Bet com t mudo

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BET COM T MUDO... Quem me conhece, reconhece? Já me imagino receptora deste blog. Quem é esta mulher? Quem é esta Eli, Elisa, Betina, Betuska, Betî, resumida numa Bet com t mudo? Esta afirmação diminuta diz (ou desdiz?) uma identidade... Assim, quem sou eu? Sou (sim) uma idealizadora das pessoas, das relações, das amizades, das produções minhas e dos outros. Consequência: um sofrimento que perdura... na mulher crítica que procura saber e tomar consciência finalmente de quem é e do que ainda pode fazer (renascer?!) nesta fase da vida, um envelhecimento em caráter de antecipação do inevitável. Daí a justificativa do blog. Percorrer olhares, visualizar controvérsias, pôr e contrapor, depositar num receptor imaginário (despojá-lo do ideal, já que eu o sou!) uma escrita em que o discurso poderá trazer uma Bet com t falante... LEITURAS, ESCRITAS, SIGNATURAS...

terça-feira, 14 de agosto de 2018

Prainha longe de casa




Ron ron ronrrrr... ainda sinto esse ronronar quando Prainha se deitava comigo, todas as tardes, para minha soneca. E gostava de ficar no lado direito do ombro. Às vezes pesava sobre meu seio, eu o ajeitava e ele dormia bem relaxado. Mas acordava, um bom tempo depois, e me chamava para eu lhe dar comida ou água. Ultimamente, debilitado, ficava mais nos pés ou nas pernas, perto do meu joelho, também doente. Depois não conseguia nem mais subir na cama, ficava na porta do quarto, deitado, levantava-se, ia até o tapete do banheiro, ficava um pouco lá, voltava, inquieto. Mas quieto no seu ronronar. Tudo silencia.




Tenho fotos de Prainha, sempre lindo, posudo. Mas não tenho gravações de seu ronronar, de seus miados, quase sempre discretos. Mas, como chorava, um miado alto, quando eu saía a pé, batendo o portão. Muitas vezes eu voltava, o consolava e saía novamente com o coração apertado. Sempre que chegava, ao abrir o portão, ele estava ali, ao lado, entre as plantas do jardim, me esperando. Valdir disse, inclusive, que, quando ouvia o portão abrindo, se ele estivesse no nosso quarto ou no tapete do banheiro, saía desabalado para me encontrar. Dorminhoco, mas atento em seu sentido de 
gato...





Quando saíamos de carro, ele não chorava. Parecia aceitar, pois sempre o carro voltava. Talvez tivesse medo de que, ao bater o portão, eu o abandonasse. Vi esse seu desespero, no Rio de Janeiro, quando Juliana, minha filha, sua primeira dona, saía para trabalhar e ele ficava preso todo o dia num pequeno apartamento, observando as gaivotas do 10º andar, como se quisesse alcançá-las... Ainda bem que era inteligente para perceber o impossível. Ele, que não me abandonava nunca, sempre ao meu lado, em que cômodos estivesse... Dono dos móveis e dos interstícios, arranhava ou dormia... Preferências bem sabidas. Mas no jardim, no emaranhado das icsórias, encontrava seu lugar, talvez ali por ser fresquinho, um felino selvagem ainda, em lembranças de uma selva ancestral.


Caçou um tanto... Lagartixas principalmente, que abundam no muro, entre as pedras. Alguns passarinhos, mas não devorava, apenas matava quando conseguia dar o bote. E olhava muito para o papagaio aqui em casa, na gaiola. Humm... se pudesse... Fiquei “fula” com ele por duas vezes... quando matou um dos filhotes de passarinhos que se lançava para voar. Os pais do filhote ficaram enlouquecidos... queriam atacar o Prainha, como se isso fosse possível. Ele, como todo felino, brincou com sua presa, pois o passarinho havia caído no chão, mas o estrago estava feito. Tirei o filhote dele, pus na casinha, mas o bichinho não resistiu.  De outra feita, quando o vi pegar, no ar, um filhote de beija-flor, tão delicado. No início, quando veio do Rio de Janeiro para cá, quase um filhote também, levava “presentes” para Juliana. Só ouvia os gritos das surpresas, principalmente quando levou até uma barata...



Quando ela se mudou para os Estados Unidos, eu o adotei, completamente apaixonada pelo Prainha. E foram 15 anos cuidando dele, curtindo, amando suas idiossincrasias... como não? Personalidade, ele tinha. Aliás, não havia quem não gostasse dele. Mesmo arisco, às vezes se “amostrava”... principalmente para mostrar que ele era da casa, era o meu dono e não admitia intrusos neste envolvimento doméstico... Muito lindo, enorme, peludo, um SRD de muita classe. Certa vez, num documentário na TV, vi que ele era um “gato doméstico de pelo longo”. Sim, podia ser, mas entrelaçávamos nossos pelos e afagos. Não há mais gestos.




Se lamber, coçar, tudo eu acompanhava e até me divertia... que língua!!! E dormir “arreganhado”, que paraíso de entrega! Adorava comer as pétalas das rosas... típico não? Quando sentia cheiro de peixe ou sardinha na cozinha, o sono ia embora... Colocava bichinhos e bonecas perto dele... nem tchum, mas as fotos ficavam divertidas. Tomava sol todos os dias no banco do jardim, em sua homenagem. Estranhei quando comia grama ou folhas de capim santo... depois me explicaram o porquê.  O cotidiano era preenchido. Meu modelo favorito!



