Bet com t mudo

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BET COM T MUDO... Quem me conhece, reconhece? Já me imagino receptora deste blog. Quem é esta mulher? Quem é esta Eli, Elisa, Betina, Betuska, Betî, resumida numa Bet com t mudo? Esta afirmação diminuta diz (ou desdiz?) uma identidade... Assim, quem sou eu? Sou (sim) uma idealizadora das pessoas, das relações, das amizades, das produções minhas e dos outros. Consequência: um sofrimento que perdura... na mulher crítica que procura saber e tomar consciência finalmente de quem é e do que ainda pode fazer (renascer?!) nesta fase da vida, um envelhecimento em caráter de antecipação do inevitável. Daí a justificativa do blog. Percorrer olhares, visualizar controvérsias, pôr e contrapor, depositar num receptor imaginário (despojá-lo do ideal, já que eu o sou!) uma escrita em que o discurso poderá trazer uma Bet com t falante... LEITURAS, ESCRITAS, SIGNATURAS...

segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

O "CORRIDO" MEXICANO E LITERATURA DE CORDEL DO BRASIL: SEMELHANÇAS?

 

Sim, há semelhanças, embora, reconheça-se, haja muito mais diferenças. O estudo comparativo entre corridos e literatura de cordel é um desafio instigante e merece um aprofundamento não só acadêmico, como de suas características peculiares. Este trabalho pretende mostrar pressupostos básicos e suas possibilidades de ampliação em leituras e pesquisas, com paralelos em ambas as referências.

O estudo das origens da literatura de cordel e de suas variantes evidencia que esse modelo de literatura popular não é exclusividade do Brasil ou restrita ao Nordeste, mesmo porque o gênero, em sua essência, foi trazido pelos colonizadores europeus para as Américas. Nas terras colonizadas, essa literatura adquiriu feição distinta no diálogo com outras realidades, histórias particulares e atores diferenciados.

O nome “corridos” foi tomado, ao que tudo indica, dos romances corridos de Andaluzia, na Espanha, assim chamados pela maneira fluente com que eram interpretados. Em sua origem, eram canções feitas em seis linhas, versos que tinham uma só toada, sem estribilho. Como dizemos, iam “corrido”, correspondente, em português, ao particípio passado do verbo correr e depois substantivado. No Brasil, na capoeira e no samba-de-roda há também corridos que, embora não tenham esse nome, são assim cantados, com fluidez e sequencialmente.

Os corridos, tipicamente mexicanos, são, pois, narrativas originadas da literatura popular oral em forma de versos e que migraram para as “folhas soltas”, ou volantes, impressas no final do século XIX e início do século XX, com o desenvolvimento do setor gráfico. É impossível dissociar o estudo dos corridos da História do México, pela força que tiveram nos acontecimentos históricos e revolucionários daquele país, atuando como importante meio de comunicação e informação.  Sob esse aspecto também o constatamos aqui no Brasil, embora com diferentes motivações e interesses.

Naquela época foi produzida a maioria dos exemplares conhecidos, sobretudo os corridos que se referem aos líderes revolucionários, religiosos ou populares, assim como seus feitos e, inclusive, seu “martírio”, mortes brutais, traições e assassinatos. Daí para a mitificação é um salto, algo que a literatura popular sempre fez com seus ídolos e referências significativas.

As folhas soltas, impressas com os versos dos corridos, eram vendidas por centavos, exibidas geralmente sobre a terra batida e seguras por pequenas pedras nas feiras livres, festas de comunidades e encontros de corridistas. O vendedor geralmente fazia uma espécie de “comercial” do tema do corrido para atrair os compradores.

Assim como os vendedores de folhetos de cordel. Cheguei a ver, na feira livre de Juazeiro, Bahia, ainda nos anos 70, vendedores abrindo sua mala com os folhetos, lendo alguns, improvisando versos e chamando a atenção do público. Esses folheteiros andavam de cidade em cidade, uma vida nômade à procura de um público que gostasse de poesia e do que, sob esse gênero, lhe pudesse ser oferecido. Folhetos também eram vendidos em barracas nas feiras, aí, sim, alguns dependurados em cordinhas. Hoje, ainda são colocados à mostra, com prendedores de roupa, expostos num tabuleiro ou protegidos em saquinhos plásticos, comercializados em diversos lugares, desde feirinhas a bancas de revista.

Ilustração de Fábio Fernando (Arquivo da Estação do Cordel)
Nas cidades mexicanas, os corridos, impressos como folhas soltas, em vários tamanhos, às vezes frente e verso, eram vendidos por garotos ou desempregados nas esquinas e ruas dos bairros populares onde tinham público certo, já que a elite não apreciava este tipo de comunicação, “popular” demais para um gosto burguês e sofisticadamente europeizado.

