Bet com t mudo

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BET COM T MUDO... Quem me conhece, reconhece? Já me imagino receptora deste blog. Quem é esta mulher? Quem é esta Eli, Elisa, Betina, Betuska, Betî, resumida numa Bet com t mudo? Esta afirmação diminuta diz (ou desdiz?) uma identidade... Assim, quem sou eu? Sou (sim) uma idealizadora das pessoas, das relações, das amizades, das produções minhas e dos outros. Consequência: um sofrimento que perdura... na mulher crítica que procura saber e tomar consciência finalmente de quem é e do que ainda pode fazer (renascer?!) nesta fase da vida, um envelhecimento em caráter de antecipação do inevitável. Daí a justificativa do blog. Percorrer olhares, visualizar controvérsias, pôr e contrapor, depositar num receptor imaginário (despojá-lo do ideal, já que eu o sou!) uma escrita em que o discurso poderá trazer uma Bet com t falante... LEITURAS, ESCRITAS, SIGNATURAS...

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

"Juro por Deus que é um final feliz" conto de Bruno Liberal e análise desta blogueira


Literatura Comentada – acho que muitos se lembram desta série de livros, sobre autores da literatura brasileira devidamente apresentada e... claro, comentada. Um grande apoio didático para professores, para alunos em trabalhos escolares, para conhecer a essência da produção do escritor ou poeta em destaque.

Pois bem, lembrei-me agora dela para falar de um autor contemporâneo, um jovem que saiu da referência de “escritor premiado” em concurso, para ser comentado e conhecido além do estado de Pernambuco, além de Petrolina, onde mora, trabalha e tem sua família.

Falo de Bruno Liberal, que conquistou o prêmio Literatura do estado, em 2014, com o livro de contos Olho Morto Amarelo (Recife, CEPE, 2014). Publicou em 2015, pela Confraria do Vento, O contrário de B.

Pois bem, vou inverter um pouco a apresentação que poderia ser esperada, primeiro a leitura do conto, depois da análise que fiz. Faço o contrário. Sabendo que uma está imbricada na outra. Faço isso para, quem sabe, despertar a atenção de seguidores e possíveis aprendizes de leitura, de literatura comentada. Intenções e expectativas neste blog...


ELES NÃO ENTENDEM O FINAL FELIZ...

Mas o autor, Bruno Liberal, afirma JURO POR DEUS QUE É UM FINAL FELIZ.

Este conto, assim classificado, joga com a leitura da fábula, interrompendo o leitor, ora suas conjeturas, ora a linearidade. Mas, ela, a linearidade existe sim, só que de trás pra frente, isto é, somente nos damos conta dela no final. Aí podemos entender se o desafio do título, neste juramento de expressões comuns e banais, faz sentido.

Dividido em cinco partes, cinco cenários, quadros de um curta-metragem em palavras, em literatura.  Esta relação com o cinema, com o visual, diálogos e fatos é bem forte. Não só a alternância de pontos de vista dá a dinâmica da narrativa.

Bruno L., jovem escritor, tem a marca de seu tempo, de um mundo onde a força da imagem é, muitas vezes, mais forte do que as palavras.

Tentando esquematizar estas partes, vejo que as cinco partes do texto se encaixam umas nas outras, como na boneca russa, a  matrioska,  constituída por uma série de bonecas, que são colocadas umas dentro das outras, da maior até a menor, a única que não é oca.

Haveria, neste caso, uma narrativa mais “encorpada” que abrigasse todas as outras? Ao ler o conto, vejo também que a trama (isto é, a maneira com que o autor conta a fábula, a história, no sentido como os formalistas russos trataram a questão), nos dá conta de que o autor, ao trabalhar dessa maneira seu material, dá-lhe também sua forma estética.

1ª. Parte: Ana, personagem principal deste segmento, é mandada embora de seu trabalho. Há algo “nebuloso” no motivo da demissão, algo talvez terrível, referência a um irmão que motivou sua desgraça. Narrador onisciente, em terceira pessoa, que sabe tudo sobre Ana, inclusive seus sentimentos.

2ª. Parte: Entre parênteses, o autor cita o título da narrativa. Há um eu que narra, primeira pessoa do discurso, mas que se refere a “eles”, os outros numa entrevista para a televisão.  O motivo é dado na interrogação imbecil, início da entrevista: “Como você está se sentindo com a morte de sua filha, uma morte tão trágica?” E a explosão de raiva do entrevistado, a admissão da culpa.

