ambas as referências.
O estudo das origens da literatura de cordel e de suas
variantes evidencia que esse modelo de literatura popular não é exclusividade
do Brasil ou restrita ao Nordeste, mesmo porque o gênero, em sua essência, foi
trazido pelos colonizadores europeus para as Américas. Nas terras colonizadas,
essa literatura adquiriu feição distinta no diálogo com outras realidades,
histórias particulares e atores diferenciados.
O nome “corridos” foi tomado, ao que tudo indica, dos romances
corridos de Andaluzia, na Espanha, assim chamados pela maneira fluente com
que eram interpretados. Em sua origem, eram canções feitas em seis linhas,
versos que tinham uma só toada, sem estribilho. Como dizemos, iam “corrido”, correspondente,
em português, ao particípio passado do verbo correr e depois substantivado. No Brasil,
na capoeira e no samba-de-roda há também corridos que, embora não tenham
esse nome, são assim cantados, com fluidez e sequencialmente.
Os corridos, tipicamente mexicanos, são, pois, narrativas
originadas da literatura popular oral em forma de versos e que migraram para as
“folhas soltas”, ou volantes, impressas no final do século XIX e início do
século XX, com o desenvolvimento do setor gráfico. É impossível dissociar o
estudo dos corridos da História do México, pela força que tiveram nos acontecimentos
históricos e revolucionários daquele país, atuando como importante meio de
comunicação e informação. Sob esse
aspecto também o constatamos aqui no Brasil, embora com diferentes motivações e
interesses.
Naquela época foi produzida a maioria dos exemplares
conhecidos, sobretudo os corridos que se referem aos líderes revolucionários,
religiosos ou populares, assim como seus feitos e, inclusive, seu “martírio”,
mortes brutais, traições e assassinatos. Daí para a mitificação é um salto,
algo que a literatura popular sempre fez com seus ídolos e referências
significativas.
As folhas soltas, impressas com
os versos dos corridos, eram vendidas por centavos, exibidas geralmente sobre a
terra batida e seguras por pequenas pedras nas feiras livres, festas de
comunidades e encontros de corridistas. O vendedor geralmente fazia uma
espécie de “comercial” do tema do corrido para atrair os compradores.
Assim como os vendedores de
folhetos de cordel. Cheguei a ver, na feira livre de Juazeiro, Bahia, ainda nos
anos 70, vendedores abrindo sua mala com os folhetos, lendo alguns,
improvisando versos e chamando a atenção do público. Esses folheteiros andavam
de cidade em cidade, uma vida nômade à procura de um público que gostasse de
poesia e do que, sob esse gênero, lhe pudesse ser oferecido. Folhetos também
eram vendidos em barracas nas feiras, aí, sim, alguns dependurados em
cordinhas. Hoje, ainda são colocados à mostra, com prendedores de roupa,
expostos num tabuleiro ou protegidos em saquinhos plásticos, comercializados em
diversos lugares, desde feirinhas a bancas de revista.
Ilustração de Fábio Fernando (Arquivo da Estação do Cordel)
Nas cidades mexicanas, os
corridos, impressos como folhas soltas, em vários tamanhos, às vezes
frente e verso, eram vendidos por garotos ou desempregados nas esquinas e ruas
dos bairros populares onde tinham público certo, já que a elite não apreciava
este tipo de comunicação, “popular” demais para um gosto burguês e
sofisticadamente europeizado.
A característica fundamental do
corrido é mesmo a espontaneidade, sua linguagem e música simples, concisas. A
estrutura formal mais usada é o quarteto de oito sílabas, rimas abab, o
que permite que vários corridos sejam cantados com uma só melodia. Este caráter
também permite sua atualização, modificando-se as letras a depender das
circunstâncias. Tanto assim que há muitas versões para um mesmo corrido.
Um exemplo é “La Cucaracha” – A
Barata -, um corrido que acompanhou a Revolução Mexicana. Para tanto, temos La Cucaracha porfirista, La
Cucaracha villista, La cucaracha
mojada.
As ilustrações dos corridos
impressos são completamente diferentes da xilogravura, característica das capas
do cordel brasileiro “tradicional”. Trabalhava-se sobre pranchas de metal,
impressas junto com a letra do molde. José Guadalupe Posada (1852-1913) foi o
mais importante ilustrador do início do século XX no México. Posada usava duas
técnicas, o da água forte em relevo e o da linha branca, também chamada de
gravação em metal tipográfico, intercalando-as muitas vezes.
Ilustrando a capa dos folhetos de
cordel, no Brasil, há que se considerar o trabalho artesanal da xilogravura,
entalhada numa placa de madeira com a ajuda de instrumentos cortantes, deixando
em relevo a figura ou forma – matriz - que se pretende imprimir. Nesse sentido,
é uma forma singular e representativa da expressão visual e artística desses
ilustradores, às vezes o próprio poeta, mesmo que, hoje, seja pouco utilizada,
pois as gráficas se modernizaram para grandes tiragens, usando outras técnicas
de impressão.
