Um ferro
de marcar boi.
Estranhei.
Onde as iniciais do dono, semelhança que perfaz a referência lógica, usual e
visual? Esclarecendo: meu interesse por
coisas da região onde habito, às margens do rio São Francisco, entre Pernambuco
e Bahia, sempre me motivaram. E esse ferro de marcar boi faz parte do acervo
histórico e cultural destas margens.
A partir
desse estranhamento, como um desafio, o pesquisador – assim me coloco - quer ir
além da “mera curiosidade”. E as associações, as coincidências, as leituras vão
se projetando, tecendo um produto mais elaborado, uma reflexão, ensaio ou
artigo.
Como um
detetive, vamos não atrás de um assassino, mas do conhecimento. Estudos
relacionados à Semiótica sugerem leituras em interação, pois “A compreensão da
cultura como informação determina alguns métodos de pesquisa. Ela permite
examinar tanto etapas isoladas da cultura como todo o conjunto de fatos
histórico-culturais na qualidade de uma espécie de texto aberto, e aplicar em
seu estudo métodos gerais da Semiótica e da Linguística Estrutural”. (LOTMAN,
1979)
Assim,
pretendo mostrar alguns exemplos pessoais de como este “texto” nos é dado a
ler, se realmente queremos com ele interagir. Espero também associar aqui que o
segredo é o desafio e o método é a chave.
Dizem por
aí que o vaqueiro cura o boi no rastro... Foi no rastro de pistas e indícios
que caminhei e caminho, porque também sei do inacabamento de leituras e
interpretações.
Modelos
epistemológicos rígidos não conseguem dar conta de certa subjetividade inerente
ao processo de pesquisa, seja pela imersão “apaixonada” do pesquisador, seja
pelas limitações de uma atitude hipotética-dedutiva ou indutiva tão somente.
Mesmo que
a observação e a dedução constituam basicamente o método do detetive, é preciso
ressaltar também, que há, muitas vezes, um “elemento sorte” na dedução. As
melhores hipóteses para desvendar um crime são obtidas em pormenores, na
verdade “em indícios imperceptíveis para a maioria.” (GINZBURG, 1989)
No “caso”
dos ferros de marcar boi, primeiramente as investigações foram feitas in loco:
vaqueiros, fazendeiros, ferreiros, gente honesta e boa a dar informações. E
ferros, muitos ferros, que compõem uma pequena coleção. Consegui encontrar até uma raridade: o Livro
de Registro de “ferros, marcas e signaes” da Villa de Petrolina, dos anos de
1872 e 1873, hoje desaparecido da Biblioteca Municipal do município de
Petrolina.
Mas foi a
ponte com a literatura que me levou a outros índices de deciframento nesta
investigação, cruzando com os dados já recolhidos. Nós, pesquisadores, devemos ser um atento
leitor de signos, uma vez que decifrar o enigma é sair à busca de rastros, é
gostar deste percurso e ter o prazer da descoberta.
Ariano
Suassuna, no seu romance A PEDRA DO REINO, refere-se ao desenho dos ferros
dentro de uma “Heráldica sertaneja” e sua simbologia, repleta de mistérios e
elementos mágicos. Segue-se o fragmento de um diálogo esclarecedor:
“...é que,
na espádua esquerda de Dom Pedro Sebastião, tinham ferrado, a fogo, um ferro
desconhecido e que não é nenhum dos ferros familiares de ferrar boi do Sertão
da Paraíba” (...)
- Você
ainda se lembra como era o ferro?
- Me
lembro como se fosse hoje, Excelência! Era uma espécie de lua, ou melhor, para
ser mais fiel à nobre Arte da Heráldica, um crescente, com as pontas viradas
para cima e encimado por uma cruz.
(...)- E
não havia nenhum sinal do fogo onde esquentaram o ferro?
- Nenhum,
Excelência! Eu já não expliquei que no aposento elevado da torre da capela, não
havia nada, a não ser o sino?”
Essa
pista, esse sino, representa e simboliza o signo, também adivinha, que invocara
Pedro Quaderna um pouco antes: “Para o meu enigma, portanto, só um Decifrador
brasileiro e de gênio!” (SUASSUNA, p. 293)
(Observação: desenho feito no Paint para este trabalho, a partir da descrição no livro)
Meia lua e
cruz, símbolos muçulmano e cristão, que remetem às batalhas das cruzadas. Um mundo
medieval no sertão onde as antigas novelas de cavalaria fazem parte do
imaginário de Suassuna. Necessário pensar todo o contexto da obra e podemos
“decifrar” este enigma.
Também
Guimarães Rosa em A Hora e a Vez de Augusto Matraga “ferra” o seu
personagem-título:
“E, aí,
quando tudo esteve a ponto, abrasaram o ferro com a marca de gado do Major –
que soia ser um triângulo inscrito numa circunferência -, e imprimiram-na, com
chiado, chamusco e fumaça, na polpa glútea direita de Nhô Augusto. Mas recuaram
todos, num susto, porque Nhô Augusto viveu-se, com um berro e um salto,
medonhos.” (GUIMARÃES ROSA, p. 335/6)
E, coincidentemente, surge na
lembrança, um detetive referência: Sherlock Holmes. Sim, em O Vale do
Terror, de Conan Doyle, o primeiro morto da história também tem o seu
antebraço ferrado com o mesmo sinal usado por Guimarães Rosa. E outras vítimas
também aparecem com a marca, ao longo da história.