3ª. Parte: Um narrador onisciente, em terceira pessoa, fala de um homem de 30 anos, de uma vida pequeno burguesa, com filha e babá. Transa com a babá. Transa com a esposa. Há uma filhinha no berço.

4ª. Parte: Um narrador fala da esposa “que não podia ficar em casa cuidando da filha.” Cena de um café da manhã entre marido e mulher. O marido deve levar a bebê para um berçário.

5ª. Parte: Ponto de vista, por um narrador onisciente, da bebê. Dentro de um carro. “Dorme”.

Portanto, é aqui que tudo se liga. Entendemos que esse pai esqueceu a filha bebê no carro fechado, foi trabalhar e a criança morreu. Essa é a sua desgraça, que também atingiu Ana, a irmã do pai. Embora a segunda parte, a parte maior, pois, além da descrição da entrevista, é o próprio narrador que fala de seus sentimentos, de sua raiva, xinga e jura que vai ser  “um final feliz”.

O mote motivador da narrativa está justamente na pergunta, qual é o “final feliz” de uma história que se anuncia infeliz e trágica já na primeira parte, com a demissão de Ana, a hipocrisia do chefe  (“louca como o irmão”),  o fato de estar relacionada a um irmão que cometeu algo e se assumir “a irmã mais velha de um monstro.”  São índices que também mostram a perversidade nos pequenos atos do cotidiano, como a referência em deixar os sapatos sujos até a falta do que fazer ou de que atitude tomar.

Que retrato de família se esboça? Que retrato de relações de trabalho? Veja-se que Ana também se sente culpada “criou o irmão quando a mãe morreu.”. E o narrador é implacável no julgamento. “Ela também era culpada.” Tentativa de se eximir?

Não há castigo nem redenção nesta narrativa, apenas culpa. Ou melhor, a procura por culpados,  justificativas para a tragédia. Fará o leitor algum posicionamento?

Por isso se deseja ardentemente um final feliz, justifica-se  tudo neste mundo, na vida medíocre do dia-a-dia. E é isso que parece mover o personagem da segunda parte em sua entrevista quando, quase alucinado, desbanca uma mídia sensacionalista, que deseja conduzir tudo para o espetáculo. Aliás, interessante é a intromissão, em alguns momentos, de frases entre parênteses como (Mas eles não entendem) ou (O jornalista está preocupado com meus devaneios. Não consigo me concentrar nas perguntas). Mesmo sendo um narrador em primeira pessoa, há uma oscilação de tempos verbais, entre presente e passado nos “devaneios” do eu narrativo.

O uso do discurso indireto livre é uma das características, sem dúvidas, do estilo do autor. Esta mescla de pontos de vista, de fazer o próprio leitor se questionar também sobre quem fala, quem pensa, quem conduz a narrativa, confirma a modernidade desta escrita.  Não há ponto de vista que dê conta de “fechar” a narrativa. Ao contrário.

Portanto, se o leitor fica sabendo o motivo principal da história narrada, ela não para aí. Como um contraponto, a terceira parte é o julgamento, a condenação, acusando – sem ser explícito –  “Que pai esquece a filha de seis meses dentro do carro estacionado?” Um narrador que se questiona, mas um pai que também transa sem pudores com a babá e, em seguida, com a esposa. Não é preciso dizer que o leitor deduz ser a mesma pessoa. Apenas a ação, sem explicações, um narrador onisciente, nesta intimidade da volta do trabalho.

O narrador onisciente, na quarta parte, mostra, agora, uma “esposa que não estava lá”. Aparências importantes para esta pequena família. A pressa, os encontros, o trabalho, o que realmente interessa. E o leitor, em suspense, mesmo já sabendo do que aconteceu, vê, a posteriori o que foi desencadeado na manhã .

E,  no final, poucas linhas,  uma criança que dorme para sempre. Um final em aberto, perspectivas de interpretação que levam esta narrativa a demonstrar o estilo forte, implacável, de Bruno Liberal.

Ah, como registro, o autor escreveu esta narrativa, a partir de um fato real. BL também é pai de duas crianças.

