Literatura
Comentada – acho
que muitos se lembram desta série de livros, sobre autores da literatura brasileira
devidamente apresentada e... claro, comentada. Um grande apoio didático para
professores, para alunos em trabalhos escolares, para conhecer a essência da
produção do escritor ou poeta em destaque.
Pois
bem, lembrei-me agora dela para falar de um autor contemporâneo, um jovem que
saiu da referência de “escritor premiado” em concurso, para ser comentado e
conhecido além do estado de Pernambuco, além de Petrolina, onde mora, trabalha
e tem sua família.
Falo
de Bruno Liberal, que conquistou o prêmio Literatura do estado, em 2014, com o
livro de contos Olho Morto Amarelo (Recife,
CEPE, 2014). Publicou em 2015, pela Confraria do Vento, O contrário de B.
Pois
bem, vou inverter um pouco a apresentação que poderia ser esperada, primeiro a
leitura do conto, depois da análise que fiz. Faço o contrário. Sabendo que uma está
imbricada na outra. Faço isso para, quem sabe, despertar a atenção de
seguidores e possíveis aprendizes de leitura, de literatura comentada. Intenções
e expectativas neste blog...
ELES
NÃO ENTENDEM O FINAL FELIZ...
Mas o autor, Bruno Liberal, afirma JURO POR DEUS QUE É UM FINAL FELIZ.
Este conto, assim classificado, joga
com a leitura da fábula, interrompendo o leitor, ora suas conjeturas, ora a
linearidade. Mas, ela, a linearidade existe sim, só que de trás pra frente,
isto é, somente nos damos conta dela no final. Aí podemos entender se o desafio
do título, neste juramento de expressões comuns e banais, faz sentido.
Dividido em cinco partes, cinco cenários,
quadros de um curta-metragem em palavras, em literatura. Esta relação com o cinema, com o visual,
diálogos e fatos é bem forte. Não só a alternância de pontos de vista dá a
dinâmica da narrativa.
Bruno L., jovem escritor, tem a marca
de seu tempo, de um mundo onde a força da imagem é, muitas vezes, mais forte do
que as palavras.
Tentando esquematizar estas partes,
vejo que as cinco partes do texto se encaixam umas nas outras, como na boneca
russa, a matrioska, constituída por uma série de bonecas, que são
colocadas umas dentro das outras, da maior até a menor, a única que não é oca.
Haveria, neste caso, uma narrativa mais
“encorpada” que abrigasse todas as outras? Ao ler o conto, vejo também que a
trama (isto é, a maneira com que o autor conta a fábula, a história, no sentido
como os formalistas russos trataram a questão), nos dá conta de que o autor, ao
trabalhar dessa maneira seu material, dá-lhe também sua forma estética.
1ª. Parte: Ana, personagem principal
deste segmento, é mandada embora de seu trabalho. Há algo “nebuloso” no motivo
da demissão, algo talvez terrível, referência a um irmão que motivou sua
desgraça. Narrador onisciente, em terceira pessoa, que sabe tudo sobre Ana,
inclusive seus sentimentos.
2ª. Parte: Entre parênteses, o autor
cita o título da narrativa. Há um eu que narra, primeira pessoa do discurso,
mas que se refere a “eles”, os outros numa entrevista para a televisão. O motivo é dado na interrogação imbecil,
início da entrevista: “Como você está se sentindo com a morte de sua filha, uma
morte tão trágica?” E a explosão de raiva do entrevistado, a admissão da culpa.
3ª. Parte: Um narrador onisciente, em
terceira pessoa, fala de um homem de 30 anos, de uma vida pequeno burguesa, com
filha e babá. Transa com a babá. Transa com a esposa. Há uma filhinha no berço.
4ª. Parte: Um narrador fala da esposa
“que não podia ficar em casa cuidando da filha.” Cena de um café da manhã entre
marido e mulher. O marido deve levar a bebê para um berçário.
5ª. Parte: Ponto de vista, por um
narrador onisciente, da bebê. Dentro de um carro. “Dorme”.
Portanto, é aqui que tudo se liga.
