Das muitas coragens neste blog, assumindo uma tradução literária... A tensão crescente neste texto, sua ironia, o revelar da hipocrisia burguesa, tudo o que torna tão admirável Tchekhov em seus contos! Sempre uma leitura preciosa...
Traduzido por Elisabet G. Oliveira *
A CORISTA – Anton Tchekhov
Certa vez, quando ela ainda era mais jovem, mais
bonita e cantava melhor, estava em sua casa de campo Nicolai Petróvitch
Kolpakóv. O calor e a falta de ar eram insuportáveis. Kolpakóv acabara de
jantar, tomara uma garrafa de vinho do Porto bastante ordinário e se sentia sem
ânimo e indisposto. Ambos, enfastiados, esperavam que passasse o calor, para
passear.
Inesperadamente, alguém tocou na porta de entrada.
Kolpakóv, que estava sem a sobrecasaca, olhou interrogador para Pacha.
- Na certa é o carteiro, ou pode ser uma amiga, disse
a cantora.
Kolpakóv não se acanharia de uma amiga ou do
carteiro, mas, por via das dúvidas, apanhou sua roupa e passou para o cômodo
vizinho. Pacha correu imediatamente a abrir a porta. Diante dela não se
encontrava nem o carteiro, nem uma amiga, mas uma jovem desconhecida, uma
bonita mulher.
A desconhecida estava pálida e respirava com
dificuldade, como se tivesse subido uma alta escada.
- O que a senhora deseja? – perguntou Pacha.
A mulher não respondeu logo. Deu um passo à frente,
examinou a sala devagar e sentou-se, como se não pudesse ficar de pé, de tão
cansada ou indisposta. Em seguida, moveu os lábios durante muito tempo, mas não
conseguia pronunciar nada.
- Meu marido está aqui? – perguntou ela afinal, e
ergueu para Pacha seus grandes olhos chorosos.
- Que marido? – sussurrou Pacha, e, de repente, se
assustou de tal maneira que suas mãos e pés esfriaram. – Qual marido? – repetiu
ela.
- Meu marido... Nicolai Petróvitch Kolpakóv.
- Não... não, eu... eu não conheço nenhum marido.
Ficaram um minuto em silêncio. A desconhecida, por
várias vezes, levou o lenço aos lábios pálidos e, para vencer o tremor íntimo,
continha a respiração. Pacha estava parada, diante dela, imóvel, e a
contemplava com perplexidade e receio.
- Então, você me diz que ele não está aqui? Perguntou
a dama, já com a voz firme e um sorriso estranho.
- Eu... eu não sei de quem a senhora pergunta.
- Você é má, vil, infame... – sussurrou a
desconhecida com ódio e repugnância. – Sim, sim... você é má. Estou muito, mas
muito contente porque finalmente posso dizer-lhe isto!
Pacha sentiu que ela causava a esta dama de vestido
negro, olhos zangados, brancos e finos dedos, a impressão de algo asqueroso e
indecente, e se sentiu envergonhada de suas faces cheias e vermelhas e de sua
franja na testa. Parecia-lhe que se fosse magra, menos empoada e sem franjas,
não seria tão terrível nem vergonhoso ficar diante desta dama desconhecida e
misteriosa.
- Onde está meu marido? – continuou a senhora. –
Aliás, esteja ele aqui ou não, para mim tanto faz, mas devo lhe dizer que
descobriram um desfalque e Nicolai Petróvitch está sendo procurado... Querem
prendê-lo. Veja só o que você fez!
A dama levantou-se e, muito perturbada, passeou pela
sala. Pacha olhava para ela e, de medo, não entendia nada.
- Hoje mesmo vão encontrá-lo e prendê-lo, - disse a
dama, e soluçou; e, neste som, ouviam-se ofensa e despeito. – Eu sei quem é
culpado disto. Malvada, infame! Escute mulher ruim!... Eu sou impotente, você é
mais forte do que eu, mas Deus tudo vê! Ele a castigará por cada uma das minhas
lágrimas, por cada noite de insônia! Chegará o dia em que você vai se lembrar
de mim!
A dama passeava pela sala estalando os dedos,
enquanto Pacha ainda olhava para ela perplexa, sem entender e esperando algo
terrível.
- Mas, eu não sei de nada! – falou, e de repente
começou a chorar.
- Você mente! – gritou a dama olhando para ela com
rancor. – Eu sei de tudo! Há muito tempo já a conheço! Sei que no último mês
ele veio a sua casa todos os dias!