                                                           (Petrolina, 19 de outubro de 2014)
 
 
Juro por Deus que é um final feliz
Bruno Liberal
Quando todo esse pesadelo acabar, invariavelmente o mundo irá sucumbir em cacos de esperança. As emoções destiladas da ignorância cega irão calar a boca. A massa que procurou um obstáculo sólido para bater (com força na cabeça até arrebentar) irá procurar um novo objeto de cortesia.
O que restar então não será muito depois de tudo isso. Apenas um vazio de pessoa carregando um corpo sem alma. De reboque.
                Ana também estava arrasada com a morte da sobrinha. Uma morte tragicamente encenada no mundo inteiro na televisão. Debates com personalidades o dia inteiro condenavam o pai: seu irmão. O mais novo. Seu irmãozinho engraçado da infância, crescendo desengonçado, jogando bola com os amigos, arriscando o primeiro som no violão, beijando na primeira vez uma amiga sua, trepando com ela mais tarde, bebendo e caindo, escondendo o irmão bêbado dos pais, virando cúmplice dele, criando um laço invisível entre os dois. E agora quem digitasse no Google o nome do seu irmão, apareceria uma sequência infinita de ódio e uma entrevista monstruosa.
                Ana estava triste. Profundamente abalada. Como se tudo isso fosse com ela e não com ele. Entrava na depressão do irmão com vontade. Queria poder esquecer tudo isso, não ouvir o silêncio dos amigos, não ser reconhecida na rua como a irmã de um monstro.
                Não conseguiu dormir nessa noite. Se arrumou mecanicamente para o trabalho. Esperava que pelo menos parte do seu mundo ainda estivesse em pé. Que pelo menos parte dele ainda existisse. E por ai continuaria vivendo. Bem nessa brecha, nessa fenda de vida.
                – Ana, na minha sala, por favor. – diz o chefe chamando-a pelo telefone assim que ela senta em sua cadeira.
                Ana levanta da mesa lentamente. Desliga a tela do computador para poupar energia, como viu alguma vez em alguma palestra do banco onde trabalhava. Percebe que os outros na sala acompanham seus movimentos com lupas. Ela não liga, está cansada. Não se maquiou hoje.
                Entra na sala (as persianas estão fechadas). Senta na cadeira em frente a mesa do chefe. Estático, ele forma um triângulo com as duas mãos apoiadas na mesa. Um silêncio é levantado pela respiração dos dois. O chefe era um sujeito alegre, brincalhão. Do tipo baixinho e gordinho que brinca primeiro para não ser o alvo da brincadeira. Do tipo que todos acham um chefe legal. Que sai com sua equipe para o happy hour e se diverte com eles e também fica bêbado com eles. Mas em momentos como este, seu semblante muda completamente e ele sabe virar o chefe de verdade.
                – Eu soube o que aconteceu com seu irmão. – diz o chefe com a face sisuda.
                – Todo mundo soube.
                (O chefe não gosta da resposta espontânea)
                – Sinto muito Ana.
                – Obrigada chefe.
                Nesse momento um impulso elétrico corre suas veias, percorre seu corpo feminino, sacode suas estruturas e termina em lágrimas que tenta esconder, limpando rapidamente com as mãos. Rindo sem graça.
Olha o tapete da sala, embaixo dos pés. Nota o sapato sujo. Devia ter passado um paninho, pensa.
                Continua o silêncio. Ana chorando, o chefe observando.
                – Ana, minha filha, você está um caco. Tire agora suas férias e tente se acalmar um pouco. Visite seu irmão.
                – Mas chefe, preciso bater minha meta do semestre.
                – Você precisa arrumar essa bagunça que seu irmão fez. Ficar do lado dele.
                – Mas chefe, não vou ter bônus se não bater a meta. Estou com as passagens compradas para a Argentina no final do ano.
                – Ana, sua família precisa de você agora. Esquece essa porra.
                – Mas chefe, a Argentina...
                – Vá para casa. Não se preocupe com trabalho. Resolvo tudo por aqui. Levantou de sua cadeira, deu a volta na mesa e estendeu os braços. Deu um abraço bem apertado e encerrou a conversa.
                Ana pensou: Vai à merda então chefe do caralho. E você também irmãozinho do caralho que só faz merda. Deve ter feito isso para foder com a Argentina. Foder com minhas férias. Nunca teve responsabilidade mesmo. Vai acabar com minha vida. Ah, que merda.
Na frente do chefe concordou e disse que ia voltar com tudo, arrebentando nas metas depois dessas férias inusitadas.
O chefe pensou: Um caralho que você volta. Tenho que ligar para o RH para ver como posso dar um pé na bunda dessa louca. Deve ser louca igual ao irmão.
Ele sorriu e disse que estaria esperando ela. Que contasse com ele para tudo.
                Do lado de fora do banco, parada, observava as pessoas que passavam e nunca mais veria. Tentava decidir para onde iria naquela hora da manhã. Não sabia o que fazer com o tempo livre. Não havia se organizado para isso. Quando iniciou seu dia, achava que conseguiria se concentrar nas metas do banco, que sairia para visitar alguns clientes à tarde e que voltaria a noite para seu apartamento em Piedade. Tomaria um longo banho, se masturbaria na água quente, poria um vestido decotado e tomaria um chope em algum bar. Sozinha, como estava acostumada.
                E agora, o que vou fazer? Perguntava-se.
                Não queria voltar para casa, era cedo demais. Cedo demais para começar suas férias ditadas. Cedo demais para começar a pensar em tudo isso que aconteceu. O ideal mesmo era encarar o trabalho como um bicho faminto caçando a presa na savana. Esquecer o mundo e se concentrar apenas naquele animal. Concentrar todos os seus esforços nisso e capturar a presa. E dessa forma, o tempo correria sem freios e as amigas esqueceriam tudo, comentariam a novela, a maquiagem, as trepadas, o tamanho do pau do cara novo. E esqueceriam que ela era a irmã mais velha de um monstro. Um assassino. Uma cúmplice camuflada pela distância. Mas também responsável por tudo isso. Certamente com sua própria parcela de culpa. Ela criou o irmão quando a mãe morreu. Ela era sua referência de delicadeza e sensibilidade. De mulher. Ela também era culpada.
 
