Com a leitura esclarecedora do Capítulo IV, Observações
sobre o simbolismo das conchas, do livro Imagens e Símbolos, de
Mircea Eliade (São Paulo: Martins Fontes, 1996), também faço observações, um apanhado
geral em que analiso, destaco e amplio exemplos.
Mircea Eliade inicia o capítulo com a afirmação: “As ostras,
os mariscos, o caracol, a pérola são solidários tanto das cosmologias aquáticas
como do simbolismo sexual.” (p. 123) Desse parágrafo inicial realço a seguinte
observação “A crença nas virtudes mágicas das ostras e das conchas é encontrada
no mundo inteiro, da pré-história aos tempos modernos.”
Assim, introduzo esta apresentação fazendo a leitura visual
de três imagens. Poderia escolher muitas outras, mas essas são bem
significativas para ilustrar, justificar e dialogar com o texto de Eliade.
Essa primeira imagem, o “Nascimento de Vênus” de Boticelli, uma
das pinturas mais belas do renascimento italiano, corrobora o “simbolismo
ginecológico e embriológico da pérola, formada na ostra”, afirmação ainda do
primeiro parágrafo. Sem entrar em muitos detalhes, já que a pintura é pródiga
em símbolos e em sua própria essência artística, temos, no centro da imagem, a
figura de uma jovem mulher nua, “nascendo” de uma concha dentro das águas, analogia
com a pérola, que “nasce” da ostra. Ela é a representação da deusa Vênus, ou
Afrodite para os gregos, Deusa do amor, da beleza e da fertilidade, nascida das
ondas do mar na ilha de Chipre, segundo a mitologia. A deusa é impelida para a vida por Zéfiro
(abraçado a uma ninfa) que representa o vento oeste na mitologia romana,
alegoria da continuidade do mito. À direita, está a Deusa Primavera, à espera
para cobri-la com um manto florido.
No centro da tela, Vênus faz um gesto pudico para ocultar a
sua nudez, mas a luz ressalta sua beleza clássica e enfatiza suas curvas, assim
como o cabelo que se enrola em seu corpo e encobre seu sexo. Para a época, a
beleza seria um sinal visível de Deus, o que permitiria ao pintor, sem incorrer
em blasfêmia, utilizar a mesma expressão facial para Vênus e para a Virgem
Maria. Segundo divulgam, Boticelli era um homem "profundamente" religioso. O
simbolismo é mais forte do que uma possível censura do artista em sua concepção
criativa.
Esse simbolismo mostrou-se também em diversidade, fosse em
ritos agrários, nupciais ou fúnebres. Conchas e pérolas asseguram desde boas
colheitas, um casamento fecundo até uma morte preparada para o renascimento, A segunda
imagem “O Batismo de Cristo”, pintado por Leonardo Da Vinci, ainda aluno de
Verrochio, simboliza a purificação do corpo pelas águas, o arquétipo da vida. Sem
detalhar essas pinturas, o foco é evidenciar o imaginário e mostrar o
simbolismo das conchas como um índice motivador para a Arte, para a religião e
para a vida. No caso, a concha de água que João Batista derrama sobre o corpo
nu do Cristo atrai o Espírito Santo, simbolizada na figura de uma pomba, ou
seja, o poder de Deus sobre o batismo humano e sua conexão com o divino.
Fig. 3. Apresentadora de TV Ana Maria Braga (imagem pública retirada do Facebook) 2024.
Mircea Eliade observa: “A
pérola, antigamente emblema da força geradora ou símbolo de uma realidade
transcendental, conservou no Ocidente apenas o valor de “pedra preciosa” (p.
124). Não concordo muito com essa afirmação, pois as conchas e as pérolas ainda
carregam variantes de seu simbolismo e de sua atração mística.
Lembro que, em sentido
figurado, a pérola virou um clichê e alargou seu significado. A partir do
discurso bíblico, no Evangelho de Mateus, encontramos duas referências que, no
imaginário cristão, ficam poderosas de sentido. Mateus 13:44-46, uma parábola
de Jesus que associa o reino dos céus a uma pérola e em Mateus 7:6 "Não
deem o que é sagrado aos cães, nem atirem suas pérolas aos porcos; para que não
as pisem e, voltando-se, vos despedacem.” Na hermenêutica bíblica, a pérola
representa a sabedoria divina, a pureza e a perfeição. Ela é mencionada como um
símbolo do Reino dos Céus e da salvação.
