Era uma vez...
Uma mulher com 2024 anos de idade que regressava
teimosamente aos exemplos e cultivo de deusas ancestrais, rainhas da luz e das
trevas. Espirais do conhecimento, movimentos de idas e voltas nos embates com o
mundo e reveses além do cotidiano, neles se enovelava.
Louvou Inana, exemplo da única mulher deusa que, antes do
dilúvio, desceu aos infernos e dele voltou, refazendo seu destino. Invocada,
Inana fez companhia a essa mulher que, volta e meia, nos círculos do tempo,
abria portais e lutava em desespero pela vida e pelo amor.
No oco do corpo, um abismo foi construído. Ali encontrou o
caminho da descida, degraus que a sustentavam e que se deterioravam com o
aglomerado de mágoas e culpas. Dos olhos mágicos de Inana vinham os créditos da
continuidade, ainda que o risco da queda fosse previsível.
Entre o céu e a terra em que navegava Inana, essa mulher
achou que também podia ser uma deusa. Mas o abismo em que descera, também
submergia sua onírica intenção. Assim, passou a louvar seu monstro interno, ela
mesma, gostando de ser algoz e vítima.
Inana sabia o que essa mulher não sabia. Encontraram
demônios e os mais perigosos ela lhe ensinou a esconjurá-los. Da revolta guardou
pouco saber, mas aprendeu a continuar. Cicatrizes ficam cravadas nas artérias
em circulação, labirinto em que se perdera, sem fio de resgate.
Inana, numinosa, proferiu o dito irreversível, enunciado repetido,
sucessivo, vozes em coro, em solos, pelos séculos e séculos amém “eu sou a luz
do mundo”. E se despediu dessa mulher que ficou presa na metáfora epifânica de
si mesma.
Então ela começou a subir os degraus da volta. Pelo oco do
corpo foi vendo o que construíra, em galhos e papel, preto e branco, em cores,
legitimando o reverso de sua humana aceitação. A espiral ascendente
resplandeceu para que essa mulher entendesse para que viera e caminhara séculos
e séculos amém!
Foto tirada do livro:
Inana: antes da poesia ser palavra era mulher/Enheduana: traduzido do sumério por Guilherme Gontijo Flores, Adriano Scandolara. São Paulo: sobinfluencia edições, 2022. (p. 84/85)
Nenhum comentário:
Postar um comentário