Na última postagem, eu terminava, perguntando:
Quantas narrativas estão inferidas nesses registros? Por que, justamente dois anos, apenas 1872 e 1873, houve necessidade de se fazer esse registro?
Um esclarecimento e uma hipótese: foi em 1870, dois
anos antes da abertura do Livro, em 18 de maio, a Lei 921 que oficializou como
Vila de Petrolina a antiga povoação “Passagem de Juazeiro”, na margem esquerda
do Rio São Francisco, pertencente a Santa Maria da Boa Vista. Portanto, vejo que
a autonomia e a evolução que a localidade estava alcançando necessitava desse
registro, uma forma de legitimar a posse das terras e a condição de
proprietários das fazendas constantes de seu entorno através do registro dos
ferros. Inclusive, há de se perguntar se todas estão ali contempladas.
Ficará sempre uma dúvida.[1]
Na abertura do Livro de Registro oficial define-se seu
propósito, que transcrevo, atualizando ortografia.
“Tem este livro de servir, na Secretaria da Câmara
Municipal da Vila de Petrolina para nele serem registrados os ferros, marcas e
sinais, com que os criadores deste Município, usam destinguir seus gados e
animais, e vai todo por mim numerado e rubricado, com a rubrica de que uso, que
é Chris.ano.R.C.Brao, lavrando no fim o termo de encerramento.
Vila de Petrolina na Rua da Câmara Municipal, 1º de
Abril de 1872.
José Chrispiniano Rois Coelho Brandão
Pro Presidente da Câmara Municipal.”
O
que me chama a atenção na Abertura do Livro são verbos e seus sujeitos nas
expressões: “Tem este livro de servir” e “os criadores...usão destinguir
seus gados e animaes.”
“Servir para” representa o uso a que se
destina ou em que se emprega uma cousa. O livro não só serve para o registro,
neste local determinado, como o fato de que os criadores o usam ou o usarão
para destinguir ou distinguir seus gados e animais. Essa variante “destinguir”
era usada desde o século XV, nesse sentido:
“Distinguir,
diferençar, discernir – marcar – dividir, separar – assignalar, realçar.” Transcrito
do “Diccionario dos Synonymos Poetico e
de Epithetos da Lingua Portuguesa por J.I. Roquete e José da Fonseca (Librarias
Aillaud e Bertrand, Paris-Lisboa, Paris, 30 de janeiro de 1848). Lidando com
conceitos do século XIX, achei conveniente procurar neste antigo dicionário. Um
dicionário que foi de meu pai, uma relíquia para mim e que cuido com zelo.
Encontrei não exatamente a grafia destinguir, mas distinguir, com um
encadeamento de significados que certamente corroboram seu uso no texto e em
sua especificidade. Sim, também marcar, dividir, assinalar. Observe na
foto, no texto do registro 192: “Registro dos ferros e signaes em que D. Maria
Joana de Oliveira moradora na Villa de Joaneiro, distingue seus gados e
animaes da fazenda Massangano nesse Termo.” Dona Maria Joana não tem filhos ou
herdeiros ali declarados, somente ela.
O
registro e os ferros dos criadores, situados em suas fazendas no entorno da
Villa de Petrolina, assinalam, marcam, dividem seus signos de
posse e de garantias legais. Portanto, na “escrita” dessa visualidade e de sua
decodificação, há substratos além do significante, uma cadeia de significados
na dinâmica de um mundo rural, pré-capitalista em formação.
Vejamos mais alguns ferros em sua “anatomia” formal. Visualmente, nos ferros, a simetria é perfeita, obra do artesão consciente. E há desenhos estranhos, icônicos, simbólicos, artísticos, nas outras páginas e registros
Desenho de ferros copiados do Livro dos Ferros |
Como num espelho, as imagens se invertem e mudam de dono. Direita
e Esquerda têm muita importância. Retas, curvas, essa geometria primitiva
concretiza na percepção ótica o abstrato de sua representação. Cada um desses
ferros e seu formato dá um singular trabalho de análise, além de um estudo para
a história da região, outrora da nação Cariri, de diversas etnias das margens
do grande Opará (rio mar), batizado de rio São Francisco. Histórias de gente
descendo do litoral ou de bandeiras adentrando em conquistas, de lutas e de sobrevivência,
de mestiçagem, da evolução dos antigos currais de gado e a vizinhança da
caatinga em secas periódicas.
O indivíduo
não precisava saber ler e escrever – como a maioria de vaqueiros – mas sabia
decodificar uma marca de gado, seja do dono, da propriedade ou da ribeira, nos
campos abertos de outrora. Esse registro na carne do boi, legitima, pois, uma
marca indelével de poder e posse.
Uma “leitura” das relações intersígnicas dos ferros de marcar boi desnuda também o processo econômico, social e cultural, típico de nossa estrutura fundiária, onde a posse tem que ser assinalada e delimitada. A propósito, uma velhinha, ao ver o ferro inicial, fotografado neste trabalho, por sua simplicidade, comentou: “essa é a marca de quem tem pouco mais ô nada.” E o dono do ferro tinha somente poucas cabeças de gado...
(Continua... aguarde).
[1] Do livro Petrolina
no tempo, no espaço, na vez, de Antonio de Santana Padilha (Recife,
FIAM/Centro de Estudos de História Municipal, 1982). Outras informações
retiradas deste livro: desde o século XVIII, entre 1750-1799, defronte da
localidade Juazeiro, na Província da Bahia, já é conhecida a “Passagem de
Juazeiro”, na margem esquerda do rio São Francisco. Em 1860 é terminada a primeira
Igreja, pertencendo ainda a Santa Maria da Boa Vista. A Passagem torna-se
povoado e recebe o nome de Petrolina. Em 7 de junho de 1862, a Lei 530, da
Assembleia Provincial, torna Petrolina “Freguesia”. A Lei 921, de 18 de maio de
1870, oficializa a povoação como Vila e em 1874, a Lei 1544, de 5 de junho,
traz a condição judicial de Comarca, que se instala em 1881. Em 25 de abril de 1893,
constitui-se município autônomo, desligado oficialmente do município de Santa
Maria da Boa Vista. Finalmente, a Lei 130 dá a Petrolina a categoria de Cidade,
instalada em 21 de setembro de 1895.
(Páginas 21/23)
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