Seu nome causava estranheza... Prainha, por quê? Geralmente precisava explicar. Explico. Foi achado, filhote abandonado, no Rio de Janeiro, na Prainha, praia de surfistas. Juliana, minha filha, morava e trabalhava no rio e namorava um surfista... dá para entender, não é? Quando ela teve que ser operada da coluna, passou um bom tempo em Petrolina e o trouxe. Sair de um apartamento pequeno para uma casa com quintal e jardim, deve ter sido um alumbramento. No primeiro dia subiu no telhado! Mas não conseguia descer, ficou com medo... nunca mais tentou. Tentou o guarda-roupa do meu quarto, conseguiu, até hoje não entendo o alcance daquele pulo... Depois se aquietou para galhos mais baixos... Folgado, engordou bastante uma época, seus pêlos sedosos o transformaram, segundo uma amiga em "gato almofada"...



Foi um estágio. Quando Juli definitivamente foi para os Estados Unidos, a melhor decisão foi deixá-lo aqui. Além dos custos, achamos que ele não iria suportar a viagem, a quarentena. Em casa ele teve espaço, carinho e atenção.

De dois anos para cá, começou a declinar. Nunca havia ficado doente, somente o levava ao médico para vacinar. Mas os problemas foram aparecendo, infecções urinárias, falta de apetite, até o coração estava doente.  Emagreceu 50% do seu peso normal. Tentamos vários tratamentos; para tirar o sal das rações (aliás, já não queria mais rações secas, que fora seu alimento durante anos), tentei fazer papas de frango desfiado, com legumes... até comprei um mix. Mas, para desespero meu, ele vomitava tudo... Foi internado duas vezes... por causa do cone, voltava ainda mais debilitado, cabeça baixa, caindo de fraqueza. Então resolvemos não mais internar, o próprio veterinário disse que ele poderia morrer a qualquer hora. A vida seguia difícil, a morte o aguardava...

Juliana disse que ele foi morar num céu cheio de sardinhas... É, pode ser, uma consoladora alegoria para o que não tem retorno... 

Fiz reflexões, analogias com minha velhice, com o futuro inevitável... Sensibilizada, todos que conheceram o Prainha, têm me confortado. Achei isso uma amostra de humanidade, um degrau acima da indiferença, que os torna ainda mais meus amigos. Muito obrigada.

Elisabet Gonçalves Moreira

(Um poema que me consolou...)


Elegiazinha

Gatos não morrem de verdade:
eles apenas se reintegram
no ronronar da eternidade.

Gatos jamais morrem de fato:
suas almas saem de fininho
atrás de alguma alma de rato.

Gatos não morrem: sua fictícia
morte não passa de uma forma
mais refinada de preguiça.

Gatos não morrem: rumo a um nível
mais alto é que eles, galho a galho,
sobem numa árvore invisível.

Gatos não morrem: mais preciso
— se somem — é dizer que foram
rasgar sofás no paraíso

e dormirão lá, depois do ônus
de sete bem vividas vidas,
seus sete merecidos sonos.

[i. m. nikita (gata da Inês)]

De: ASCHER, Nelson. Parte alguma. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.




(Prainha 2003-2018)

                                                                                                     Petrolina, 14 de agosto de 2018.

domingo, 10 de junho de 2018

INVOCAÇÃO NA VOZ SERTANEJA

                                                                                          Elisabet Gonçalves Moreira

“Seu dotô, só me parece
que o sinhô não me conhece,
nunca sabe quem sou eu,
nunca viu minha paioça,
minha muié, minha roça,
e os fio que Deus me deu.

Se não sabe, escute agora,
Que eu vou contá minha história,
Tenha a bondade de uvi:
Eu sou da crasse matuta,
Da crasse que não desfruta
Das riqueza do Brasil.”

Patativa do Assaré, Cante lá que eu canto cá (Petrópolis, Vozes, 1978, p. 114)

            Que voz é essa do poeta que tanto apela em seu cantar? Não é uma invocação às musas como na poesia clássica, mas a um “dotô” em outro polo da comunicação,  voz chamada às falas, generalizada em seu aspecto distintivo, como um sinhô, sem cara ou nome. Um sinhô que nunca soube atender esse apelo histórico num país de desigualdades e contrastes.
            Percebo que estes signos de apelo não são destinados tão somente à consciência de um receptor imaginário, mas à consciência do próprio autor, tradição e memória, enquanto eu coletivo. Embora voz nomeada em sua autoria, uma poética oral não mais anônima - Patativa do Assaré é Antônio Gonçalves da Silva - revela também uma forma de marcar presença no mundo e caracterizar esse mesmo mundo em que ele vive.
            E é este mundo em que ele vive, onde vive seu receptor imediato, o do momento da declamação do poema, de sua escuta. Paul Zumthor[1] me lembra sobre a performance da oralidade “O ouvinte espectador espera, exige que o que ele vê lhe ensine algo mais do que simplesmente o que ele vê, revele-lhe uma parte escondida desse homem, das palavras do mundo.”
            E é essa leitura de mundo que atende o assim chamado poeta popular.  Não é só a identificação de classe social, mas da enunciação emotiva e poética de um porta-voz dessa mesma classe. Haveria neste apelo, pela voz dos oprimidos, um equívoco da função poética no sentido de sua função social como dominante? Rosemberg Cariry responde: “Patativa do Assaré consegue, com arte e beleza, unir a denúncia social com o lirismo.[2] Os aplausos do seu público são merecedores dessa conjugação de funções e de sua dinâmica.
            Zita Alves, poeta de Petrolina, mas cearense de origem como Patativa, morando no distrito de Vermelhos, em Lagoa Grande, na fazenda Ouro Verde, distribuída para o MST, também apela para uma variedade de receptores, referências generalizadas, mesmo quando nomeadas. Alguns versos desta mulher sofrida e sensível valem ser lembrados. E, esperamos, ter sua obra divulgada e estudada, já que tem 10 livros inéditos, primorosamente datilografados por ela própria.