A característica fundamental do corrido é mesmo a espontaneidade, sua linguagem e música simples, concisas. A estrutura formal mais usada é o quarteto de oito sílabas, rimas abab, o que permite que vários corridos sejam cantados com uma só melodia. Este caráter também permite sua atualização, modificando-se as letras a depender das circunstâncias. Tanto assim que há muitas versões para um mesmo corrido.   

Um exemplo é “La Cucaracha” – A Barata -, um corrido que acompanhou a Revolução Mexicana. Para tanto, temos La Cucaracha porfirista, La Cucaracha villista, La cucaracha mojada.

As ilustrações dos corridos impressos são completamente diferentes da xilogravura, característica das capas do cordel brasileiro “tradicional”. Trabalhava-se sobre pranchas de metal, impressas junto com a letra do molde. José Guadalupe Posada (1852-1913) foi o mais importante ilustrador do início do século XX no México. Posada usava duas técnicas, o da água forte em relevo e o da linha branca, também chamada de gravação em metal tipográfico, intercalando-as muitas vezes.

Ilustrando a capa dos folhetos de cordel, no Brasil, há que se considerar o trabalho artesanal da xilogravura, entalhada numa placa de madeira com a ajuda de instrumentos cortantes, deixando em relevo a figura ou forma – matriz - que se pretende imprimir. Nesse sentido, é uma forma singular e representativa da expressão visual e artística desses ilustradores, às vezes o próprio poeta, mesmo que, hoje, seja pouco utilizada, pois as gráficas se modernizaram para grandes tiragens, usando outras técnicas de impressão.

   Capas de folhetos de cordel, ilustradas com xilogravuras.

Na temática dos corridos, não muito diferente dos folhetos brasileiros, encontramos narrativas que cantam fatos fictícios ou não, trágicos ou cômicos, desastres naturais, amores e tragédias, vida e morte de bandoleiros e assuntos do cotidiano. Contemporaneamente, fazem muito sucesso os “narcocorridos”, tidos por alguns como uma forma de resistência, sobretudo na fronteira com os Estados Unidos da América. O nome já indica sua especificidade, ao prantear os heróis e destacar os carteis das drogas.

O corrido, histórico ou não, também pode ser um meio, não só para conhecer o passado, como para compreendê-lo, principalmente para aqueles distantes do poder e dele alijados econômica e socialmente. As desigualdades e injustiças sociais sempre estiveram presentes na história do México. Alguma semelhança?

Há uma preocupação, entre os estudiosos mexicanos, em registrar também a pauta musical dos corridos. No Brasil, acho essa prática pouco difundida. Até mesmo a performance oral da literatura popular é uma preocupação relativamente recente. Não sei se porque ainda se pode conviver com estas manifestações, não há um estudo regular de registros, seja por pesquisadores, seja como memória do que representam.

A expressão vocal, para quem canta ou quem fala, é o meio pela qual a mensagem a ser transmitida deve ser recebida e entendida pelo ouvinte. Para isto é necessário que sejam colocados sentimentos e emoção na mensagem. Sentimentos estes que serão expressos através da postura corporal como um todo e, claro, através da voz.

Um pequeno levantamento comparativo dá ideia das semelhanças entre as estruturas dominantes tanto dos corridos como de nossa literatura de cordel, hoje assim reconhecida. Seja na temática, seja na estrutura da versificação.

O corrido considerado tradicional, histórico, sempre será narrado em primeira ou terceira pessoa e flui do princípio ao fim de uma testemunha do fato ou de um relator bem-informado. Geralmente há um início muito claro ao chamar a atenção do público ouvinte ou leitor ou se pedir permissão para iniciar o contar/cantar:

Para ponerme a cantar                Para me pôr a cantar

Pido permiso primero,                Peço primeiro permissão,

Señores, son las mañanas            Senhores, são as mañanas

De Benjamin Argumedo.            De Benjamim Argumedo.


(Fragmento do “Corrido Del General Benjamín Argumedo”, de 1916, sem autoria especificada)

Observação: pelo que pude depreender, a palavra “mañanas” é derivada de maña, cujo significado básico é manha, destreza, habilidade, astúcia. Daí, são as mañanas e as mañanitas (como uma variante dos corridos) na narrativa que se anuncia.

Voy a cantar un  corrido                    Vou cantar um corrido

que vale la pura plata,                       que vale uma pura prata,

donde les doy la noticia                     pois lhes dou a notícia

de la muerte de Zapata.                    da morte de Zapata.   

              

      (Estrofe inicial do corrido “Triste despedida de Emiliano Zapata”)

Invariante é a data precisa da história, às vezes até a hora, constatando um fato verdadeiro, vivido. Principalmente nos corridos que registram um fato histórico, acontecido, este procedimento é parte essencial em sua estrutura.