Capas de folhetos
de cordel, ilustradas com xilogravuras.
Na temática dos corridos, não muito diferente dos folhetos
brasileiros, encontramos narrativas que cantam fatos fictícios ou não, trágicos
ou cômicos, desastres naturais, amores e tragédias, vida e morte de bandoleiros
e assuntos do cotidiano. Contemporaneamente, fazem muito sucesso os
“narcocorridos”, tidos por alguns como uma forma de resistência, sobretudo na
fronteira com os Estados Unidos da América. O nome já indica sua
especificidade, ao prantear os heróis e destacar os carteis das drogas.
O corrido, histórico ou não, também pode ser um meio, não só
para conhecer o passado, como para compreendê-lo, principalmente para aqueles
distantes do poder e dele alijados econômica e socialmente. As desigualdades e
injustiças sociais sempre estiveram presentes na história do México. Alguma
semelhança?
Há uma preocupação, entre os estudiosos mexicanos, em
registrar também a pauta musical dos corridos. No Brasil, acho essa prática
pouco difundida. Até mesmo a performance oral da literatura popular é uma
preocupação relativamente recente. Não sei se porque ainda se pode conviver com
estas manifestações, não há um estudo regular de registros, seja por
pesquisadores, seja como memória do que representam.
A expressão vocal, para quem canta ou quem fala, é o meio
pela qual a mensagem a ser transmitida deve ser recebida e entendida pelo
ouvinte. Para isto é necessário que sejam colocados sentimentos e emoção na
mensagem. Sentimentos estes que serão expressos através da postura corporal
como um todo e, claro, através da voz.
Um pequeno levantamento comparativo dá ideia das semelhanças
entre as estruturas dominantes tanto dos corridos como de nossa literatura de
cordel, hoje assim reconhecida. Seja na temática, seja na estrutura da
versificação.
O corrido considerado tradicional, histórico, sempre será
narrado em primeira ou terceira pessoa e flui do princípio ao fim de uma testemunha
do fato ou de um relator bem-informado. Geralmente há um início muito claro ao
chamar a atenção do público ouvinte ou leitor ou se pedir permissão para
iniciar o contar/cantar:
Para ponerme a cantar Para me pôr a cantar
Pido permiso primero, Peço primeiro permissão,
Señores, son las
mañanas Senhores, são as mañanas
De Benjamin Argumedo. De Benjamim Argumedo.
(Fragmento
do “Corrido Del General Benjamín Argumedo”, de 1916, sem autoria especificada)
Observação: pelo que pude depreender, a
palavra “mañanas” é derivada de maña, cujo significado básico é manha,
destreza, habilidade, astúcia. Daí, são as mañanas e as mañanitas (como uma
variante dos corridos) na narrativa que se anuncia.
Voy a cantar un corrido Vou cantar um corrido
que vale la pura plata, que vale uma pura prata,
donde les doy la noticia pois lhes dou a notícia
de la muerte de
Zapata. da
morte de Zapata.
(Estrofe
inicial do corrido “Triste despedida de Emiliano Zapata”)
Invariante é a data precisa da história, às vezes até a
hora, constatando um fato verdadeiro, vivido. Principalmente nos corridos que
registram um fato histórico, acontecido, este procedimento é parte essencial em
sua estrutura.
El jueves veintiocho, del mes de febrero, Na quinta-feira, 28, do mês de
fevereiro,
del año noventa y cinco, do ano de noventa e cinco,
todos em Ameca, para la estación todos em Ameca, para
a estação
iban com gran regocijo. iam com grande alegria.
Eran las doce del dia
Eram doze horas do dia
y luego, luego
al momento E logo,
logo nesse momento.
silvó la
locomotora
Apitou a locomotiva
y se puso en
movimiento. E
se pôs em movimento.
(Fragmentos
da “Bola Del descarrilamiento de Temamatla” – canción popular)
E, agora, fragmentos de folhetos de cordel, impressos e
divulgados no Brasil:
Leitor, vou narrar um fato No município de Flores
legalmente verdadeiro pertinho de São João
do que Lampião fizera enfrentou os revoltosos
a vinte de fevereiro o grupo de Lampião
e a visita que fez deles morreram quatorze
em março a 4 do mês feridos saíram doze
ao padre de Juazeiro fora o tenente Negrão.
(Fragmento
do cordel “Visita de Lampião a Juazeiro” de José Cordeiro)
Eu desejava, leitores
fazer uma história exata
mas como devem saber
que nem tudo se relata
mas para ver Lampião
pobre não tinha razão
só a tinha os de gravata
Perdão desta estrofezinha
que a fiz inconsciente
vou prosseguir na história
de Lampião o valente
me desculpe os de gravata
foi uma ideia insensata
dessa pena impertinente
(...)