 “Apelo da Nordestina”, escrito em 1982, é exemplar neste tema.

“Seu governador do estado
A coisa aqui ta pior
Sempre tenho trabalhado
Pra vida ficar melhor
Eu pego a foice, e o machado
Vou bem cedo pra o roçado
Pra brocar a macambira
Trabalho sem resultado
Eu já não falo em calçado
E a roupa? Que virou tira?”

Aqui, uma seleção de fragmentos, nessa função apelativa.
                
                                                          “Deus do céu, olhe o Sertão.”

“Meus filhos escutem
Os meus bons conselhos”

                                                      “Dona Compesa eu te rogo
                                                        Que mande logo esta água
                                                        Para o desprezado bairro
                                                         Que não tem água encanada.
                                                                          ...
Dona Compesa repare
A nossa calamidade
Olhe que este bairro sofre
Sofre mesmo de verdade.”

                                                             “Boa noite, seu Vigário
                                                              Eu vim pra me confessar,
                                                              Mas não sei se é meus pecado
                                                              Que eu quero le contar,
                                                               Pode até ser o estado
                                                               Do mundo ser como está”

Olhe aqui, seu professor
Analise o meu caderno
Fiz o que o Sertão criou
Sobre o verão e o inverno
Só não descrevi as flor
Do nosso Sertão moderno.”

                                                                “Santo Antônio Pequenino
                                                                  Ou Santo Antônio Viajante
                                                                  Me dê um casamentinho
                                                                  Que já perdi a esperança
                                                                  Quero casá no domingo
                                                                  Ou quando chegar as festas
                                                                  Se eu me casá este ano
                                                                  Eu agradeço a sua oferta”

            Se apelar é “invocar proteção ou testemunho”, o homem ou a mulher do sertão, da periferia da cidade, espera das autoridades um olhar efetivo sobre suas dificuldades. Mesmo convivendo com elas, tem consciência das limitações de seu protagonismo. Na verdade, quer ser ouvido, ser social historicamente alijado, mas presente.
            Esta mediação entre o eu, poeta popular até o outro, generalizado em seu apelo, seja o doutor, a entidade pública, o vigário, o coroné, o Poder enfim, se dá através de vários índices. Assim, o apelo, função conativa da linguagem, na classificação linguística de Roman Jakobson, funciona como pretexto para a expressão do eu coletivo, diria mesmo épico em sua representação.
            Observem que o uso do vocativo é feito de uma maneira muito respeitosa, sem agressividade. O apelante, vamos chamá-lo dessa forma, não é nem o leitor/ouvinte explícito. É apenas uma referência, já que ele nunca estará presente. A função social da literatura e do poeta é evidente nestas intenções. Mas é assim que funciona no senso comum sua capacidade de expressão, seu mundo invisível, longe do poder constituído. E por ele esquecido...
            Algumas vezes em que tive ocasião de ouvir Patativa e outras “cantorias”, os poemas pessoais, intimistas, mais curtos inclusive, não são declamados em público. Poemas narrativos ou jocosos são sempre bem recebidos. J.Borges, por exemplo,  com a leitura de seus folhetos é sempre um sucesso.
            As reações do leitor ou do receptor são predeterminadas pelas estruturas de apelo. Elas precisam do receptor para adquirir sentido e significação. Não é mais só o artefato artístico isoladamente, mas sua condição de vivência como obra de arte.
Assim, se projeta o sentido ali depositado em palavras, vozes que ainda insistem em fazer poesia e dar testemunho. Ouvidos moucos são daqueles que percebem, mas fingem não perceber, a existência desse mundo escorraçado. Mas tudo tem seu tempo, a história dos oprimidos está em processo neste país e ainda há esperança.

“Quero um chefe brasileiro
Fiel, firme e justiceiro
Capaz de nos proteger,
Que do campo até a rua
O povo todo possua
O direito de viver.”

Patativa do Assaré, primeira estrofe do poema “Eu quero” em Cante lá que eu canto cá (Petrópolis, Vozes, 1978, p. 116)

https://www.youtube.com/watch?v=PLPp_tlWvUM 

                                                   
(Petrolina, março de 2015. Refeito em junho de 2018.)