- Sim. E daí? À minha casa vêm muitas visitas, mas
nunca obriguei ninguém a vir.
- Eu lhe digo, descobriu-se um desfalque! Ele
esbanjou dinheiro alheio! Por uma... como você, por sua causa ele se decidiu
por um crime... Escute, disse a dama decidida. – Você vive para quê? Você vive
para fazer mal, mas não se pode pensar que não lhe tenha sobrado sequer um
pouco de sentimento humano! Ele tem esposa, filhos... Se o condenam e o
deportam, então eu e as crianças morremos de fome... Compreenda isto! No
entanto, há uma possibilidade de salvar a ele e a nós da miséria e da desonra.
Se eu, hoje, devolver os 900 rublos, o deixarão tranquilo. Somente 900 rublos!
- Como, 900 rublos? – perguntou Pacha em voz baixa.
Eu... eu não sei... Eu não peguei...
- Eu não lhe peço os 900 rublos... você não tem
dinheiro, e eu não preciso de seu dinheiro. Não é isto que peço... Os homens
geralmente costumam presentear com jóias mulheres como você. Devolva-me, pois,
somente as jóias com que meu marido a presenteou.
- Mas ele não me deu nenhuma jóia! – gritou Pacha.
Finalmente começava a entender.
- Onde está então o dinheiro? Ele esbanjou o dinheiro
que era dele, o meu e o dos outros... Eu lhe peço! Estava indignada e lhe disse
muitas coisas desagradáveis, mas lhe peço desculpas. Você deve me odiar, eu
sei, mas se for capaz de sentir compaixão, rogo-lhe, devolva-me as jóias!
- Eu as daria com prazer, - disse Pacha e encolheu os
ombros. – Mas, juro que ele não me deu nada. Acredite. Aliás, é verdade, - e a
cantora perturbou-se – ele me deu duas jóias. Pois não, posso devolvê-las se
quiser...
Pacha abriu uma das gavetas do toucador e tirou dali
um bracelete de ouro barato e um delgado anelzinho de rubi.
- Pois não! – disse ela.
A mulher ruborizou-se, e seu rosto tremeu.
Ofendera-se.
- O que você me dá? – disse ela. – Não peço esmola,
mas aquilo que não lhe pertence... o que você recebeu de meu marido... desse
homem fraco e infeliz... Na quinta-feira, quando eu a vi com meu marido no
porto, vi que você usava broches e braceletes caros. Por que então me
engana?... Pela última vez, eu lhe peço: vai me dar as jóias ou não?
- Como a senhora é estranha... – disse Pacha. Ela já
começava a se ofender. – Asseguro-lhe que, além deste bracelete e anelzinho,
nada mais recebi de seu marido. Ele me trazia somente docinhos de marzipã.
- Docinhos de marzipã... – sorriu com ironia a
desconhecida. – Em casa, as crianças não têm o que comer, mas, aqui, docinhos
de marzipã. Decididamente, você se nega a devolver as jóias?
Pacha não respondeu. A dama sentou-se, pensava em
alguma coisa.
- O que fazer agora? – ela deixou escapar. Se eu não conseguir os 900 rublos, ele estará
perdido e eu com as crianças também. Mato-a ou ajoelho-me diante dela?
Levou o lenço ao rosto e rompeu em soluços.
- Eu lhe peço! – falou. – Você arruinou e perdeu meu
marido, salve-o... Você não tem pena dele, mas, e as crianças... as crianças...
Por acaso as crianças têm culpa?
Pacha imaginou as crianças pequenas, paradas na rua,
chorando de fome, e também rompeu em soluços.
- O que posso fazer? – disse ela. – A senhora diz que
eu arruinei Nicolai Petróvitch, mas eu lhe asseguro, não tenho nada dele... Em
nosso coro, todas nós vivemos com dificuldades, a pão e água.
- Eu peço as jóias! Me dê as jóias! Choro... me
humilho... Se desejar, me ajoelho a seus pés. Por favor!
Pacha soltou um gritinho de susto e agitou as mãos.
Sentia que essa dama, pálida e bela, se ajoelharia com certeza diante dela,
justamente por orgulho.
- Bem, eu lhe devolvo as jóias! – disse Pacha. – Pois
não. No entanto, não foi de Nicolai Petróvitch que as recebi... Foi de
outros...
Pacha abriu a gaveta superior da cômoda, tirou dali
um brochinho de brilhantes, um colar de coral, alguns anéis e um bracelete e
entregou tudo à dama.