Também encontramos variantes
do simbolismo da pérola (e conchas) em diferentes credos, preservando seu
significado primordial “na crença de suas virtudes mágicas” como o espiritismo,
o tarô, a numerologia, o horóscopo, os signos, o candomblé, a umbanda e a
espiritualidade em geral.
Fig. 4. Escultura de Iemanjá em Sepetiba, cidade do estado do Rio de Janeiro. Todo ano, no dia 2 de fevereiro, é realizada no local uma grande festa em honra da divindade de matriz africana, considerada a protetora da pesca e mãe de todos os orixás.
Em nossa cultura miscigenada,
Iemanjá, divindade africana, a grande mãe negra, aparece na maioria de suas imagens
como branca, mas não deixa de representar seu poder das águas, aquela que nos protege
e prepara para a vida. Para os iorubás, ela é a divindade dos rios. Segundo
pesquisa, essa transposição para os mares é resultado do movimento de diáspora
quando, já nos chamados navios negreiros, a ela continuaram recorrendo os
"seus filhos". Mesmo que tenha
outros nomes e a devoção apareça em vários lugares, ela faz parte do imaginário
brasileiro, não resta dúvidas.
Na linguagem contemporânea, a pérola é usada tanto para o elogio, como para a ironia. Exemplos: fulano se expressou com uma “pérola” de criatividade ou “as pérolas” das redações dos vestibulares, mostrando absurdos interpretativos, apontam para essa associação. Em nosso mundo social, o uso de joias incrustadas em pérolas, carregam uma conotação de “classe”, de bom gosto, mais do que exibicionismo de riqueza.
Em seu livro, Mircea Eliade cita exemplos nas mais variadas culturas de como esse simbolismo também foi associado ao mágico religioso, inclusive em relação conjunta aos ciclos da lua. E destaca o simbolismo da fecundidade. Mais do que a origem aquática e o simbolismo lunar das ostras e dos mariscos, sua semelhança com a vulva contribuiu muito provavelmente para propagar a crença nas suas virtudes mágicas” (p.127)
Fig. 5. À esquerda, conchas ou búzios, vendidos para confecção de ornamentos em pulseiras, colares, também usados pelos guias nas religiões de matriz africana, inclusive no jogo adivinhatório. À direita, uma ostra com uma pérola nascida de seu interior, resultado de uma reação natural do molusco contra invasores externos, como certos parasitas que procuram reproduzir-se em seu interior. Daí a expressão “ostra feliz não faz pérola” e seu sentido de ensinamento para a vida.
Na página 127, em um dos múltiplos exemplos, Mircea Eliade
destaca a identificação da concha com o órgão genital feminino e associa que
também mariscos e ostras participam dos (...) “poderes mágicos da matriz. Nelas
estão presentes e exercem as forças criadoras que jorram, como uma fonte
inesgotável de todo emblema do princípio feminino.” Portanto, continua a
observação: “usar sobre a pele, como amuleto ou como ornamento, (...) impregna
a mulher de uma energia favorável à feminilidade, ao mesmo tempo em que a
preserva das forças nocivas e do mau agouro.” Não teria sido essa a motivação
involuntária da fantasia usada por Ana Maria Braga?
Em outro destaque, “Funções rituais das conchas”, ele
observa “A partir disso, explica-se facilmente pelo mesmo simbolismo a presença
de mariscos, ostras e pérolas em inúmeros ritos religiosos, nas cerimônias
agrárias e iniciáticas. (...) A força representada por um símbolo da
fertilidade manifesta-se em todos os níveis cósmicos.” (p. 131) “As cerimônias
de iniciação compreendem uma morte e uma ressurreição simbólicas; a concha pode
significar o ato do renascimento espiritual (ressurreição) com tanta eficácia
que ela assegura e facilita o nascimento carnal.” (p. 132)
Mircea Eliade também se refere “A virtude sagrada das
conchas se transmite tanto à sua imagem como aos motivos decorativos que
têm a espiral como elemento essencial” (p. 141). E nos dirigimos a outras
relações, tendo a espiral uma referência orgânica da própria vida em seu
perpétuo movimento de evolução.