[1] Paul Zumthor, A letra e a voz. SP: Cia das Letras, 1993,
[2] Rosemberg Cariry, cineasta, em sinopse sobre o documentário “Patativa do Assaré – Ave Poesia”. http://patativaofilme.blogspot.com/

domingo, 7 de janeiro de 2018

Maquiavel e o diabo no corpo


“Posto que a vida é breve
e muitas são as penas
que vivendo e lidando se padecem,
seguindo nossas ânsias
vamos passando e consumindo os anos,
pois do prazer privar-se,
p’ra viver em afãs e aflições,
é ignorar os enganos
do mundo ou por quais males e estranhos casos

sejam tiranizados todos os mortais.”

                                       Nicolau Maquiavel (A Mandrágora, início)


Minha vida de aposentada é feita de muitos projetos, desafios, propostas e... procrastinação!

Procrastinação é o diferimento ou adiamento de uma ação. Para a pessoa que está a procrastinar, isso resulta em stress, sensação de culpa, perda de produtividade e vergonha em relação aos outros, por não cumprir com as suas responsabilidades e compromissos. 

Embora a procrastinação seja considerada normal, torna-se um problema quando impede o funcionamento normal das ações.
Isso me informa a Wikipédia e muito mais e... paro por aí. Não, não fico impedida de fazer e fazer... ou tentar!!!! Como num divã de psicanalista, me fez bem pensar que essa síndrome seja considerada "normal"... Porque sou múltipla, sempre a me meter em muitas coisas ao mesmo tempo, naipes variados, habilidades manuais e intelectuais. E aí entra o senso crítico, esse sim desgastante e que leva à procrastinação...

Explicando: embora tenha uma espécie de planejamento anual para minhas atividades, procrastinar ações faz parte de mim, porque, culpa e motivo, lá vem um insight fora de qualquer controle. Leituras e fatos tecem links que me afastam de propósitos e trabalhos iniciados.

Mas eis que de repente vem um insight, uma epifania. E mais um verbete introdutório.

Epifania, do grego "epiphanéia", podendo ser traduzido literalmente como “manifestação” ou “aparição”, é uma súbita sensação de entendimento ou compreensão da essência de algo. Também pode ser um termo usado para a realização de um sonho com difícil realização. O termo é usado nos sentidos filosófico e literal para indicar que alguém "encontrou finalmente a última peça do quebra-cabeças e agora consegue ver a imagem. (...) Do ponto de vista filosófico, a epifania significa uma sensação profunda de realização, no sentido de compreender a essência das coisas, tendo significado similar ao termo insight.

Epifania na Literatura Na literatura, a epifania pode ser considerada a forma de se mostrar um conceito. Também é entendido, para o autor, como a maneira de expor claramente suas ideias ao interlocutor, ou seja, tornar suas ideias legíveis.[1]

Significados que me concernem...
...................................................................................................

Assim que, no propósito de ler contos da coleção Maravilhas do Conto Universal, na antologia de Literatura Italiana, me encontro com o diabo, ou melhor, o conto de Maquiavel.

O arquidiabo Belfegor (SP: Cultrix, 1958)

O que sei sobre Maquiavel revela-se admiravelmente na ficção. Na estante, também retomo a comédia A Mandrágora (SP: Abril Cultural, 1976) e tudo se confirma.

Pode não ser novidade, mas é esclarecedor. Sem pretensão de um estudo de cunho acadêmico, resolvo sintetizar e compartilhar ideias e relações: não dá para adiar esse instante.

Maquiavel (Niccolò Machiavelli, 1469/1527, Florença, Itália). Machiavelli, sobrenome que virou também adjetivo: maquiavélico.

De link em link, vou peneirando considerações.

Significado de Maquiavélico
Adjetivo: Pérfido; sem escrúpulos (...) Que se refere a maquiavelismo; que nega as leis morais. De acordo com a doutrina de Maquiavel, considerada como a negação de toda moral: política maquiavélica.
Maquiavelismo é a denominação que se dá à doutrina política emanada do livro O Príncipe, escrito por Nicolau Maquiavel em 1513.

O pensamento de Nicolau Maquiavel está focado, sobretudo, na reflexão política como luta pelo poder a qualquer preço. É por isso que o conceito maquiavélico também pode ser aplicado quando uma pessoa realiza uma ação pouco ética através de um critério onde o fim justifica os meios. Embora ele nunca tenha afirmado isso diretamente, é costume atribuir-lhe esta frase, nestes lances curiosos de interpretação ou de cultura de efeito.

A vivência de Maquiavel, nas cortes italianas e embaixadas, exercendo cargos políticos ou caindo em desgraça, mostrou-lhe as nuances do poder e da política em seus jogos de ambição. Daí seu “príncipe”, como governante, se caracterizar em um princípio, uma atividade humana.

Indico pois a leitura do conto, onde podem confirmar relações ou despertar interpretações outras. O arquidiabo Belfegor pode ser lido diretamente neste link:

http://www.jornalopcao.com.br/colunas/imprensa/um-conto-de-maquiavel-sobre-o-casamento

Este conto também foi publicado no livro “Os Cem Melhores Contos de Humor da Lite­ratura Universal”, organização de Flá­vio Moreira da Costa, Editora Ediouro. Tradução de Paulo Rónai e Au­rélio Buarque de Holanda, além de outras edições, da Claret e da Escala.

