“Literatura é linguagem
carregada de significado até o máximo grau possível”
Ezra Pound
Tomando
um texto curto para análise, receptora nesse ato de comunicação, adentro no
poema Passatempo de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) e sua possibilidade
de uma leitura crítica. E, bem sei, de antemão, que a própria escolha do texto
já aí se situa, não por ser “curto” mas, sim, pela sua extensão poética...
PASSATEMPO
O verso não, ou sim o verso?
Eis-me perdido no universo
do dizer, que, tímido, verso,
sabendo embora que o que lavra
só encontra meia palavra.
Carlos Drummond de Andrade (in Corpo. S. Paulo: Record, 1984, p. 89)
Ler
e reler o texto em primeiro lugar. Sentir. Ouvir sua própria voz. Apreciar a
sonoridade, o que o poema traduz, o conjunto em seu primeiro contato. Fazer
isso com prazer.
Você
pode até pesquisar. Situar a obra. Do livro Corpo, de 1984, quando o
poeta contava 82 anos, pouco antes de sua morte. Livro que teve uma reação um
tanto negativa da crítica, a cobrar-lhe a poesia social dos anos 30 e 40, o
poeta volta-se para uma poesia mais sensual, lírica e irônica ao mesmo tempo, o
que nunca deixou de ser.
Tratando o texto: decodificando-o visualmente, formalmente, atitude
necessária para um crítico entender procedimentos e significação. Vejo um
título em destaque e apenas cinco versos, distribuídos em duas orações. Releio
mais uma vez. Já no primeiro verso temos uma interrogação motivadora (“O verso
não, ou sim o verso?”) e uma possibilidade de resposta nos versos seguintes,
uma quadra, constituindo uma oração afirmativa completa nos “enjambements”
(encadeamentos) de um verso a outro.
Aqui não se visualiza o verso “livre”; exercito a
metrificação. Contagem: oito sílabas poéticas e que, unindo som e significação
fica-se em dúvida no último verso, nos limites entre “forçar” oito sílabas ou
ficar com sete, já que o poeta diz que “só encontra meia palavra” e não uma
palavra inteira...
O jogo formal se amplia: rimas finais, todas paroxítonas, verbos e substantivos em assonâncias e contrastes:
verso/universo/verso/lavra/palavra (a/a/a/b/b)
(substantivo/substantivo/verbo/verbo/substantivo)
Uma construção melódica de grande sonoridade, desde o próprio título, duas palavras fundidas: o uso de sibilantes; o t e p tão próximos foneticamente e separados pela nasalização do -em-, já a nos inquirir que tipo de passatempo seria este.
Passatempo (passa/tempo)
E ele se apresenta como desafio no primeiro verso, na interrogação,
mediado pela vírgula, separando o ser ou não ser, isto é, o sim e o não. Metalinguagem
explícita, o poeta questiona o verso e sua indecisão e o eu lírico responde a
seguir, afirmando sua voz; “Eis-me perdido no universo/do dizer”.
Esse
dizer que o deixa perdido, mas “que, tímido, verso”. Percebe-se, pela
análise um pouco mais atenta que, no primeiro verso, a palavra verso é um
substantivo, repetida duas vezes, quase numa gangorra rítmica do sim e do não; continua
a rima em universo, outro substantivo, mas, no terceiro verso, temos esta
palavra funcionando, morfologicamente, como um verbo: (eu) verso.
Tensão
ou harmonia dos contrários: “O verso não, ou sim o verso?” A grande
questão, o que decidir como referencial literário? O não e o sim divididos na
metade do verso. Não há separação entre forma e conteúdo, se bem lermos. Estabelece-se
um diálogo no próprio texto, entre o autor e o eu poético. O poeta pode até se
mostrar indeciso, mas sabe muito bem de sua escolha...
O verbo versar tem vários significados. No texto, a ambiguidade
semântica (já conotada na indecisão do sim e do não do primeiro verso)
amplia-se aqui. Tanto pode ser sinônimo de versejar, atividade que o poeta
afinal está fazendo, como pode ser também, de acordo com sua origem etimológica,
voltar, no sentido do verso, que vai e volta, ou manejar, exercitar.
Quanto ao adjetivo tímido, destacado entre vírgulas, pode
ser interpretado com base na personalidade do escritor. Carlos Drummond era um
mineiro retraído, avesso a badalações, considerado um tímido como pessoa, significado
que ele pode estar reiterando, mas pode ser também relativo aos seus versos, já
que ele se confessa “perdido” neste “universo do dizer”.
O
jogo se acentua nessa tentativa de acerto. O poeta agora usa a palavra verso
como um verbo, na primeira pessoa do presente. O eu lírico se posiciona: perdido.
Achará? Eco em universo, com significado ambíguo em todo o contexto,
pois sua abrangência é aberta, mas é também uni. No dizer:
a palavra, esse signo verbal carregado na dialética entre significante e
significado, entre o sim e o não subliminar.
Os dois últimos versos, no entanto, são uma afirmação forte,
quase que dogmática “sabendo embora que o que lavra/ só encontra meia palavra”.
Tradicionalmente, as rimas b são rimas “ricas”, pois lavra está
funcionando como verbo e palavra é um substantivo. Neste instante,
conhecimentos sobre a biografia do autor ajudam a entender e justificar o uso
do verbo lavrar.
Drummond
nasceu no estado de Minas Gerais e só saiu de lá depois de adulto. A exploração
colonial das minas de ouro marcou a história das “lavras do ouro”. Portanto,
lavrar é um verbo forte, repleto de conotações. Nada é gratuito num texto
plenamente realizado, tudo tem significados além da estrutura superficial.
Mesmo “perdido”, o poeta usa um gerúndio (presente contínuo)
para afirmar que sabe (Sabendo...) Sabe, tem certeza, que nesse
universo, aquele que trabalha (onde está o passatempo?) não encontra
tudo acabado, pronto ou perfeito, só “meia palavra”.
Observe-se
o uso da adversativa “embora”, conotando os limites deste universo que ele
assume - agora é o sim - como um trabalho, mas um não nas suas
dificuldades, já que qualquer poeta, percebido pelo pronome oblíquo o (não
somente ele) nunca encontrará a palavra inteira. Generalizando todos os que se
perdem, como ele, no “universo do dizer”.
Portanto, este poema, dentro da poesia de Carlos Drummond de
Andrade, reitera a impossibilidade do dizer poético, entre aquele que vê o
verso como um ofício de garimpagem do verso e das palavras, mas constata ser
apenas um passatempo, triste ironia, que não se completa.
Função poética dominante da linguagem, na concepção
jakobsiana, o poeta se vale da referência metalinguística para, de um ponto de
vista pessoal e emotivo, mostrar-nos os dilemas, perplexidades e constatações
da poesia, seus limites e virtualidades.
Neste poema vejo, sintetizada, a poética de Drummond, seus questionamentos existenciais e seu labor literário, dúvidas e angústias do fazer. Mesmo que seja um “passatempo”, ironia no que o lúdico se integra nessa “perdição” de não encontrar toda a possibilidade do verso: o signo sempre trará a marca de sua incompletude.
(Obs.: esta análise foi
feita aos poucos, em sala de aula, em descobertas gradativas... também o
sentido pleno do texto não nos é dado de uma vez só, é preciso “curtir”,
aguardar, refletir... 23/01/22)
Nenhum comentário:
Postar um comentário