“O braço
direito do morto apresentava-se, até a altura do cotovelo, fora da manga do
roupão, no centro do antebraço, um desenho de cor castanha, um triângulo dentro
de um círculo, que se salientava vivamente na pele clara. (...) Não é tatuagem,
afirmou o médico. (...) O homem foi marcado, há algum tempo, a fogo, como se
usa para fazer com o gado.” (CONAN DOYLE, p. 38)
E, lá como cá, embora com as devidas diferenças, a marca era o símbolo de uma associação de criminosos – espécie de Máfia – que no início só fazia o bem, mas que se degenerou.
Pesquisando
o significado místico: círculo com triângulo em seu interior simboliza o
ternário divino, ou o princípio espiritual dentro do todo, do universo (que é o
círculo). Sabe-se que Guimarães Rosa era um estudioso e conhecedor de magia e
mitos e, no texto, o ferro assinala mais que a marca do pecado, simboliza a
queda e a salvação de Nhô Augusto, sua hora e sua vez.
E por isso
não estranhei quando, entrevistando gente mais antiga, falou-se de costumes
como o de ferrar somente na lua nova ou cheia para garantir a reprodução do
gado. E cruz para livrar da peste.
Em O
Signo de Três (ECO & SEBEOK, 1991), uma antologia de 10 ensaios de
diferentes autores, onde também se inclui o texto citado de Ginzburg,
impressionaram-me as referências e observações entre os métodos dos detetives
Sherlock Holmes de Conan Doyle e Dupin de Edgar A. Poe, comparados com os
estudos semióticos de Charles S. Peirce. Por isso, ressalto um aspecto
fundamental nesta compreensão.
“Um signo, ou representamen é aquilo que, sob
certo aspecto ou modo, representa algo para alguém. Dirige-se a alguém, isto é,
cria na mente dessa pessoa um signo equivalente ou talvez um signo mais
desenvolvido. Ao signo assim criado, denomino interpretante do primeiro signo”.
(PEIRCE, 1977)
A semiose se dá numa relação triádica, gerando
um processo dinâmico e ilimitado de significações, de interpretantes.
O ferro de
marcar boi que, em nível primário de leitura, seria apenas um signo, o visual
do desenho ou a forma “ferrada”, com a função de identificar a rês ou o animal
do patrão em outrora campos abertos, não cercados, cerca-se, no entanto, de uma
rede de interpretações sígnicas, muito maior que sua intenção primitiva. Uma
“leitura” das relações intersígnicas dos ferros de marcar boi desnuda também,
metonimicamente, o processo econômico, social e cultural, típico de nossa
estrutura fundiária, onde a posse tem que ser assinalada e delimitada. Um
símbolo de Poder.
A
propósito, uma velhinha, ao ver o ferro que tanto estranhei, por sua
simplicidade, comentou: “essa é a marca de quem tem pouco mais ô nada”. E o
dono do ferro era um pobre vaqueiro que tinha somente poucas cabeças de gado...
Assim é
que, na malha de signos constitutivos de uma pesquisa, sobretudo na área de
humanidades, temos um enigma (ou vários) a ser revelado num continuum de
possibilidades interpretativas, sem reduzi-lo apenas ao aspecto descritivo. O
método, mesmo que empírico, leva a descobertas e ao conhecimento como substrato
prazeroso de nossas escolhas por índices esclarecedores.
Além
disso, o pesquisador acaba também por preencher lacunas, muitas vezes
resgatando do esquecimento aquilo que foi posto de lado pela história.
Referências
DOYLE,
Conan. O Vale do Terror. São Paulo: Melhoramentos, 1982.
ECO,
Umberto & SEBEOK, Thomas A. O signo de três. São Paulo: Perspectiva,
1991.
GINZBURG,
Carlo. SINAIS Raízes de um paradigma indiciário in Mitos,
Emblemas, Sinais. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
LOTMAN,
Iúri M. Sobre o Problema da Tipologia da Cultura in Semiótica Russa. São
Paulo: Perspectiva, 1979.
PEIRCE, C.
Sanders. Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 1977.
ROSA, J.
Guimarães. A hora e a vez de Augusto Matraga in Sagarana. Rio:
José Olympio, 1976.
SUASSUNA,
Ariano. Romance d´A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-E-Volta.
Rio: José Olympio, 1976.
Nota: Este
texto foi publicado na revista Contexto nº 7 – Petrolina: julho/dezembro 2013,
p. 90-92.
Amiga Bet, que gostosura de texto....Leve....Erudito e popular....E, por sua vez natural e profundo....! Parabéns querida, continuo na trilha de pedir-te mais escritos sempre....sempre....! Você tem o dom de transmitir com amor as ideias e o conhecimento....Beijos mil, João Monteiro Neto
ResponderExcluirObrigada João Monteiro Neto, vc sempre incentivador. Bom tê-lo como leitor!
Excluir