Ou ler diretamente em italiano:

http://digilander.libero.it/opere_di_machiavelli/machiavelli_belfagor_arcidiavolo.html

Observem que no link do jornal já vem um direcionamento de leitura “um conto de Maquiavel sobre o casamento.” Isso limita muito a interpretação. Há várias ações no texto, como episódios de um contexto. O casamento é apenas uma referência para a ação de Belfegor sair do Inferno, vir para a terra, casar-se e demonstrar o que estava incomodando os diabos: todos os homens reclamavam que a culpa era da mulher.

Belfegor (ou Belfagor) não é um diabo qualquer: é um arquidiabo, um dos príncipes do Inferno “que já havia sido anjo, antes de ser precipitado do céu”, nos esclarece o autor.[2] A questão do bem e do mal e algumas de suas nuances é trabalhada irônica e alegoricamente.

Curiosidade: este conto também foi citado por Edgard Allan Poe, em “A queda da casa de Usher”, como leitura dos personagens. O indicativo de um diabo entra na atmosfera lúgubre do texto, com um final extremamente trágico, diferente do conto de Maquiavel, o oposto neste sentido.

Encontrei esta ilustração, cuja caricatura do diabo “quebra” o imaginário de um ser escabroso, realmente satânico... Cômica, a narrativa entra na linha dos que conseguem, espertamente, ludibriar o diabo. A astúcia, a inteligência ou a cupidez demonstram que isso é possível.


Ora, como não associar também com o conceito de carnavalização de Mikhail Bakhtin, onde o “mundo às avessas” é uma desconstrução do preestabelecido, nesse caso uma gozação do poder dos infernos. Os resquícios da Igreja medieval são questionados no Renascimento com uma audácia... “maquiavélica”.

Este conto também já foi adaptado para o teatro, pela sequência de ações. Além de outros aspectos contemporâneos, ressalta-se o machismo como matiz ideológico, pois só a mulher tem “o diabo no corpo”. Pobre Belfegor, o casamento foi sua ruína. E a esposa tinha o nome de Honesta...

No conto, não há personagem que se salve; todos são venais, embora o sejam quando provocados. A tentação aparece como pano de fundo que possa justificar a corrupção generalizada.

O final do conto é impagável, hilário, uma piada de salão. Melhor não contar...

“E eis aqui como Belfegor, de volta ao inferno, pôde dar testemunho dos males que uma mulher leva consigo a um lar, e como João Mateo, que foi mais astuto do que o diabo, pôde retornar à sua casa cheio de alegria.”

....ooo0ooo....

Retomando os inícios, penso ter justificado o encadeamento dos verbetes e das referências. Parodiando Maquiavel, constatar o inevitável: “somos todos mortais”.


Elisabet Gonçalves Moreira
Petrolina, 7 de janeiro de 2018.


[1] Santo Deus: escrevo isso no dia de Reis, 6 de janeiro, em que se comemora a Epifania do Senhor, ou seja, o nascimento de Jesus, pela visita dos reis magos... Não, não vou procrastinar...


[2] Belphegor ou Belfegor ("o senhor do fogo"), divindade moabita venerada no monte Fegor. O sabá dos feiticeiros da Idade Média não foram senão uma repetição, herança das festas de Belfegor. Belphegor é um dos sete príncipes que governam o Inferno, sendo a personificação do primeiro pecado, a preguiça.

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Um caso reaberto


Elisabet Gonçalves Moreira

Queria ter a concisão e o talento de Tchékhov para reabrir este caso, tido como “Um Caso Encerrado” por meu ex-professor Boris Schnaiderman[1]. Sim, porque o texto de Boris no livro “O mundo coberto de jovens” funciona como um conto de Tchékhov, dado que, naquela noite em que a repressão policial bateu na nossa sala de aula, na Universidade de São Paulo, em 1969, estávamos analisando um conto de Tchékhov.  E ele estava impregnado do poder da literatura que a reviveu ao narrar o fato.

Éramos então poucos alunos do curso de Russo e tínhamos aula à noite numa sala pequena, em torno de uma mesa, no prédio de História e Geografia. A recordação dessa noite foi tão forte que Boris Shnaiderman inicia seu texto remetendo àquela aula que ficou também em minha memória, porque ali estava e fui testemunha.

“Uma das lembranças mais gratas da minha atuação como professor de Língua e Literatura Russas da Universidade de São Paulo liga-se a momentos que passei estudando com os alunos o conto “Brincadeirinha”[2], de Tchékhov. (...) Eu ia pensando nesses e em outros exemplos, parado, giz na mão, diante da lousa com o trecho escrito em russo. Mas, quando estava tão embevecido com meus exemplos literários e os alunos também (estávamos, pois, naquele momento ótimo da transmissão de um texto), ouvi alguém bater à porta, nos fundos do prédio de História, na Cidade Universitária, onde tínhamos aquelas aulas, e que permanecia sempre fechada.
Contrariado por esta interrupção, pedi a um dos alunos que abrisse aquela porta. Apareceram, então, dois indivíduos de paletó e gravata, cada um com um revólver grande na cintura.”

Pediram nossos documentos de identidade, mas o Boris, irritado, fez, como ele mesmo diz, “um discurso violento” e foi levado preso, depois que chamaram outros policiais, incluindo um com uma vistosa metralhadora.