Entendemos que esse pai esqueceu a filha bebê no carro fechado, foi trabalhar e
a criança morreu. Essa é a sua desgraça, que também atingiu Ana, a irmã do pai.
Embora a segunda parte, a parte maior, pois, além da descrição da entrevista, é
o próprio narrador que fala de seus sentimentos, de sua raiva, xinga e jura que
vai ser “um final feliz”.
O mote motivador da narrativa está
justamente na pergunta, qual é o “final feliz” de uma história que se anuncia
infeliz e trágica já na primeira parte, com a demissão de Ana, a hipocrisia do
chefe (“louca como o irmão”), o fato de estar relacionada a um irmão que
cometeu algo e se assumir “a irmã mais velha de um monstro.” São índices que também mostram a perversidade
nos pequenos atos do cotidiano, como a referência em deixar os sapatos sujos
até a falta do que fazer ou de que atitude tomar.
Que retrato de família se esboça? Que
retrato de relações de trabalho? Veja-se que Ana também se sente culpada “criou
o irmão quando a mãe morreu.”. E o narrador é implacável no julgamento. “Ela
também era culpada.” Tentativa de se eximir?
Não há castigo nem redenção nesta
narrativa, apenas culpa. Ou melhor, a procura por culpados, justificativas para a tragédia. Fará o leitor
algum posicionamento?
Por isso se deseja ardentemente um final
feliz, justifica-se tudo neste mundo, na
vida medíocre do dia-a-dia. E é isso que parece mover o personagem da segunda
parte em sua entrevista quando, quase alucinado, desbanca uma mídia
sensacionalista, que deseja conduzir tudo para o espetáculo. Aliás, interessante
é a intromissão, em alguns momentos, de frases entre parênteses como (Mas eles
não entendem) ou (O jornalista está preocupado com meus devaneios. Não consigo
me concentrar nas perguntas). Mesmo sendo um narrador em primeira pessoa, há
uma oscilação de tempos verbais, entre presente e passado nos “devaneios” do eu
narrativo.
O uso do discurso indireto livre é uma
das características, sem dúvidas, do estilo do autor. Esta mescla de pontos de
vista, de fazer o próprio leitor se questionar também sobre quem fala, quem
pensa, quem conduz a narrativa, confirma a modernidade desta escrita. Não há ponto de vista que dê conta de
“fechar” a narrativa. Ao contrário.
Portanto, se o leitor fica sabendo o
motivo principal da história narrada, ela não para aí. Como um contraponto, a
terceira parte é o julgamento, a condenação, acusando – sem ser explícito – “Que pai esquece a filha de seis meses dentro
do carro estacionado?” Um narrador que se questiona, mas um pai que também
transa sem pudores com a babá e, em seguida, com a esposa. Não é preciso dizer
que o leitor deduz ser a mesma pessoa. Apenas a ação, sem explicações, um
narrador onisciente, nesta intimidade da volta do trabalho.
O narrador onisciente, na quarta parte,
mostra, agora, uma “esposa que não estava lá”. Aparências importantes para esta
pequena família. A pressa, os encontros, o trabalho, o que realmente interessa.
E o leitor, em suspense, mesmo já sabendo do que aconteceu, vê, a posteriori o que foi desencadeado na
manhã .
E, no final, poucas linhas, uma criança que dorme para sempre. Um final em
aberto, perspectivas de interpretação que levam esta narrativa a demonstrar o
estilo forte, implacável, de Bruno Liberal.
Ah, como registro, o autor escreveu
esta narrativa, a partir de um fato real. BL também é pai de duas crianças.
(Petrolina, 19 de outubro de 2014)
Juro por Deus que é um final feliz
Bruno Liberal
Quando
todo esse pesadelo acabar, invariavelmente o mundo irá sucumbir em cacos de
esperança. As emoções destiladas da ignorância cega irão calar a boca. A massa
que procurou um obstáculo sólido para bater (com força na cabeça até
arrebentar) irá procurar um novo objeto de cortesia.
O
que restar então não será muito depois de tudo isso. Apenas um vazio de pessoa
carregando um corpo sem alma. De reboque.