El jueves veintiocho, del mes de febrero,              Na quinta-feira, 28, do mês de fevereiro,

del año noventa y cinco,                                           do ano de noventa e cinco,

todos em Ameca, para la estación                           todos em Ameca, para a estação

iban com gran regocijo.                                              iam com grande alegria.


Eran las doce del dia                                               Eram doze horas do dia

y luego, luego al  momento                                     E logo, logo nesse momento.

silvó la locomotora                                                  Apitou a locomotiva

y se puso en movimiento.                                         E se pôs em movimento.


 (Fragmentos da “Bola Del descarrilamiento de Temamatla” – canción popular)

E, agora, fragmentos de folhetos de cordel, impressos e divulgados no Brasil:

Leitor, vou narrar um fato               No município de Flores              
legalmente verdadeiro               pertinho de São João
do que Lampião fizera                     enfrentou os revoltosos
a vinte de fevereiro                          o grupo de Lampião   
e a visita que fez                              deles morreram quatorze
em março a 4 do mês                       feridos saíram doze      
ao padre de Juazeiro                        fora o tenente Negrão.


 (Fragmento do cordel “Visita de Lampião a Juazeiro” de José Cordeiro)


Eu desejava, leitores

fazer uma história exata

mas como devem saber

que nem tudo se relata

mas para ver Lampião

pobre não tinha razão

só a tinha os de gravata

 

Perdão desta estrofezinha

que a fiz inconsciente

vou prosseguir na história

de Lampião o valente

me desculpe os de gravata

foi uma ideia insensata

dessa pena impertinente 

(...)

Meus leitores essa história

Que vosso poeta fez

O meu bisavô contava

Meu avô disse uma vez

O meu pai contou a mim

Eu hoje conto a vocês. – FIM


 (Fragmento do cordel “A Festa dos Cachorros” de José Pacheco)

O final de muitos corridos também segue uma estrutura padrão: se o início foi anunciado, o fim é uma despedida. A atenção do receptor faz parte de um leitmotiv essencial.

“Me despido amable concurrencia                  Me despeço amável audiência

me despido com grande dolor,                        me despeço com grande dor,

si acaso me ha sido imposible                         se acaso me foi impossível

si tal vez me há faltado la ciencia                   se talvez me faltou ciência

me dispense la plana mayor.”                         me dispense da lauda maior.


(Fragmento de “Trágico Fim de Juan Montes”, de Marciano Silva)

Se os corridos mexicanos não são iguais à nossa literatura de cordel, eles são um equivalente das expressões mais significativas da literatura oral, que se irmanam além de limites geográficos ou de diferenças linguísticas e históricas.

Um aspecto pouco ressaltado é a presença de mulheres poetas e participantes da revolução mexicana. Tanto os corridos, como os meios de comunicação, transformaram essas mulheres em heroínas que seguiram os soldados em campanha (las soldaderas) ou em prostitutas (las Adelitas). Evidentemente que esses dois arquétipos serviram – e ainda servem – à manutenção de uma ideologia patriarcal construída ao longo dos séculos. No Brasil, há importantes mulheres cordelistas e dispostas a se mostrarem em atividade, o que não é fácil, reconheçamos, em nosso contexto cultural, predominantemente masculino e machista.

O certo é que, como a literatura de cordel, também os corridos se mantêm à margem do cânone de uma “alta cultura”, por sua condição popular. Embora haja bons e maus poetas em quase toda literatura, o que, agora, não vêm ao caso, há um corpus de criações que alcança a literariedade, não só pelo uso da arte da palavra como de um conjunto artístico mais amplo, além do social e histórico que respaldam vivências e subjetividades.

E assim como no Brasil, com a hoje conhecida e reconhecida literatura de cordel, os corridos mexicanos continuam vivos, atuantes, fazendo parte do todo de uma cultura. Ainda que muitas vezes massificada, midiática, esta permanência se deve, sobretudo, ao seu caráter de arte popular, de uma comunicação que fala – e responde - aos corações e mentes de um povo.

...ooo0ooo...

Nota: Bibliografia sobre o assunto é extensa. Apresentei um trabalho mais completo no I CONRCORDEL - I Congresso Regional sobre o Cordel - Auditório da FACAPE - PETROLINA-PE em maio de 2011, publicado nos Anais desse Congresso, que, infelizmente, não está disponível on line. Aqui retomei algumas partes e observações desse trabalho.

Referências bibliográficas:

FRANK, Patrick. Posada´s broadsheets: Mexican popular imagery, 1890-1910. Albuquerque/USA: University of New México Press, 1998, 264p.

MENDOZA, Vicente T. El corrido mexicano. México: Fondo de Cultura Econômica, 1974, segunda reimpressón, 467p.

WALD, Elijah. Narcocorrido : Un Viaje Dentro de la Musica de Drogas, Armas, y  Guerrilleros. Rayo, 2001, 352p.