Mas de que me lembro com nitidez foi a ousadia do Boris – e ele não se lembrou disso – ao se dirigir para os policiais que entraram que “respeitassem a autonomia universitária”,  como se isso fosse possível. Ele estava mesmo zangado pois balançou o dedo na cara do policial. Claro que a coisa não poderia acabar bem... O cara da metralhadora pegou a carteira de identidade e disse ironicamente “Só podia ser russo”... embora o professor fosse naturalizado brasileiro. Naqueles tempos de ditadura militar russo era um palavrão, sinônimo de comunista e perigoso para o sistema.
No ponto de vista do relato de Boris, acompanhamos a cena com suspense. E suspense vivemos nós, alunos assustados naqueles tempos de terror.

Levaram o nosso professor e nos deram ordens para ficarmos encostados à parede, com os braços erguidos. Fizeram uma revista, tocando em nossos corpos, mais do que deveriam. Éramos poucos, não me lembro bem, mas não chegávamos a dez pessoas, a maioria moças. Como eu, então com 23 anos.

Disseram que não saíssemos dali. Não podíamos ver o que acontecia, pois a sala era pequena. Mas dispararam um tiro.  Havia duas grandes rampas de acesso ao andar superior do prédio e realmente isso impedia a visão. Pronto, pensamos, mataram o Boris...

E aí aconteceu um fato: ainda com as mãos na parede, sentimos um cheiro esquisito. Uma das moças havia urinado nas calças ou talvez até se sujado. Então soube que isso, sim, era possível, “cagar de medo”.

Mas o medo foi dando lugar ao que havia de ser feito. Havia silêncio, já era tarde, depois de 10 da noite, e saímos da sala. Preocupados, soubemos que o Boris estava vivo e fora levado para o Dops, o temível Departamento de Ordem Política e Social, perto da Estação da Luz.

Então decidimos, nosso pequeno grupo, ir até a casa de Boris para avisar Regina, sua esposa. Já não havia mais ônibus neste horário e fomos bem apertados num fusquinha de uma das colegas até o bairro de Santa Cecília. Lembro-me que eu estava com o coração aos pulos, com as emoções daquelas últimas horas. Porque o medo continuava, sabíamos que podiam torturar e matar no Dops, notícias de todos os dias, mesmo a boca pequena.

Subimos até o apartamento do professor. Regina nos atendeu e, às vezes, agora, tenho até vontade de rir, porque a reação dela foi exatamente o oposto do que se esperava. Ela ficou muito brava, disse coisas que “esse Boris não tem jeito”. Míriam e Carlos, seus filhos, apareceram sonolentos. Mas Regina disse que ia avisar algumas pessoas, incluindo Dom Paulo Evaristo Arns e, se me lembro bem, Gofredo da Silva Teles, advogado. Nomes que tiveram lugar na denúncia das arbitrariedades policiais e repressivas da época.

Um pouco mais tranquilos, voltamos para nossas casas.
O resto daquela noite, o Boris nos relata, assim como Aurora Fornoni Bernardini, também amiga, em seu Discurso de Saudação na Outorga do Título de Professor Emérito a Boris Schnairderman, pela Universidade de São Paulo, em 2001, que eu guardo, entre muitos outros materiais e livros que o Boris me enviou, morando eu em Petrolina, desde 1976. Boris voltou para casa “são e salvo” como soubemos depois, após sua prisão.

“Em todo caso, assim se encerrava mais um capítulo de minha relação com as autoridades constituídas.” Parágrafo final de seu relato.






[1] Depoimento/conto/causo no livro Um mundo coberto de jovens/organização Benjamin Abdala Júnior. São Paulo: Com-Arte, 2016. “Um Caso Encerrado” de Boris Schnaiderman, p. 41-47.
[2] Este conto pode ser lido on line com o nome Brincadeira, sem indicar a tradução. http://www.baratosdaribeiro.com.br/clubedaleitura/2009/01/15/%E2%80%9Ca-brincadeira%E2%80%9D-de-tchekov/
Impresso em livro:
Kaschtanka E Outras Histórias De Tchekhov – tradução de Boris Schnaiderman e Tatiana Belinky.
São Paulo: Boa Companhia, 2014.

Na foto abaixo, Boris (1917-2016) e eu, em setembro de 2010, em seu apartamento em São Paulo. 41 anos depois deste fato. Uma amizade que atravessou décadas. Um carinho e lembranças que reabrem memórias...

                                         

sábado, 11 de novembro de 2017

FEMICÍDIO

Aconteceu. Acontece. Um crime – feminicídio pela Lei – em Petrolina. Um homem matou a namorada com uma furadeira elétrica e golpes de faca. Não posso me esquecer do horror. E, por desafio de uma discussão sobre “Narrativas do Feminino”, retorno à escrita. Neste caso, um “rap” bem recebido e aqui distribuído.