* * *
 
(Juro por Deus que é um final feliz.)
                Eles estão do lado de fora se ajeitando para entrar no meu apartamento. Ouço esse barulho depois que a campainha toca.
Abro a porta.
Meu sorriso é receptivo, mas as pessoas lá fora estão sérias, frias. Apenas o câmera gordo esboça uma alegria. Deve ser uma boa pessoa.
                Não consigo devolver a hostilidade que percebo nessa atmosfera e reservo ainda uma pequena esperança de sentir a compaixão dos outros.
                Eles entram e fazem uma bagunça desmedida. Passam fios para todo lado. Devem estar usando quase todas as tomadas da casa. Um cara entra no meu quarto e liga um fio. Deve ter visto minhas roupas todas no chão. Não consigo lidar com as roupas. É uma eterna preocupação minha. Vários spots de luz. Uma jovem que evita me olhar arruma a sala do apartamento para as filmagens, arruma o sofá, as almofadas, coloca sob a mesinha alguns objetos e fica feliz com o resultado.
Estou na cozinha fazendo um café, sozinho. Apareço na sala e ofereço. Ninguém aceita. A mocinha recusa olhando-me pela primeira vez. Fico puto porque fiz demais. Jogo o excesso na pia. Uma pilha de pratos sujos fica preta pelo café. As formigas nos pratos boiam sorrateiramente e parecem balançar as perninhas para tentar uma salvação. Imagino eu no lugar delas. Não conseguiria. Sofro de uma preguiça extrema.
Esse cara, o produtor, me ligou no final de semana querendo marcar uma entrevista para um jornal famoso. Jornal de televisão. Ainda estou um pouco assustado com tudo que aconteceu. Tento adiar a entrevista, desconverso, digo que estou abalado. Mas esses caras não desistem. Ele diz que vou ganhar dinheiro com isso, que vai rolar um “cachezinho”. Acho muito escroto da parte dele dizer que vai rolar uma grana. Não estou em condições de negar dinheiro. Perdi o emprego depois que tudo aconteceu e agora não sei o que fazer da vida. Digo que é possível, que aceito. Ele vai logo entrando aqui na minha casa com todo esse pessoal sem expressão. Sem vida, sem alma. O escroto sou eu.     
─ O senhor fica aqui na poltrona. Isso, virado um pouco pra lá por causa da luz. Isso, muito bem. ─ Diz o diretor do negócio todo. Sinto-me um idiota com esse cara segurando meus ombros e ditando minha postura.
Uma senhora muito magra passa um pó na minha cara. Diz que isso é assim mesmo, que todo mundo faz. Perco a paciência e digo que estou bem.
                ─ Certo, perfeito. Carlão, cadê a luz? Isso, muito bom.
                O diretor comanda os elementos da minha casa. Parece o dono de tudo isso. Sinto pela primeira vez a invasão de uma nave estranha nesse meu mundo desconfortável. Percebo os olhares de toda a equipe esmagando minha existência.
                O diretor pergunta se não quero fazer a barba. Que assim vou ficar com cara de mau. Respondo que não.
O entrevistador ainda não chegou. Ouvi o câmera dizer que está subindo.
                Ele chega. Calça jeans, uma camisa amarela por dentro muito bem passada com um blazer cinza escuro. Muito elegante. É um jornalista conhecido.
Estou até simpático, mas ele está sério demais, como toda a equipe. Sinto esse peso, essa sensação de fumaça no ar, que alguma coisa muito pesada está prestes a acontecer. Um movimento definitivo. Desses que encerram a história.
                Olho para o câmera mais uma vez. Ele também está me olhando. Dessa vez com um sorriso sincero. Faz sinal de positivo. Retribuo balançando a cabeça. Fico um pouco mais tranquilo com isso.