Documentos eletrônicos:

CALDERÓN de La Rosa, Mario Antonio. Génesis y evolución Del corrido mexicano/Hipóteses preliminares. http://upload.wikimedia.org/wikibooks/es/9/9c/Anteproyecto.pdf - Acesso reativado em 6/12/22

Con su permiso... voy a contar un corrido. Vídeo-documentário. Universidade Autônoma de Chapingo, México, 1996:  . http://www.bibliotecas.tv/zapata/corridos/voy_a_contar_un_corrido.html

Corrido. http://es.wikipedia.org/wiki/Corrido

HERNÁNDEZ, Guillermo E. What is a Corrido? Thematic Representation and Narrative Discourse - Studies in Latin American Popular Culture. 18 (1999). University of California, Los Angeles. http://www.chicano.ucla.edu/center/events/whatisacorrido.html

La Cucaracha. http://pt.wikipedia.org/wiki/La_Cucaracha

TOSI, Marcela de Castro. Las soldaderas: mulheres na revolução mexicana de 1910 -  Revista Outras Fronteiras, Cuiabá-MT, vol. 3, n. 1, jan/jun., 2016 ISSN: 2318 - 5503 - https://periodicoscientificos.ufmt.br/outrasfronteiras/index.php/outrasfronteiras/article/view/184/pdf

VARGAS, Angel. El corrido, historia escrita por los trovadores ajenos al poder, em La Jornada, 30 de agosto de 1999. http://www.bibliotecas.tv/avitia/entrevistas/ent01.html

Petrolina, 6 de dezembro de 2022

segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Uma imagem vale mais que mil palavras?!

 

Por estes dias, participando de um seminário de estudos sobre a Teoria do Imaginário, apresentamos um breve slide sobre a questão do tempo, um resumo a partir de Mircea Eliade (1907-1986)[1] em que a noção de illud tempus (o espaço-tempo-primordial onde se situa o ato fundador original...)  “deriva estreitamente da noção de sincronicidade junguiana.” Assim, o tempo do mito é um tempo “total”, onde está a “essência do sagrado”. Há um feedback entre o “tempo do mito” e o “tempo da história.”

O sentido está na relação, na complexidade, e não na mera sucessão diacrônica. Parece complicado, talvez seja mesmo... mas a gente embrenha, aprofunda, impulsiona...

O conceito ou a essência em que se justifica, ou em que se move a sincronicidade, vem me desafiando e não é de hoje. E, na síntese dos estudos, encontro a figura referência da espiral, descartando o mito do tempo como de “eterno retorno”, um círculo: “...para ficarmos nas figuras geométricas, seria mais uma leitura espiralada (...) Espiralado, ele “repassa”, mas em outro nível, e não tem nada de repetitivo”.

Assim, surge a imagem metafórica e polissêmica de uma espiral e há várias maneiras de a vermos. Num primeiro momento, peguei esta foto, um incenso espiralado.

A espiral é um símbolo de evolução e de movimento ascendente e progressivo, normalmente positivo, auspicioso e construtivo, sobretudo na sua forma. Enquanto plana, a espiral pode ter associado o movimento de evolução e de involução. Na sua versão de espiral dupla, traduz o todo, a união dos contrários, o nascimento e a morte.

A forma da espiral é encontrada em todas as culturas e traduz um movimento ascendente de evolução a partir de um ponto inicial, o que pode até ser associado com a própria progressão da existência. Assim como a vida, a espiral helicoidal projeta-se para o infinito e aparentemente não tem fim.

A espiral é, pois, a imagem que, para mim (e no texto dado) mais completa a ideia da sincronicidade, do tempo mítico e existencial. No entanto, nestes estudos, me deparo com uma imagem que, quase epifânica, mais iluminou do que ilustrou esse jogo complexo e desafiador.[2]


“Wonder” (“Maravilha”) escultura do artista Tom Lawton

 https://www.thisiscolossal.com/2022/10/tom-lawton-wonder-sculpture/

No link dado, vocês podem obter mais imagens e explicações. De todo modo, coloco algumas aqui. E mais este link da página do autor https://beuplifted.co.uk/

“Em cima de um toca-discos de alumínio, uma escultura em espiral do artista britânico Tom Lawton traduz um conceito matemático simples em uma dança hipnótica. “ Maravilha ” ou “Wonder” em inglês é um trabalho de cobre elegante de torções arredondadas baseado nem uma forma circular com um buraco no meio. O design de Lawton gira em torno de um eixo central imaginado, criando um movimento orgânico contínuo impulsionado por um motor elétrico. “Wonder” é composto por uma única estrutura autoportante em forma de fita, feita em metal precioso, que parece fluir como água enquanto espirala para cima e para baixo, expandindo para fora e contraindo. Como um círculo em espiral. Como uma roda dentro de uma roda. Wonder é uma escultura em movimento meditativa que mostra como tudo está interconectado. (grifos meus).