Meus leitores essa história
Que vosso poeta fez
O meu bisavô contava
Meu avô disse uma vez
O meu pai contou a mim
Eu hoje conto a vocês. – FIM
(Fragmento
do cordel “A Festa dos Cachorros” de José Pacheco)
O final de muitos corridos também segue uma estrutura
padrão: se o início foi anunciado, o fim é uma despedida. A atenção do receptor
faz parte de um leitmotiv essencial.
“Me despido amable concurrencia Me despeço amável audiência
me despido com grande dolor, me despeço com grande
dor,
si acaso me ha sido imposible se acaso me foi
impossível
si tal vez me há faltado la ciencia se talvez me faltou ciência
me dispense la
plana mayor.” me
dispense da lauda maior.
(Fragmento
de “Trágico Fim de Juan Montes”, de Marciano Silva)
Se os corridos mexicanos não são iguais à nossa literatura
de cordel, eles são um equivalente das expressões mais significativas da
literatura oral, que se irmanam além de limites geográficos ou de diferenças
linguísticas e históricas.
Um aspecto pouco ressaltado é a presença de mulheres poetas
e participantes da revolução mexicana. Tanto os corridos, como os meios de
comunicação, transformaram essas mulheres em heroínas que seguiram os soldados
em campanha (las soldaderas) ou em prostitutas (las Adelitas).
Evidentemente que esses dois arquétipos serviram – e ainda servem – à
manutenção de uma ideologia patriarcal construída ao longo dos séculos. No
Brasil, há importantes mulheres cordelistas e dispostas a se mostrarem em
atividade, o que não é fácil, reconheçamos, em nosso contexto cultural, predominantemente
masculino e machista.
O certo é que, como a literatura de cordel, também os
corridos se mantêm à margem do cânone de uma “alta cultura”, por sua condição
popular. Embora haja bons e maus poetas em quase toda literatura, o que, agora,
não vêm ao caso, há um corpus de criações que alcança a literariedade, não só
pelo uso da arte da palavra como de um conjunto artístico mais amplo, além do
social e histórico que respaldam vivências e subjetividades.
E assim como no Brasil, com a hoje conhecida e reconhecida literatura
de cordel, os corridos mexicanos continuam vivos, atuantes, fazendo parte do
todo de uma cultura. Ainda que muitas vezes massificada, midiática, esta
permanência se deve, sobretudo, ao seu caráter de arte popular, de uma
comunicação que fala – e responde - aos corações e mentes de um povo.
...ooo0ooo...
Nota: Bibliografia sobre o assunto é
extensa. Apresentei um trabalho mais completo no I CONRCORDEL - I Congresso Regional
sobre o Cordel - Auditório da FACAPE - PETROLINA-PE em maio de 2011,
publicado nos Anais desse Congresso, que, infelizmente, não está disponível on
line. Aqui retomei algumas partes e observações desse trabalho.
Referências
bibliográficas:
FRANK, Patrick. Posada´s broadsheets: Mexican popular
imagery, 1890-1910. Albuquerque/USA: University of New México Press, 1998,
264p.
MENDOZA, Vicente T. El corrido mexicano. México: Fondo de
Cultura Econômica, 1974, segunda reimpressón, 467p.
WALD, Elijah. Narcocorrido
: Un Viaje Dentro de la Musica de Drogas, Armas, y Guerrilleros. Rayo, 2001, 352p.
Documentos
eletrônicos:
CALDERÓN de La Rosa, Mario Antonio. Génesis y evolución Del corrido mexicano/Hipóteses preliminares. http://upload.wikimedia.org/wikibooks/es/9/9c/Anteproyecto.pdf - Acesso reativado em 6/12/22
Con su
permiso... voy a contar un corrido. Vídeo-documentário. Universidade Autônoma de Chapingo,
México, 1996: . http://www.bibliotecas.tv/zapata/corridos/voy_a_contar_un_corrido.html
Corrido. http://es.wikipedia.org/wiki/Corrido
HERNÁNDEZ, Guillermo E. What is a Corrido? Thematic Representation and Narrative Discourse
- Studies in Latin American Popular Culture. 18 (1999). University of
California, Los Angeles. http://www.chicano.ucla.edu/center/events/whatisacorrido.html
La Cucaracha. http://pt.wikipedia.org/wiki/La_Cucaracha
TOSI,
Marcela de Castro. Las soldaderas: mulheres na revolução mexicana de 1910
- Revista Outras Fronteiras, Cuiabá-MT,
vol. 3, n. 1, jan/jun., 2016 ISSN: 2318 - 5503 - https://periodicoscientificos.ufmt.br/outrasfronteiras/index.php/outrasfronteiras/article/view/184/pdf
VARGAS,
Angel. El corrido, historia escrita por
los trovadores ajenos al poder, em La Jornada, 30 de agosto de 1999. http://www.bibliotecas.tv/avitia/entrevistas/ent01.html
Petrolina, 6 de
dezembro de 2022