Ana também estava arrasada com a
morte da sobrinha. Uma morte tragicamente encenada no mundo inteiro na
televisão. Debates com personalidades o dia inteiro condenavam o pai: seu
irmão. O mais novo. Seu irmãozinho engraçado da infância, crescendo
desengonçado, jogando bola com os amigos, arriscando o primeiro som no violão,
beijando na primeira vez uma amiga sua, trepando com ela mais tarde, bebendo e
caindo, escondendo o irmão bêbado dos pais, virando cúmplice dele, criando um
laço invisível entre os dois. E agora quem digitasse no Google o nome do seu
irmão, apareceria uma sequência infinita de ódio e uma entrevista monstruosa.
Ana estava triste. Profundamente
abalada. Como se tudo isso fosse com ela e não com ele. Entrava na depressão do
irmão com vontade. Queria poder esquecer tudo isso, não ouvir o silêncio dos
amigos, não ser reconhecida na rua como a irmã de um monstro.
Não conseguiu dormir nessa
noite. Se arrumou mecanicamente para o trabalho. Esperava que pelo menos parte
do seu mundo ainda estivesse em pé. Que pelo menos parte dele ainda existisse.
E por ai continuaria vivendo. Bem nessa brecha, nessa fenda de vida.
– Ana, na minha sala, por favor.
– diz o chefe chamando-a pelo telefone assim que ela senta em sua cadeira.
Ana levanta da mesa lentamente.
Desliga a tela do computador para poupar energia, como viu alguma vez em alguma
palestra do banco onde trabalhava. Percebe que os outros na sala acompanham
seus movimentos com lupas. Ela não liga, está cansada. Não se maquiou hoje.
Entra na sala (as persianas
estão fechadas). Senta na cadeira em frente a mesa do chefe. Estático, ele
forma um triângulo com as duas mãos apoiadas na mesa. Um silêncio é levantado
pela respiração dos dois. O chefe era um sujeito alegre, brincalhão. Do tipo
baixinho e gordinho que brinca primeiro para não ser o alvo da brincadeira. Do
tipo que todos acham um chefe legal. Que sai com sua equipe para o happy hour e
se diverte com eles e também fica bêbado com eles. Mas em momentos como este,
seu semblante muda completamente e ele sabe virar o chefe de verdade.
– Eu soube o que aconteceu com
seu irmão. – diz o chefe com a face sisuda.
– Todo mundo soube.
(O chefe não gosta da resposta
espontânea)
– Sinto muito Ana.
– Obrigada chefe.
Nesse momento um impulso
elétrico corre suas veias, percorre seu corpo feminino, sacode suas estruturas
e termina em lágrimas que tenta esconder, limpando rapidamente com as mãos.
Rindo sem graça.
Olha
o tapete da sala, embaixo dos pés. Nota o sapato sujo. Devia ter passado um
paninho, pensa.
Continua o silêncio. Ana
chorando, o chefe observando.
– Ana, minha filha, você está um
caco. Tire agora suas férias e tente se acalmar um pouco. Visite seu irmão.
– Mas chefe, preciso bater minha
meta do semestre.
– Você precisa arrumar essa
bagunça que seu irmão fez. Ficar do lado dele.
– Mas chefe, não vou ter bônus
se não bater a meta. Estou com as passagens compradas para a Argentina no final
do ano.
– Ana, sua família precisa de
você agora. Esquece essa porra.
– Mas chefe, a Argentina...
– Vá para casa. Não se preocupe
com trabalho. Resolvo tudo por aqui. Levantou
de sua cadeira, deu a volta na mesa e estendeu os braços. Deu um abraço bem
apertado e encerrou a conversa.
Ana pensou: Vai à merda então
chefe do caralho. E você também irmãozinho do caralho que só faz merda. Deve
ter feito isso para foder com a Argentina. Foder com minhas férias. Nunca teve
responsabilidade mesmo. Vai acabar com minha vida. Ah, que merda.
Na
frente do chefe concordou e disse que ia voltar com tudo, arrebentando nas
metas depois dessas férias inusitadas.