- Fique com elas se quiser, somente não recebi nada
de seu marido. Tome, fique rica! – disse Pacha, ofendida com a ameaça daquela
senhora de se ajoelhar na frente dela. – Se a senhora é sua esposa legítima, então,
que o segurasse junto a si. Eu não o chamei à minha casa, ele veio sozinho...
A dama, em meio às lágrimas, examinou as jóias e
disse:
- Isso não é tudo... Estas jóias custam menos de 500
rublos.
Pacha, com um gesto brusco, atirou fora da cômoda um relógio
de ouro, uma cigarreira, abotoaduras, dizendo:
- E não me ficou mais nada... Reviste, se quiser.
A intrusa suspirou, tremeram-lhe as mãos quando
embrulhou as jóias no lenço e saiu.
Abriu-se a porta do quarto vizinho e Kolpakóv entrou.
Estava pálido e sacudia nervosamente a cabeça, como se, naquele instante,
houvesse engolido algo muito amargo. Em seus olhos brilhavam lágrimas.
- Que jóias você me trouxe? – atacou-o Pacha. –
Quando, permita-me perguntar-lhe?
- Jóias... Jóias... Isto não tem importância! – disse
Kolpakóv e sacudiu a cabeça. – Deus meu! Ela chorou aqui, humilhou-se...
- Eu estou perguntando: que jóias você me trouxe? –
gritou Pacha.
- Deus meu, ela tão orgulhosa, tão pura... quis até
ajoelhar-se em frente... em frente de você. E eu a obriguei a fazer isto!...
Agarrou a cabeça e gemeu:
- Não, eu nunca me perdoarei por isto! Não me
perdoarei! Afaste-se de mim... – gritou ele com repugnância, afastando Pacha de
si com as mãos trêmulas. – Ela quis ficar de joelhos e... na frente de quem?
Diante de você! Deus meu!
Vestiu-se rapidamente e saiu.
Pacha deitou-se e começou a chorar alto. Já sentia
pena e mágoa de suas jóias que, sem pensar, entregara. Lembrou-se como, certa
vez, três anos antes, sem saber por que, um comerciante lhe batera, e chorou
ainda mais alto.
* Tradução feita para avaliação
na disciplina Russo IV no curso de Letras da USP – Universidade de São Paulo –
em 1968. Elisabet G. Oliveira é o nome de solteira de Elisabet Gonçalves
Moreira. A tradução foi um cotejo entre uma tradução do espanhol e o original
russo. Boris Schnaiderman, professor, corrigiu e fez o seguinte comentário
“Tradução muito boa.” Digitada em outubro de 2014, pela autora da tradução,
agora Elisabet Gonçalves Moreira.
* Tradução feita para avaliação
na disciplina Russo IV no curso de Letras da USP – Universidade de São Paulo –
em 1968. Elisabet G. Oliveira é o nome de solteira de Elisabet Gonçalves
Moreira. A tradução foi um cotejo entre uma tradução do espanhol e o original
russo. Boris Schnaiderman, professor, corrigiu e fez o seguinte comentário
“Tradução muito boa.” Digitada em outubro de 2014, pela autora da tradução,
agora Elisabet Gonçalves Moreira.
Esta sua tradução está primorosa, Elisabet. Gostei muito de sua tradução. Anton Tchekhov, esse camarada que sempre buscava conhecer o contexto e ambientação em que os seus personagens iam transitar antes mesmo de escrever a primeira linha de seus textos. Li certa vez em um texto de Boris Schnaidermann, que, segundo este último, Tchekhov buscava conhecer melhor seus personagens, tanto a vida das Pessoas quanto a vida dos animais na natureza, porque ele tinha medo de cometer alguma tolice... Elisabet, quem conhece, reconhece!? Penso que não! Pois acho que há nela coisas ainda a ser desvendadas..."Percorrer olhares, visualizar controvérsias, pôr e contrapor, depositar num receptor imaginário (despojá-lo do ideal, já que eu o sou!)"...Pouca gente com esse tipo de percepção hoje em dia: pensar num receptor imaginário e ao mesmo tempo convidá-lo para o diálogo. Um ser de escrita o tempo todo se refazendo não com respostas, mas com muitas e muitas perguntas a partir de suas múltiplas subjetivações. Fique com meu abraço e toda a minha admiração. m.t.
ResponderExcluirObrigada Marcos, vc me reconhece... abraço!
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