                Todas as luzes se acendem. Parece que vai começar.
                (Tudo fica mais claro para mim. É o momento. A oportunidade para explicar o absurdo que aconteceu, a única oportunidade. Depois disso o que eu fizer não vai significar mais nada. Minha existência será definida. Sempre serei lembrado por esse momento. Preciso ter um bom desempenho, mostrar meu lado, meu ponto de vista).
                O jornalista aperta minha mão em cumprimento e explica a dinâmica da coisa.
                ─ Perguntas diretas e respostas sinceras. ─ diz.
                ─ Sim, sim...
                Uma luz vermelha na câmera acende. Fico um tempo parado olhando a luzinha. Um vagalume vermelho nesse mar de fogo. As luzes esquentam o ambiente. Estou no centro do sol. Devo estar suado. Lembro do livro do Saramago que o mundo fica cego e todos os problemas da humanidade tornam-se irrelevantes, os humanos cegos contra os cachorros que veem. Queria ficar cego agora. A mesma cegueira branca de Saramago. Todos deveriam ficar cegos agora e tudo estaria resolvido.
                Ele pergunta: Como você está se sentindo com a morte da sua filha, uma morte tão trágica?
                Respondo depois de uma pausa: Penso que tudo isso é um final feliz.
                Eles não entendem.
                Tento explicar tudo. Explicar que a vida é inexplicável. Que coisas estranhas acontecem. Que gritos de ódio perseguem a sujeira. Que, apesar do meu desespero e sofrimento, o mundo será melhor amanhã. Que um mau exemplo deve também ser encarado como positivo para que haja harmonia no mundo, para que exista um equilíbrio energético profundamente humano. Que sejamos razoáveis com minha desgraça, que outros pais não cometam os mesmos erros que cometi. E que no final de tudo, lá na última ponta da corda existe um final feliz para o mundo.
                (Mas eles não entendem.)
                Esse meu passado não pertence mais a mim. Foi embora junto com tudo que foi embora naquele dia. Uma avalanche de cadáveres rolando morro abaixo em minha direção, esmagando todas as vidas que tocam. Deixando-me apenas com uma sombra. Uma sombra daquela luz que tocava em mim. A luz de uma criancinha que não teve tempo sequer de ser criança. A luz que corria nas minhas veias.
                Uma criancinha com seus pezinhos e bracinhos de criancinha e todo aquele cheiro de bebê por trás de tudo que toca. Por trás da vida interrompida. Sabe, isso vai me perseguir por toda a vida. Isso fica assim na retina, tatuado.
                Percebo que eles não estão acreditando na história que conto. Que me julgam com seus olhos de igreja. Um louco. Um bruxo, um escárnio. Perco-me em pensamentos, em lembranças. Tento retornar.
                ─ Estou tão magro, você não acha? Estou muito magro mesmo. Acho que perdi uns cinco quilos. Não tenho comido direito. São esses remédios.
                Silêncio absoluto. O diretor coloca a mão na testa, passa por trás da cabeça e puxa os cabelos. A mocinha ri baixinho não se aguentando. A entrevista continua.
                (O jornalista está preocupado com meus devaneios. Não consigo me concentrar nas perguntas)
                Olho para o lado e vejo uma foto: eu, minha esposa na maca do hospital com ela, nossa filhinha, no colo, ainda com aquela cor esverdeada. Olhos apertados para o desconhecido.
Penso que chorar seria prudente. É uma foto do nascimento da nossa filhinha.
                Ele pergunta: Qual a mensagem que você gostaria de dizer ao Brasil nesse seu momento de dor?