O
chefe pensou: Um caralho que você volta. Tenho que ligar para o RH para ver
como posso dar um pé na bunda dessa louca. Deve ser louca igual ao irmão.
Ele
sorriu e disse que estaria esperando ela. Que contasse com ele para tudo.
Do lado de fora do banco,
parada, observava as pessoas que passavam e nunca mais veria. Tentava decidir
para onde iria naquela hora da manhã. Não sabia o que fazer com o tempo livre.
Não havia se organizado para isso. Quando iniciou seu dia, achava que
conseguiria se concentrar nas metas do banco, que sairia para visitar alguns
clientes à tarde e que voltaria a noite para seu apartamento em Piedade.
Tomaria um longo banho, se masturbaria na água quente, poria um vestido
decotado e tomaria um chope em algum bar. Sozinha, como estava acostumada.
E agora, o que vou fazer?
Perguntava-se.
Não queria voltar para casa, era
cedo demais. Cedo demais para começar suas férias ditadas. Cedo demais para
começar a pensar em tudo isso que aconteceu. O ideal mesmo era encarar o
trabalho como um bicho faminto caçando a presa na savana. Esquecer o mundo e se
concentrar apenas naquele animal. Concentrar todos os seus esforços nisso e
capturar a presa. E dessa forma, o tempo correria sem freios e as amigas
esqueceriam tudo, comentariam a novela, a maquiagem, as trepadas, o tamanho do
pau do cara novo. E esqueceriam que ela era a irmã mais velha de um monstro. Um
assassino. Uma cúmplice camuflada pela distância. Mas também responsável por
tudo isso. Certamente com sua própria parcela de culpa. Ela criou o irmão
quando a mãe morreu. Ela era sua referência de delicadeza e sensibilidade. De
mulher. Ela também era culpada.
* * *
(Juro
por Deus que é um final feliz.)
Eles estão do lado de fora se
ajeitando para entrar no meu apartamento. Ouço esse barulho depois que a
campainha toca.
Abro
a porta.
Meu
sorriso é receptivo, mas as pessoas lá fora estão sérias, frias. Apenas o
câmera gordo esboça uma alegria. Deve ser uma boa pessoa.
Não consigo devolver a
hostilidade que percebo nessa atmosfera e reservo ainda uma pequena esperança
de sentir a compaixão dos outros.
Eles entram e fazem uma bagunça
desmedida. Passam fios para todo lado. Devem estar usando quase todas as
tomadas da casa. Um cara entra no meu quarto e liga um fio. Deve ter visto
minhas roupas todas no chão. Não consigo lidar com as roupas. É uma eterna
preocupação minha. Vários spots de luz. Uma jovem que evita me olhar arruma a
sala do apartamento para as filmagens, arruma o sofá, as almofadas, coloca sob
a mesinha alguns objetos e fica feliz com o resultado.
Estou
na cozinha fazendo um café, sozinho. Apareço na sala e ofereço. Ninguém aceita.
A mocinha recusa olhando-me pela primeira vez. Fico puto porque fiz demais.
Jogo o excesso na pia. Uma pilha de pratos sujos fica preta pelo café. As formigas
nos pratos boiam sorrateiramente e parecem balançar as perninhas para tentar
uma salvação. Imagino eu no lugar delas. Não conseguiria. Sofro de uma preguiça
extrema.
Esse
cara, o produtor, me ligou no final de semana querendo marcar uma entrevista
para um jornal famoso. Jornal de televisão. Ainda estou um pouco assustado com
tudo que aconteceu. Tento adiar a entrevista, desconverso, digo que estou
abalado. Mas esses caras não desistem. Ele diz que vou ganhar dinheiro com
isso, que vai rolar um “cachezinho”. Acho muito escroto da parte dele dizer que
vai rolar uma grana. Não estou em condições de negar dinheiro. Perdi o emprego
depois que tudo aconteceu e agora não sei o que fazer da vida. Digo que é
possível, que aceito. Ele vai logo entrando aqui na minha casa com todo esse
pessoal sem expressão. Sem vida, sem alma. O escroto sou eu.