                                   Femícidio
                                                                                                   Elisabet G. Moreira

                        Havia um corpo de mulher
                        Havia buracos entre braços
                        Não mais abraços.
                        Metáforas de vaginas
                                                FEMICÍDIO (coro)
                        Apenas pênis vibratório
                        Ferramenta furadeira que penetra
                        Afiada faca que aumenta furos,
                        gemidos e gritos do horror.
                                                        FEMICÍDIO
                        Não ao gozo da fêmea
                        Sim ao prazer do macho alfa
                        Em posse de obscena cena.
                                                         FEMÍCIDIO
                        Irracional maldade
                                                         FEMICÍDIO

                         Help me help us
                         Um rap réquiem...

https://www.carlosbritto.com/homem-e-preso-em-petrolina-apos-matar-namorada-usando-uma-furadeira/

15 de outubro de 2017

Um homem foi preso no Bairro Gercino Coelho, zona leste de Petrolina, após ter matado a namorada utilizando uma furadeira. O fato, de acordo com o 5º Batalhão de Polícia Militar (BPM), aconteceu por volta das 21h de ontem (14). O acusado é Jeidson Santos de Morais, de 27 anos, o qual confessou ter cometido o crime contra Vanderléia Carvalho Macedo, também de 27.

A vítima foi encontrada sem roupa, já sem vida, com vários ferimentos provocados por furadeira e também com perfurações de golpes de faca. O acusado, após cometer o crime, ligou para a mãe da vítima e contou o que tinha feito, pedindo para que ela fizesse deslocamento até o local do crime, na Avenida das Nações, nº 517.

À polícia, ele confessou que houve uma discussão por causa de mensagens enviadas ao WhatsApp do mesmo envolvendo a sua namorada, e que teria “perdido a cabeça”, agindo de maneira descontrolada até cometer o crime. No local do fato foi encontrada uma furadeira com vestígios de sangue. O acusado foi encaminhado à Delegacia de Polícia Civil, enquanto o corpo da vítima foi removido para o Instituto de Medicina Legal (IML).




O Feminicídio é crime previsto no Código Penal Brasileiro, inciso VI, § 2º, do Art. 121, quando cometido "contra a mulher por razões da condição de sexo feminino".[8] O §2º-A, do art. 121, do referido código, complementa o supracitado inciso ao preceituar que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve: I - violência doméstica e familiar (o art. 5º da Lei nº 11.340/06 enumera o que é considerado pela lei violência doméstica);[9] II - menosprezo ou discriminação à condição de mulher. O feminicídio foi incluído na legislação brasileira através da Lei nº 13.104, de 2015. Muitas vezes popularmente ainda chamado de "crime passional".





quarta-feira, 19 de julho de 2017

As cidades visíveis

Retomando um fazer: crônica... motivada por um curso com Luiz H.Pellanda. Já redigi muitas crônicas, para serem lidas num programa de rádio em Juazeiro, nos anos 80... poucas ficaram como texto viável, dada sua efemeridade. De todo modo, o desafio lançado foi falar cronicamente sobre a cidade... especialmente aos olhos do "flâneur", aquele que perambula... e vê, se tiver olhos para ver.

As cidades visíveis
                                                 Elisabet Gonçalves Moreira


Por que não gosto de caminhar pelas ruas de minha cidade? Nada é uniforme, então tenho dificuldades para andar, para me desviar de buracos, de cocô de cachorro... também me incomoda o cheiro de esgoto que vem das bocas de lobo... ou de xixi velho nas encostas de muros... da visão do lixo que se espalha, principalmente sacos plásticos vazios que se agarram como se vivos fossem.

Meu trajeto é curto. Nas imediações de casa, quase periferia, caminho porque também é preciso desenferrujar as juntas, olhar o mundo além do meu muro com cerca elétrica. Levar apenas o essencial, saber da certeza de voltar onde a vida se desenrola devagar e confortável.

Mas, de repente, vejo uma grande folha vermelha de castanhola que o vento de julho trouxe no meu caminho. Vermelha, uma cor que eu ou um mestre jamais conseguiria reproduzir... ah, olhos de artista, me diz minha companheira. Sim, meus olhos enxergam essas cores, o amarelo pálido das xananas nos vãos e interstícios das margens das ruas...

Olho por onde piso... quase um provérbio. Então vejo e também ouço... Barulhos artificiais de artifícios tão modernos como uma acelerada de moto, do escape de um carro, de gente apressada ou em exercício de levar o cachorrinho para passear, mais um fazer obrigatório do viver na cidade.

De cidade vem cidadão. Que relação haverá neste conceito? Ser da cidade, citadino, exclui o camponês, o ribeirinho, o favelado e outros nomes que moldam condições e classes sociais? Tantos significados, estereótipos, preconceitos e uma dinâmica que vai e vem, apesar dos guetos e dos condomínios fechados.

Impossível ver uma cidade sem pensar em suas contradições, no que está imóvel e belo no  cartão postal e o que se vê nas ruas, nas praças, num pulsar quase frenético... O flanelinha insistente com sua lata d´água abastecida no jardim público, o malabarista da esquina, pedintes em várias situações, aqueles que entregam pequenos panfletos de propaganda de óticas, de dentistas... por que não fazer um empréstimo consignado? Ou visitar Madame Devoica?

Tantos moldes, situações, embaraços, embrulhos, sacolas, gritos, buzinas, o horror se instalando no caos... que se ordena no final do dia, no apagar das luzes... Sim, podemos ver ou viver... vendo o vermelho de uma folha de castanhola ou ignorando o que se passa, inevitável como o desenrolar dos dias...