                Perco a paciência com esse jornalista. Deve estar me caçoando. Todo mundo aqui nessa porra está tirando onda da minha dor, do meu sofrimento. Como é ignóbil esse depoimento. Como é estúpido tudo isso. Não sei por que estou aqui na minha casa aceitando toda essa porra. Não aguento essas perguntas sensacionalistas.
                Hã, anota aí. Digo ao jornalista famoso. Vão para a puta que pariu. Todo mundo. Inclusive você. Gravou isso gordo do caralho? EU SOU A ESCÓRIA. ASSUMO ISSO PORRA.
                As luzes são desligadas.
                Não compreendo muito bem o alvoroço que tudo isso causou. Eu sei que errei, um erro muito grave. Mas não assumi tudo? Não assumi toda a responsabilidade e consequência dos fatos? O que querem mais de mim? Um vídeo com um pai desmaiando ao vivo na entrevista? Um grito de lamento colossal para arrepiar suas vidazinhas de telespectadores? Uma bala na cabeça durante a entrevista e meu cérebro salpicado na cara do apresentador?
                Não tenho essa característica.
Essa de fazer cena. Penso de forma muito racional (mas não fui muito racional na entrevista). Estava ali para relatar o meu ponto de vista. Cheguei inclusive a fazer um PowerPoint sobre o que falaria e como falaria. Mas esqueci completamente de me emocionar.
                No entanto, se você for pensar bem, o fato em si é tão banal que alguma linha de pensamento jurídico me absolveria de imediato. Quantas vezes não esquecemos coisas? Quantas vezes alguns pais não esqueceram que estavam com seus filhos no carro e nada aconteceu?
Mas o que eu fiz mesmo? Um esquecimento bobo. E esse mesmo esquecimento bobo transformou uma vida em passado e minha vida em limbo.
                Ela estava lá, dormindo seu soninho de bebê. Não fez barulho. Não movimentou o ar em mim, não me tocou naquele momento. Não por ela, mas pela barreira que construí em torno de mim com esse meu trabalho. Essa é a barreira que nós, homens, construímos todos os dias em torno desse nosso mundo: o trabalho. E ninguém pode chegar perto. Assim não lembrei que minha primeira responsabilidade nesse dia era levá-la ao berçário antes de ir trabalhar.
                Alguém me ligou do trabalho falando de uma reunião e pronto, não fiz o que tinha que fazer.
                Abro a porta do escritório e vivo meu dia de trabalho. Meu Deus, como tudo isso foi estúpido, vil.
                Esqueci. Só isso.
                Sou um monstro?
                Devo ser.
Sou.
                Que pai esquece a filha de seis meses dentro do carro estacionado?
                Mas ela também devia ter me ligado. A mãe. Devia ter perguntado se estava tudo bem, se deixei a criança no berçário e tudo. Ela devia ter sentido alguma coisa, ter notado o desespero da filha. Devia ter uma premonição. Devia ter me lembrado.
                Fico eu aqui assumindo a responsabilidade de tudo.
Assumo a monstruosidade da morte absurda e ela fica posando de mãe perfeita. Chorando, desmaiando, surtando, gritando, xingando.
                Não quer nem me ver.
                Não lembra que sou seu homem e que estou assumindo a monstruosidade dela também. A parte que lhe cabe.
                Ela também não devia ter ido trabalhar naquele dia. Ela era a mãe. Ela era um pedaço de carne da filha.
                Que desgraça, que desgraça meu Deus.
                Não me ouça, sou o único culpado. Ela é uma santa. A mãe é uma santa.
                Ela fez o papel dela.
Eu que sou o monstro.
 