Retomando ditos e escritos: “O mito irriga a história, ele dá um sentido, uma estrutura, ao que seria apenas uma acumulação insignificante de eventos (...) E assim como o mito irriga a história, a história dá uma carne, um corpo, uma respiração ao mito, que se encarna e que se deixa ver nela (...) Em movimento contínuo, ligado ao vivente, por meio da dialética da hierofania, o profano se transforma em sagrado, e a dessacralização retransforma o sagrado em profano.” (Rocha Pitta, p. 56)

Outras falas poderiam vir, mas finalizar lembrando que os ritos - ou a literatura ou a arte - são capazes de nos iniciar nestes mistérios... Assim, como a leitura de uma imagem - a espiral - pode nos iluminar nesta fugaz compreensão da sincronicidade – tempo mítico e simbólico do passado, presente e futuro - e de nós mesmos, viventes.

                                                              ...oooOooo..

[1] Rocha Pitta, Danielle Perin. Iniciação à teoria do imaginário de Gilbert Durand/, 2ª ed. Curitiba: CRV, 2017, p. 54-62.

[2] Esclarecendo: recebo, quase cotidianamente, postagens do sítio (site) www.thisis.colossal. “Colossal” é um blog de arte e cultura visual fundado por Christopher Jobson, editor de Chicago e abrange tópicos que vão desde arte, design e fotografia até aspectos visuais da ciência e criatividade geral.

...oooOooo...

Referência bibliográfica:

Rocha Pitta, Danielle Perin. Iniciação à teoria do imaginário de Gilbert Durand. 2ª ed. Curitiba: CRV, 2017

Elisabet G. Moreira

Petrolina, 31/10/22



segunda-feira, 3 de outubro de 2022

O NARCISO QUE NOS HABITA


Todos queremos sair bem na foto... no automatismo dos celulares tiramos fotos e fotos, desencadeando cliques... sim, escolher a melhor foto, o melhor ângulo; esse é o atual recado mestre, seja em casa, seja na festa, seja no restaurante. E a revelação da escolha é feita na hora; apagamos sem culpas o que não é espelho. Caetano nos alertou há tempos...

Lembro de uma tia que estava sempre insatisfeita com suas fotos, achando que “saí horrível”... e era ela, tão somente ela. Aprendi a ser mais condescendente com minha imagem... sim, já saí mais bonita, mas, desse jeito, ainda sou eu. Ou fui...

Nas fotos selfies, há um deslocamento da pessoa para o aparelho. Ele é o foco, fazendo parte de um braço estendido. Momentos e fatos, até na intimidade do espelho do guarda-roupa, guarda-se também a imagem do que nos propusemos a mostrar, a compartilhar. Nada disso é novidade, apenas reitero o quanto Narciso - o mito - está presente em nosso reflexo idealizado. Ou no exibicionismo... Sim, o mundo nos cobra estarmos sempre bem, lindos e felizes.

Narciso na internet - Pawel Kuczynski

A Psicologia e sua irmã, a Psicanálise, tratam disso como possível reflexo doentio, mas se não nos amarmos, quem o fará? E lá vem auto-ajuda... A aceitação de si mesmo, nossa pluralidade, as metamorfoses por que passamos, mais do que representações: revelações.

Pintores consagrados, e outros nem tanto, também pintaram auto-retratos... Lembro dos vários auto-retratos de Van Gogh (35!)  onde cores e olhares se mesclam na intimidade deste conhecer. Tomo a lição de vida, mais do que a do mito. Ainda que pintar a si mesmo saia mais barato do que pagar a um modelo (ou a um artista), a complexidade não é facilitada. "As fotos se desvanecem muito antes de nós, enquanto os retratos pintados são algo que se sente, que fazemos com amor ou respeito pelo ser humano sendo retratado", declarou.

Mesmo quando se retratou após ter cortado sua orelha, num lance próximo ao final, Van Gogh traz essa lição para perto. "É difícil conhecer-se a si mesmo, mas também não é fácil pintar [seu próprio retrato]".


Retratos de Van Gogh (1853-1890)

 O primeiro é uma fotografia, a única que dele se conhece, ainda jovem. Os outros foram pintados e/ou desenhados por ele, já adulto e quase no final de sua vida.

O que é a realidade e o que é a representação? Fotografia é também subjetividade. Conhecemos Van Gogh não pela sua única foto, mas, sim, como ele se retratou, esse contraste do amarelo da barba ruiva e o azul em vários tons... Ele nos olha e procura nosso olhar, assim como se olhou...