Fig. 6. Náutilo, concha marinha onde a espiral está perfeitamente visível e serve como exemplo tanto para a evolução espiritual como uma demonstração perfeita do algoritmo para a sequência de Fibonacci e a proporção áurea.
Isso foi um adendo ao capítulo de Mircea Eliade, pois ele apenas
cita a “polivalência simbólica da espiral, suas relações com a Lua, o
relâmpago, as águas, a fecundidade, o nascimento, a vida no além.” (p. 142)
Na parte final de suas observações, Eliade vai destacar
novamente a pérola, na magia e na medicina, o mito simbólico que se perpetua,
mesmo em suas modificações temporais e em seu uso. E reitera: “A história da
pérola é mais um testemunho do fenômeno de degradação de um sentido metafísico
inicial. O que num dado momento foi símbolo cosmológico, objeto rico em forças
sagradas benéficas, torna-se, com o tempo, um elemento de ornamentação, do qual
se apreciam as qualidades estéticas e o valor econômico.” (p. 143)
Destaca, no entanto, que o papel da pérola na medicina em
tantas civilizações diferentes (após ter dado muitos exemplos em citações e
notas de rodapé) “apenas sucedeu a importância que ela teve anteriormente na
religião e na magia. Por ter sido emblema da força aquática e geradora, a
pérola tornou-se – numa época posterior – tônico geral, afrodisíaco e ao mesmo
tempo remédio contra a loucura e a melancolia, duas doenças de influência lunar,
logo sensíveis à ação de todo emblema da Mulher, da Água, do Erotismo.” (p.
144) Lembro de uma passagem de um dos livros de Jorge Amado (mas não me recordo
de qual!) em que o personagem pensa e antevê sua amante nua, sensualíssima,
usando apenas um colar de pérolas...
Há um conto de Lygia Fagundes Teles, com o nome “As Pérolas”,
no livro “Antes do Baile Verde” em que o colar de pérolas da esposa do
personagem tem seu simbolismo agregado às memórias, aos ciúmes que a recordação
lhe provoca. A associação é feita com o “sofrimento” da ostra, invadida por
algo nocivo, que produz camadas de nácar para proteger seu corpo indefeso e o
resultado é a preciosa pérola. “Uma ostra que não foi ferida, de algum modo,
não produz pérolas, pois a pérola é uma ferida cicatrizada...” uma lição de
vida trabalhada por Rubens Alves em um de seus livros mais conhecidos.
Evidentemente que muitas outras referências podem ser encontradas, seja na
literatura, na filosofia, na pintura, evidenciando seu caráter metafórico ou
exemplar.
Elisabet Gonçalves
Moreira - Petrolina, 4 de abril de 2024
ALVES,
Rubem. Ostra feliz não faz pérola. São Paulo: Planeta, 2021.
ELIADE,
Mircea. Imagens e Símbolos. Ensaios sobre o simbolismo mágico-religioso.
São Paulo: Martins Fontes, 1996.
https://www.bbc.com/portuguese/articles/Iemanjá, a divindade
africana que ganhou feição branca no Brasil
Muito interessante essa intertextualidade. O diálogo entre os textos referenciados e o de Bet. O mais importante é a apresentação de novos elementos trazidos da realidade recente que simbolizam a cura, a autoestima, a resiliência, o encantamento e a divindade.
ResponderExcluirOlá, entre vogais bem casados... Muito obrigada, cada leitor tem sua perspectiva particular e a de vocês alargaram os sentidos.
ExcluirSua escrita é muito envolvente, Bet! Adorei as aproximações simbólicas.
ResponderExcluirOlá Sarah, vi que faz uns dias que comentou... Muito obrigada, é isso, trazendo simbolismos para o cotidiano. Abraço
ResponderExcluirSomente hoje vi seu comentário, fico contente por suas observações e gosto. Muito obrigada, é isso portanto, trazer o simbolismo para o cotidiano...
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