* * *
 
Ele pensava que a vida não poderia mudar muito mais. Que as coisas, como ele gostava de falar, permaneceriam na sua normalidade. Pensava que tudo estava tão irremediavelmente certo, que sua própria história representava (representaria) tudo que imaginou durante seus trinta anos.
                Planejou seus estudos, sua carreira, sua rotina, sua esposa, suas brigas. Mas, alguma coisa saiu errado e não planejou uma gravidez. 
                Culpa a esposa, óbvio.
Nesse dia ele decide chegar mais cedo em casa para não pegar o engarrafamento do final da tarde. Estava visitando um cliente perto do bairro e decidiu seguir direto. Mentiu para o chefe e disse que tomou um chá de cadeira.
A babá estava sentada no sofá assistindo tevê. Assustou-se com a chegada repentina do patrão. Ela estava acostumada a assistir televisão a tarde inteira enquanto a criança dormia no berço. Quando acordada, dava uma papinha industrializada de mamão ou ameixa e continuava assistindo televisão.
“Assistindo tevê Aninha?”, perguntou com sarcasmo.
“Desculpe doutor, foi só um pouquinho, a bebê acabou de dormir”.
Mentira.
“Certo, olhe, quando tiver uma folguinha prepare um sanduíche para mim, por favor.”
Correu para a cozinha.
“Agora mesmo, doutor”.
Chamava-o de doutor. Força de expressão.
Reparou nela. Devia ter dezesseis anos. Corpo avantajado para as gurias da sua idade. Seios firmes debaixo da blusa. Deve estar sem sutiã. Foi o que pensou notando que os bicos dos seios estavam salientes. Era uma morena robusta.
“Está nervosa Aninha?” diz brincando, percebendo que ela está se atrapalhando com o sanduíche.
Ela olhou de canto. Viu que ele a devorava com os olhos.
Aninha estava com um shortinho de quando tinha treze. Ela o vestia quando estava sozinha na casa deles para ficar mais à vontade. Perto de chegarem ela trocava de roupa. Mas nesse dia foi pega desprevenida. A patroa ia demorar a chegar, mas o patrão estava em casa secando suas pernas, soltando piadinhas para ver se colava.
“O senhor me deixa um pouco nervosa”. Sorriu sem olhar para ele.
Era o que ele queria.
“Por que, minha linda?”, diz mudando o tom da voz “você sempre é tímida assim?”. Ele levanta da cadeira, passa perto dela, sente o cheiro de suor. Pega um copo d’água.
Ele está muito excitado. Na volta roça o pau duro na sua bunda, fazendo uma leve pressão.
                Ela diz: “Não faz isso que não me aguento”.
                Ele retorna e aperta sua bunda. Ela suspende o quadril fazendo força. Ele agarra os seios dela e beija-lhe a boca com fome. Desce seu shortinho e enfia ali mesmo, na cozinha, sem preservativo.
                Ele toma um longo banho. A babá é muito gostosa, pensa enquanto se lava. Mandou-a ir para casa mais cedo. Sua esposa deve chegar a qualquer hora.
                Que porra de merda foi essa que eu fiz?
                Não se aguenta e dá uma gargalhada no chuveiro. Sua vida era assim mesmo, repleta de merda.
                Percebe que a esposa chegou em casa. Sua filha está dormindo.
                Passa xampu esfregando a cabeça com força. Tirando a infestação da alma.
                Ela entra no quarto, vê que ele está tomando banho, diz que chegou e vai até o quarto da criança para verificar se está tudo bem.
                A menina dorme.
                A menina acorda
                Ela pega a menina. Os dois estão agora na cozinha, ele de toalha e ela com a criança no colo.
                “Vamos sair hoje, amor?” diz ele.
                “Sair? Para onde? E a criança?”
                “Vamos dar uma volta, sem compromisso. Rodar um pouco. Liga para sua mãe e pede para ela ficar com a bebê”. Diz eufórico, tentando convencê-la a sair. “Não é esse o papel dos avós? Heim amor, não é?”
                Beija-lhe o pescoço.
                “Hum, boa ideia. Estou precisando mesmo dar uma saída, tomar alguma coisa. Estou estressada com o trabalho”. Ela diz.
(O estresse dela se resume na falta do que fazer durante o dia inteiro no escritório quase vazio. Apenas com a sócia conversando com ela. Ela quer passar uma impressão de que também se esforça. Que seu trabalho é muito árduo, que ela merece também aplausos por tudo isso que está fazendo pelo futuro da filha deles. É uma carreira promissora. Não agora, mas é. Precisa justificar a ausência como mãe pelo trabalho)
                “Também tive um dia muito foda”, diz ele “fiquei umas duas horas tomando um chá de cadeira de um cliente. Esse meu trabalho é foda. Cheguei aqui tarde e tive essa ideia de dar uma volta contigo. Diga se não sou foda mesmo?”
                “E a babá?”
                “Vi que a bebê estava dormindo e dispensei para ficar sozinho contigo”.
                Encosta na esposa por trás, na mesma posição que comeu a babá há pouco tempo. Ela manda ele parar e diz que está suja, que vai tomar um banho, que a bebê está vendo. “Quero ver esse fogo todo mais tarde. Vou ligar para mamãe”.
 