Petrolina, 14 de julho de 17




quinta-feira, 27 de abril de 2017

“O SAMBA É FOGO”: O povo e a força do Samba de Véio da Ilha do Massangano


                                                                                                          

                                                                            “O Samba é Fogo”:
                                       O povo e a força do Samba de Véio da Ilha do Massangano
                                                                                                     Márcia Nóbrega
                                                                     (Rio: Papeis Selvagens; SESC, 2017, página 80)
Que livro é esse?

 Livro que não arde, mas cuja leitura pode incendiar, como o samba, com seu povo e sua força...

“O que importa é que a brincadeira é a arte de proporcionar encontros, seja ele entre pessoas entre si, coisas ou espíritos. Através dele passam intensidades – seja a força ou seja o fogo – que comporão agenciamentos que, longe de levar à produção de um sujeito unificado, compõe sujeitos múltiplos.”  (página 80)

Só mesmo uma observadora de olhar sensível e apurado para narrar  possibilidades de significados e nos oferecer uma travessia e um porto para ancoragem de entendimento, se isso for desejo.

Não há dúvidas, Márcia Nóbrega, neste livro, que já foi dissertação de mestrado, defendida em 2010 no Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense, nos revela como o fogo e as águas circulam na Ilha do Massangano.  E, por isso, este livro é fundamental para entendermos o samba de veio e o jogo de relações que o identificam. Sempre vi, neste trabalho de Márcia, uma fundamentação consistente e original para nos mostrar como aquele povo da ilha é e está em seu viver e sentir, tendo como mote o samba ali acontecendo.

Que fogo é esse que dá voz e força a um povo cercado de água por todos os lados?

                                                                               (Foto de Lizandra Martins)

As lições que o livro nos passa mostram que, mesmo em terra firme, podemos ainda aprender com esse modo de viver e sentir, de relações entre o mundo natural e o sobrenatural, de antinomias e de constantes reinvenções onde o princípio básico é mostrar a vida (e a morte) em encontros e intensidades.

Para isso servem as festas, outras tantas que na ilha há, servem também orações e penitências, servem suas práticas em procedimentos e processos, serve o samba.

Um samba que carrega hoje uma característica: “samba de veio”, quando saiu da ilha e se tornou espetáculo em palcos da cidade, pois na Ilha ele é apenas samba, sem figurinos e chapéus de palha. É dos “janeiros”, de “reis”, pedindo licença para entrar. E, em sua intensidade, esse fogo que nele habita e que nele se faz necessário, desde afinar o couro dos tamboretes, esquentar o corpo na cachaça até incendiar emoções.

Canções, vozes, batidas, palmas, umbigadas, balanço, ritmo, muito além do entretenimento, parte intrínseca da vida, do cotidiano e de um modo de ser neste mundo, microcosmo numa ilha, de gente, de parentes que se fazem povo em suas variadas designações. Nomes e desígnios, destinos que se cruzam e se fundem...

Uma ilha de nome Massangano, de raiz africana, mistura-se no samba com os caboclos, vibram canções vindas do litoral e de outros portos, neste vaivém das águas e dos séculos... Márcia cria adjetivos, dá gênero ao nome, desaguando tudo numa  “existência massangana”. E é aí que seu trabalho de observadora e estudiosa se justifica.

Não dá para sintetizar em apresentações ou artigos o que seja esta existência, talvez pontuar detalhes e características no geral. A palavra tradição praticamente não existe no trabalho de Márcia, pois é no presente dinâmico de cada rodada de samba, sua motivação e encadeamento que o samba de veio da Ilha do Massangano se faz e se refaz no fogo simbólico que “esquenta” a própria vida. 

Sem estereótipos ou exotismo, Márcia capta e analisa sabiamente esta realidade, a do cotidiano, do dia-a-dia em sua luta pela sobrevivência, marcada por uma alegria de ser, de saber como ela nos diz, “de nunca estar sozinho”, existindo pelas forças atávicas em sintonia, seja no terreiro, seja na festa...

Quem precisa ler o livro de Márcia? Quem quer ler o livro de Márcia?

Então é esta uma apresentação, um lançamento, um convite à leitura, ao conhecimento do que vale a pena, com momentos de intensa linguagem poética, nos transes de observação do que é a vida em sua dinâmica. Não só do samba de veio ou do povo da ilha, mas poder também extrapolar para outros olhares, metodologias e informações.  

Márcia Nóbrega soube vivenciar os mistérios desta ilha e escrever para que nós outros saibamos que esse fogo é também a força de um povo... sabemos dele? Distanciados pelas águas e o circuito urbano não podemos fingir que não sabemos o que o povo da ilha pensa, sonha, dança, vive... Um “povo” que se estende para outros ilhados ao nosso redor.

                                                      
Flagrante no lançamento do livro em 23/4/17, na Ilha do Massangano. Dona Amélia, mestre do samba numa ponta e, na outra, Márcia Nóbrega. (Foto de Tatiana Devos Gentile)

Parabéns querida Márcia, torci muito pela edição deste livro, assim como outros amigos seus.
Que venham outras complementações, já que, bem sabemos, tudo está em processo, e um olhar dinâmico é fundamental... e você o tem. Assim como tem o dom de escrever bem.
Carinho,
Elisabet G. Moreira

Abril de 2017