Eu mesma, que gosto de desenhar e pintar retratos dos outros, com a facilidade de termos uma fotografia a nosso lado, desisti, pois, como minha tia, a maioria não gosta de como ali se vê... ou o outro a viu. Nem a técnica (ou a falta de talento) da pintura realista dá conta desta autocobrança. Mas eu tentei... nos limites do meu pouco talento. Corajosa sou neste momento em expor...

Positivo ou Negativo?    Primeira reflexão, óleo sobre tela, 42 x 54 cm, ano de 2005 

                                                                                    

Questionando – óleo sobre tela – colagem e uso de giz -40 x 50 cm - ano 2007


Tentando e testando...
Inacabada - lápis HB sobre papel - 2019 ?    Bet com chapéu – lápis de cor sobre tecido – 2016    Mini - óculos vermelhos – óleo sobre tela - 2016  Serena – lápis pastel sobre papel A4 – 2014  
    
                                              
        

Pensando se continuo... ainda não me completei.

...oooOooo...

Na busca de nós mesmas, a lição poética de Mário Quintana era tudo que eu desejaria.

 

MARIO QUINTANA – O AUTO RETRATO

No retrato que me faço
— traço a traço —
Às vezes me pinto nuvem,
Às vezes me pinto árvore…

Às vezes me pinto coisas
De que nem há mais lembrança…
Ou coisas que não existem
Mas que um dia existirão…

E, desta lida, em que busco
— pouco a pouco —
Minha eterna semelhança,

No final, que restará?
Um desenho de criança…
Corrigido por um louco!


Nota de rodapé: Editar fotos e textos neste blog não é fácil... desculpem, gostaria que ficassem melhor.

segunda-feira, 29 de agosto de 2022

AVENTURAS NA SELVA (Parte II)

 

A motivação da parte I destas aventuras e histórias continua... não só neste blog, mas até numa pesquisa em andamento sobre os ferros de marcar o gado. Símbolos, mitos, leituras semióticas e afins...

E aqui reproduzo desenhos dos ferros dos Kadiwéus, nativos indígenas, povo originário, nos confins do Mato Grosso do Sul, copiados por Guido Boggiani, antropólogo entre outras atividades. E histórias, inferências e reflexões que nos arrebatam...


Desenhos e Ferros de marcar, usados como “siglas de reconhecimento” dos Kaduwéus, conforme figura 103, página 229, do livro “Os Caduveos” de Guido Boggiani (Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. Da Universidade de São Paulo, 1975), Reprodução fac-similar da edição publicada pela Livraria Martins Editora, em 1945, como consta da Ficha Catalográfica.

Da “orelha” desse livro, uma apresentação inicial: “Sem pretensões literárias, como assevera o autor, Guido Boggiani redigiu, em 1894, a narrativa de uma viagem feita com escasso intuito de lucro e resultou num livro pitoresco, repleto das melhores observações sobre uma nação indígena entre diversas outras, mais ou menos perdida nos alagadiços entre o sul do Mato Grosso e o Paraguai.” (De Vivaldi Moreira, escritor mineiro, falecido).

Não concordo com a classificação de um livro “pitoresco”, pois vejo certo sentido depreciativo, já que o livro, embora tenha ressalvas etnográficas, principalmente no registro da língua ali falada, é uma obra fascinante. Mais do que informativa, com fotos e desenhos além de meramente ilustrações, a escrita de Boggiani, em primeira pessoa, diários de sua vida entre os Kaduvéos ou Caduveos, funciona e atrai como pequenos contos, fatos, opiniões e observações no cotidiano insólito dessa etnia, descendente dos lendários indígenas cavaleiros, os Guaicurus. Além do mais, esta edição se complementa com uma Introdução de Herbert Baldus e Prefácio de G.A. Colini, extremamente esclarecedoras sobre a vida e a obra de Boggiani, seu contexto histórico e antropológico.

Guido Boggiani

Guido Boggiani (1861-1902), italiano, faleceu com apenas 41 anos, assassinado por um indígena. As circunstâncias de sua morte, consequência de sua vida aventureira e destemida, são também elementos de uma história em que se mesclam desde o olhar de um antropólogo europeu ao mundo mágico e insólito dos indígenas em suas fronteiras, mitos e cotidiano. Foi como comerciante de couros de cervos do Pantanal, sua referência de contato com os nativos e habitantes da área, mas Boggiani era também pintor, aquarelista e retratista, carregando uma máquina fotográfica na transição entre um século e outro, escrevendo e registrando gente, paisagens, fauna e flora.

Mulher Kadiwéu do Rio Nabileque, Brasil. Foto da coleção Boggiani. Publicado em 1892/Dr. R. Lehmann-Nitsche. (https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Kadiweu_woman_1892.jpg)

Fantástica ou não, uma das hipóteses era o “medo” de que, em fotos e desenhos, se aprisionasse a alma do retratado. Tanto que Boggiani e seu acompanhante tiveram a cabeça decepada e a máquina fotográfica enterrada. Ainda que não estejam claras até hoje as motivações para sua morte, pois Guido Boggiani convivia com os nativos há tempos, o mito de que as câmeras roubavam a alma e a vontade dos retratados, foi popularizado após sua morte violenta.

