Por acaso, nos anos 80, encontrei uma raridade:
o Livro de Registro de "ferros, marcas e
signaes" da Villa de Petrolina, de 1872 e 1873, na Biblioteca
Municipal da agora cidade de Petrolina, em Pernambuco. Hoje, infelizmente, este
livro, um magnífico exemplar histórico, está em “lugar incerto e não sabido.” Alguém
se apoderou dele e não o devolve, embora seja possível consultar o livro numa
cópia tipo xerox, muito manchada, no Museu do Sertão da cidade. Também disponho
de uma cópia que não dá a verdadeira dimensão de sua importância, do que revela
e daquilo que deixa subentendido.
De
todo modo, fica a questão: por que é necessário um registro? E que tipo
de registro, no caso específico dos animais e propriedades? Carlo Ginzburg bem
resume um projeto de “controle generalizado e sutil sobre a sociedade.”
(GINZBURG, 1989, p. 173) Numa sociedade de gado solto, ainda em expansão, o
registro dos ferros, devidamente identificados, foi necessário e útil. Era uma
garantia legal, como há ainda hoje, mais restrita e sob outras circunstâncias e
orientações, a depender do município ou do estado.
Do
livro do Registro dos ferros, marcas e signaes, retirei um exemplo. O de
número 31, inserido nas páginas 15/16. Tentei manter a visualização da página, fazendo
uma montagem, mas a qualidade não ficou boa (cópia de cópia!). Entretanto dá
para se observar o manuscrito e os desenhos dos ferros. Para maior
legibilidade, fiz, a seguir, uma transcrição do texto e cópia destes ferros.
A
consulta ao original ocorreu em 1980 e não havia recursos de computador para
digitalizar e/ou escanear. Com o desaparecimento do livro, nesta reelaboração
do trabalho, usou-se um programa digital para os desenhos dos ferros, aqui
inseridos.
Analisando: a forma básica do pai, no desenho
alegórico de um coração, mas “deitado”, com a ponta para a direita, continua
nos ferros dos filhos, que varia nos detalhes segundo a ordem. Veja-se
que o filho mais velho tem uma “meia-fulô” exatamente do outro lado.
Fica explícita a herança dos papéis patriarcal e do primogênito. A partir de
Maria, única filha mulher, a ponta deste coração horizontalizado é estendida,
abrindo-se em dois. Aqui, pode-se ler, sutilmente, o papel reprodutor da mulher,
ainda que possa ter sido involuntário. No restante dos ferros, a variante desta
ponta tem outras direções, nunca repetidas, individualizando, portanto, as
marcas e os filhos.
Não é de admirar o formato de um
coração nos ferros sertanejos de marcar o gado. Afinal, o coração se traduz
numa alegoria de sentimentos afetivos e religiosos. Símbolo do amor, se firmou
na história ocidental. Uma leitura subjacente diz que a durabilidade do desenho
do coração se deve à sua forma: o fato de duas metades formarem uma figura
apenas traduz na perfeição a ideia platônica do amor e da busca pela alma gêmea.
Ou, mais inconscientemente, o seu sucesso tenha a ver com um viés erótico na
evocação sutil que o formato faz aos peitos e nádegas do corpo humano. De todo
modo, uma intersecção de formatos e significados.
Também
pode-se usar a marca de família e os números para os filhos, pela ordem de
nascimento: 1 – 2 - 3 - 4, o que é mais raro em ferros antigos, como esses do
século XIX.
Sobre os “signaes”: incisões nas
orelhas do “gado miúdo”, outra forma rudimentar
de assinalar caprinos e ovinos, não é motivo agora, neste trabalho, de maior
estudo. Na referência, o signal é o mesmo para o pai e todos os filhos,
dado que o valor do gado bovino, sem dúvida, é mais alto e de longo prazo. Um
“pater familia” é reiterado, como usuário e detentor da posse primitiva. Assim se constituíram
muitas famílias “tradicionais”, herança cultural, desdobrando-se em outras
posses, tanto no parentesco, como em arranjos familiares envolvendo escravos,
agregados e situações atípicas na dinâmica da vida e do cotidiano.
Posso justificar isso, porque, nesse mesmo livro de
registro dos ferros, encontrei esse formato do desenho inicial de um coração, de
Antonio Rodrigues de Bonfim, em outros registros cujos sobrenomes tinham Rodrigues,
com detalhes e posicionamento para cima ou para baixo, para um lado ou outro,
uma profusão de marcas a partir do original.
Também o registro abarca essencialmente o homem como
proprietário da marca e seus filhos, apesar de haver algumas mulheres
proprietárias, provavelmente viúvas. O registro 89 é um bom exemplo, uma mulher
com oito filhos, seguindo o mesmo padrão familiar. Também o de número 177:
“Registro dos ferros e signaes de Pedro Gomes da Silva e de sua agregada a
menor Maria Placida da Silva.”
No modelo da família patriarcal em que o pai, o
senhor, exerce seu poder sobre sua família e sobre as outras pessoas que vivem
em seus domínios, há essa categoria dos agregados que, mesmo não sendo
parentes, integra-se ao contexto familiar, embora com limites e com um
distanciamento baseado no respeito e no reconhecimento informal desse aceite.
Uma gama de situações envolve essa possibilidade.
Desde aquelas dos engenhos de açúcar, no litoral, aos interiores coloniais,
outros tipos de famílias se multiplicaram, de viúvos e viúvas, de mães e filhos
que viviam sem companheiros nem pais, dos filhos ilegítimos fora do casamento,
de escravos, de homens forros ou livres, até mesmo de trabalhadores
itinerantes. O compadrio sempre foi uma prática tradicional em que o
pertencimento a uma família poderosa se transforma em troca de favores e de
proteção.
Quantas narrativas estão inferidas nesses registros? Por
que, justamente dois anos, apenas 1872 e 1873, houve necessidade de se fazer
esse registro? Uma história de um todo e de suas particularidades
significativas em continuação.
(Continua... Aguarde)
Por que houve necessidade de se fazer um Livro de Registro de "ferros, marcas e signaes" da Villa de Petrolina, de 1872 e 1873 ? O texto explana muito bem as necessidades utilitárias dos ferros, marcas e sinais, ressaltando a posse e garantias legais. Por analogia, faltou um ferro de marcar para identificar o livro desaparecido...Essa é a importância do registro.
ResponderExcluirUm enigma instigante. Onde estará este Livro?
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