* * *
 
Ela não estava lá.
                O mundo escorreu, sublimou, mas sua esposa não estava lá.
                Esvaziou sua massa de mundo, sua massa de vida. Quanto pesa uma alma? Vinte e um gramas? Não. Pesa o mundo inteiro.
                Estava no trabalho, no seu lindo escritório de advocacia. Com sua sócia, associada, envolvida até a alma com este ar. Meninas novas, advogadas novas. Ambas com berço polpudo, que os pais sustentavam. Decoração de arquiteta. Abajur amarelo de dois mil reais. Mesa de cinco mil. Os pais racharam a conta. Pai dela, pai da associada. Amigas de infância.
                E brincavam de advogadas.
                Dois clientes bateram à porta naquele dia. Dois. E foram para sua amiga.
                Mas ela não podia ficar em casa cuidando da filha.
                Não podia. Era demais. Era jogar uma carreira pela janela, sua carreira de advogada, porque gostava de advogar. Era o que fazia. Foi para isso que estudou cinco anos na faculdade de direito particular. Não passou na pública. Concorrência desleal essa das cotas sociais. Tiraram sua vaga. Era contra as cotas.
                E nesse dia foi isso que aconteceu.
                Conversaram bastante. Riram bastante das histórias da faculdade. E atenderam duas pessoas.
                No entanto, cedo, disse ao marido que teria uma reunião com um cliente no primeiro horário da manhã e precisava estar preparada. Pediu para ele levar a filhinha ao berçário, que ela estaria muito ocupada revendo uns processos. Ele ainda a questionou, mas recebeu uma ligação do trabalho sobre a importância de sua reunião também logo cedo na sala do diretor de comunicação. Ele disse que sim para o telefone e disse que sim para sua esposa.
                Pensou em dizer que também tinha uma reunião muito importante e que era ele o responsável por botar comida dentro de casa, que ela nem estava pagando as contas do escritório casa-de-boneca que ela tinha e que por isso a reunião dele era muito mais importante. Mas apenas concordou com ela. Calou-se.
                Ela mentiu. Ele aceitou.
                E tomaram café da manhã juntos, às pressas.
                Um pão com queijo e café para ele.
                Uma torrada seca com iogurte light para ela.
                A criança não mama. Ela não quis dar peito. Disse que nem morta daria peito, que todas as amigas que tinham filho não deram peito. E assim se fez. Sem peito, sem afeto. Sem mãe.
                A babá na frente dos patrões falava com a delicadeza do mundo com a criança. Pelas costas gritava e dizia bobagens para fazê-la calar-se. Socava a mamadeira. Leite, mingau.
                Os pais na cozinha tomando seu café da manhã velozmente. A babá não veio nesse dia. Faltou sem motivo. O pai dá uma risadinha. Sabe por que ela faltou. É um segredo.
                A mãe tenta alimentar a filha, que não come.
                Família normal. Família feliz.
                Isso não entra no Facebook.
                Diálogo familiar no dia:
                “A bebê acordou tarde hoje” diz a mãe.
                “Que reunião é essa que você vai ter?”
                “Hã, é um cliente que está colocando um supermercado na justiça por vender uma comida estragada” diz ela mentindo sem pudores.
                Ele diz: “E você realmente precisa ir? Não pode adiar?”
                “É a segunda vez que esse cara marca comigo e já adiei na primeira. Ele é muito chato, não posso adiar mais uma vez.”
                “Certo” diz ele, “então eu deixo a bebê no berçário. Tenho que ir voando, também tenho uma reunião agora cedo. Tenho que fechar esse negócio.”
 
* * *
 
                A criança sabe que possui um pai e uma mãe. É um bebê esperto.
                Gosta muito dessa pessoa que traz a comida.
                Mas às vezes essa pessoa se transforma e grita com ela quando ela faz esses barulhos de choro.
                Ela é rude nessas horas.
É a babá.
                Ela (o bebê) não sabe como evitar esses choros. É da sua natureza.
                Mas é esperta. Fica ligada em tudo. Olhos nervosos.
                Sabe que tem uma mãe e um pai. Em algum lugar. Sabe que possui esses guardiões.
Ela não consegue vê-los. Mas sente isso.
Está muito calor dentro do carro.
Olha para os lados. Está com fome. Chora.
Tudo isso é muito desconfortável. Está muito suada.
Chora forte.
Eles não a chamam pelo nome. Ela sente.
Onde estarão?
Vê o vidro muito escuro.
Sente um cansaço profundo. Quer dormir. Dorme.
Para sempre.
 
 
 
 
 

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