Guido Boggiani ressaltou o gosto pela ornamentação desses indígenas, tanto no corpo, como nos objetos de uso pessoal, nas marcas dos animais de sua propriedade, como “siglas de reconhecimento”. E afirma “Há belíssimas e algumas delas parecem representar figuras humanas simbólicas. O caráter destas siglas é notabilíssimo e talvez um acurado estudo delas possa conduzir a interessantes descobertas.” (p. 228)

Sim, é isto mesmo, daí indica outras pistas. “Reproduzo aqui algumas das principais (...) e sobre alguns objetos estão reunidas em quantidade como se fossem caracteres de uma escrita.” O desafio é oportuno. Impossível não eleger o olhar semiótico, já caracterizado como “etnossemiótico”, em que podemos mergulhar, analisar e refletir as múltiplas camadas das condições de significação, sem o empirismo muitas vezes fortuito dessas ocorrências sígnicas.

Observar os desenhos é mesmo irresistível.  Lévi-Strauss ressaltou que, de todas as etnias indígenas brasileiras, são os índios Kadiwéu que apresentam uma das pinturas corporais mais bem elaborada, criativa e bonita. Desenhos que representam, inclusive, sua estratificação social, histórica e cultural.

Claro que já existem muitos trabalhos sobre essa etnia, além do reconhecimento por etnólogos, antropólogos como Levy Strauss e Darci Ribeiro, além do próprio Boggiani. Para mim, foi uma grande surpresa conhecer (mesmo através do acervo bibliográfico) e divulgar mais uma vez a beleza e importância estética e cultural dos Kadiwéus. Sem dúvidas, há ainda muito a ser pesquisado, tantas as possibilidades, nesse grande tecido intercultural que se nos apresenta, linhas e olhares em diálogo.



terça-feira, 26 de julho de 2022

AVENTURAS NA SELVA (Parte I)

 

“Livro destrincha obsessão humana por histórias”, texto de Helio Schwartsman, na Folha de São Paulo on line, de 24/7/22, me motivou a ler e escrever... Ou, pelo menos referendar algumas histórias que, nos últimos dias, me instigam a encontrar um receptor. Abro com esse despertar e relato depois o desdobrar possível em outras histórias.[1]

Sim, a humanidade sempre contou histórias e gostou disso. Signos verbais ou não, desde narrativas em desenhos nas paredes, lendas e mitos fazem parte do que somos, da cultura que nos pertence. O texto de Helio Schwartsman inicia com a questão, talvez tirada do livro ou de seu aporte de estilo. “Qual é a história mais antiga do mundo?” Provavelmente a façanha de perseguição a uma grande presa que termina nos céus, no mito da Caçada Cósmica.

O colunista nos informa então que essa história consta de "The Science of Storytelling" (a ciência de contar histórias), de Will Stor, na pretensão de ser um manual de composição literária, mas que, em sua opinião, é “uma obra cativante para quem apenas tenta entender o fascínio humano por mitos, histórias e até fofocas.”

Como não li o livro de Storr, fico com as inferências de H. Schwartsman, como o fato de que, ao nos envolvermos com as histórias, estas se tornam um veículo privilegiado de aprendizagem e persuasão. Enfim, um gosto pela ficção que faz parte de nossa realidade, no fato mesmo de sermos humanos.

E, agora, o meu gosto por estas leituras, viajando pelo imaginário como na figura a seguir. Acredito que você a tenha visto em algum livro de história do Brasil ou artigo didático. Ela sempre me encantou, seja pelo movimento, pelo insólito na maneira de montar e guerrear destes indígenas cavaleiros, histórias de um mundo que não vimos, urbanos que somos e estamos.

Mas, então, o desafio: que história você “monta” através dessa figura?


Ataque da cavalaria Guaicuru (Charge de cavalerie Gouaycourous) 1834 - Litogravura original de Jean Baptiste Debret (33 x 22 cm) 

Alguém me destacou até a beleza da tatuagem, mas é na narrativa subliminar conotada pelo galope dos cavalos, pela posição desses cavaleiros em que o próprio animal se torna um escudo, que a faz tão instigante e inusitada, pela inteligência e destreza de quem domina desse modo sua montaria.

A arma que carregam não é mais arco e flecha, agora uma lança com uma ponta de ferro, sem dúvida aumentando a eficácia no arremesso e no objetivo esperado. Não existe sela e, sim, uma pele de onça sobre uma espécie de tecido. Um tecido que também veste o cavaleiro, como se fora um calção. Há uma rédea na boca do animal, mas o cavaleiro o segura pela crina. Observa-se também o que parece um estribo, tipo um pedaço de pau, para apoiar o pé. A composição continua à direita, em outro plano figurativo, numa paisagem de fundo para esta perseguição de uma guerra entre serras e penhascos.

E que guerra seria essa? Ou guerras? Entre conquistas e inimigos tribais e, talvez, há quem lembre, uma guerra explícita, a Guerra do Paraguai, já que nela os Guaicurus atuaram. Como sua localização temporal, 1864-1870, está fora dos anos vivenciados por Debret, o mito da singularidade e valentia desses indígenas cavaleiros, nativos desta região “inóspita” e selvagem, já fazia parte do imaginário dos conquistadores. Muitas histórias então se espalhavam.

Jean-Baptiste Debret (1768-1848) foi um pintor, desenhista, decorador e professor francês. Integrou a Missão Artística Francesa que veio ao Brasil em 1816, em atendimento à solicitação do príncipe regente D. João. Aqui morou vários anos e seus desenhos, na linha neoclássica da época, registraram cenas, retratos e olhares de nosso país que constituem importante acervo para o conhecimento da realidade de então. Nunca esquecer, no entanto, que essa realidade era representada como a via e aprendera Debret, uma concepção pessoal e acadêmica de sua arte.

Por exemplo, esta cena dos Guaicurus cavaleiros. Claro que Debret jamais os vira em ação, mas concebeu a cena, certamente através de relatos e de uma perspectiva até mesmo ideológica. No entanto, conseguiu uma admirável expressão de dinamismo e de uma narrativa subentendida, de uma “selvageria” ambígua na caracterização desses guerreiros, uma tribo dos povos originários do Brasil colonial, de um mundo em que “civilizados” precisavam corajosamente conquistar, em sua ganância por terras e riquezas. Observei também o “olhar” tipicamente europeu no título dado à obra, no original de Debret, “charge de cavalerie”, uma reminiscência de quem também desenhou e pintou na guerra napoleônica, como consta de sua biografia.

Pesquisando, ficamos sabendo que os primeiros contatos dos antigos Mbayá-Guaikurus com cavalos aconteceram desde o século XVI. Por travarem inúmeras batalhas contra colonizadores europeus, rapidamente os indígenas se apossaram dos animais, domando-os e usando-os para garantir o seu domínio na região, incluindo outras tribos. Aliás, a organização social deste povo é também singular, já que os “cativos”, por exemplo, fazem parte de sua cultura, servindo lhes como trabalhadores e garantindo assim sua vida nômade e guerreira.

Segundo relato do padre jesuíta José Sánchez Labrador (1771-1776), que tentou evangelizá-los, "eles conhecem as enfermidades dos cavalos melhores que as suas próprias. Em seus animais, não usam selas nem estribos. Montam em pelo, e com um salto estão sobre eles".[2] Debret certamente teve que adaptar alguns adereços para o suporte da cena que idealizou. Selvagens sim – como a pele de onça – mas exímios cavaleiros.

“Acredita-se que os Mbayá-Guaikurus tiveram de 6 mil a 8 mil cavalos sob seu comando naquela época. O que se sabe, porém, é que a tropa foi bastante usada: só contra brasileiros e portugueses, os indígenas travaram intensas batalhas por mais de 70 anos, desde a década de 1720 à virada do século 19.” [3]

Mas é bom referendar uma história mais atual para quem quiser avançar, entender a situação contemporânea do povo Kadiwéu, descendente dos guaicurus. Conta-se que, no fim do século 19, foi o imperador Dom Pedro II quem lhes deu a terra onde vivem ainda hoje, na fronteira do Mato Grosso do Sul com o Paraguai. A concessão de uma gigantesca reserva seria uma recompensa pelo apoio de seus antepassados, durante a Guerra do Paraguai.

 

O fato é que estas terras nunca lhe foram concedidas e, por conta da guerra, eles quase desapareceram, os Kadiwéus foram aqueles que sobreviveram, hoje reduzidos a poucas centenas de indivíduos. Anotando: a grafia do nome Kadiwéu aparece em tantas variantes que é preciso tomar uma como referência. Imagino que a pronúncia também o seja, naquilo que é ouvido. Somente um antropólogo ou um linguista de boa cepa poderia nos indicar corretamente... e contar mais histórias.

Mas, pretendo ir além na motivação desta página. Na geração das pesquisas, nesse encadeamento bibliográfico que às vezes nos leva a outros caminhos, quis saber mais sobre os Kadiwéus, cuja história e arte é motivo de reconhecimento e estudos, por antropólogos, historiadores e artistas.

E, aí, vem a figura e outra história fascinante. Guido Boggiani e a arte dos Kadiwéus, para uma continuação...