─
O senhor fica aqui na poltrona. Isso, virado um pouco pra lá por causa da luz.
Isso, muito bem. ─ Diz o diretor do negócio todo. Sinto-me um idiota com esse
cara segurando meus ombros e ditando minha postura.
Uma
senhora muito magra passa um pó na minha cara. Diz que isso é assim mesmo, que
todo mundo faz. Perco a paciência e digo que estou bem.
─ Certo, perfeito. Carlão, cadê
a luz? Isso, muito bom.
O diretor comanda os elementos
da minha casa. Parece o dono de tudo isso. Sinto pela primeira vez a invasão de
uma nave estranha nesse meu mundo desconfortável. Percebo os olhares de toda a
equipe esmagando minha existência.
O diretor pergunta se não quero
fazer a barba. Que assim vou ficar com cara de mau. Respondo que não.
O
entrevistador ainda não chegou. Ouvi o câmera dizer que está subindo.
Ele chega. Calça jeans, uma
camisa amarela por dentro muito bem passada com um blazer cinza escuro. Muito
elegante. É um jornalista conhecido.
Estou
até simpático, mas ele está sério demais, como toda a equipe. Sinto esse peso,
essa sensação de fumaça no ar, que alguma coisa muito pesada está prestes a
acontecer. Um movimento definitivo. Desses que encerram a história.
Olho para o câmera mais uma vez.
Ele também está me olhando. Dessa vez com um sorriso sincero. Faz sinal de
positivo. Retribuo balançando a cabeça. Fico um pouco mais tranquilo com isso.
Todas as luzes se acendem.
Parece que vai começar.
(Tudo fica mais claro para mim.
É o momento. A oportunidade para explicar o absurdo que aconteceu, a única
oportunidade. Depois disso o que eu fizer não vai significar mais nada. Minha
existência será definida. Sempre serei lembrado por esse momento. Preciso ter
um bom desempenho, mostrar meu lado, meu ponto de vista).
O jornalista aperta minha mão em
cumprimento e explica a dinâmica da coisa.
─ Perguntas diretas e respostas
sinceras. ─ diz.
─ Sim, sim...
Uma luz vermelha na câmera
acende. Fico um tempo parado olhando a luzinha. Um vagalume vermelho nesse mar
de fogo. As luzes esquentam o ambiente. Estou no centro do sol. Devo estar
suado. Lembro do livro do Saramago que o mundo fica cego e todos os problemas
da humanidade tornam-se irrelevantes, os humanos cegos contra os cachorros que
veem. Queria ficar cego agora. A mesma cegueira branca de Saramago. Todos
deveriam ficar cegos agora e tudo estaria resolvido.
Ele pergunta: Como você está se
sentindo com a morte da sua filha, uma morte tão trágica?
Respondo depois de uma pausa:
Penso que tudo isso é um final feliz.
Eles não entendem.
Tento explicar tudo. Explicar
que a vida é inexplicável. Que coisas estranhas acontecem. Que gritos de ódio
perseguem a sujeira. Que, apesar do meu desespero e sofrimento, o mundo será
melhor amanhã. Que um mau exemplo deve também ser encarado como positivo para
que haja harmonia no mundo, para que exista um equilíbrio energético
profundamente humano. Que sejamos razoáveis com minha desgraça, que outros pais
não cometam os mesmos erros que cometi. E que no final de tudo, lá na última
ponta da corda existe um final feliz para o mundo.
(Mas eles não entendem.)
Esse meu passado não pertence
mais a mim. Foi embora junto com tudo que foi embora naquele dia. Uma avalanche
de cadáveres rolando morro abaixo em minha direção, esmagando todas as vidas
que tocam. Deixando-me apenas com uma sombra. Uma sombra daquela luz que tocava
em mim. A luz de uma criancinha que não teve tempo sequer de ser criança. A luz
que corria nas minhas veias.
Uma criancinha com seus pezinhos
e bracinhos de criancinha e todo aquele cheiro de bebê por trás de tudo que
toca. Por trás da vida interrompida. Sabe, isso vai me perseguir por toda a
vida. Isso fica assim na retina, tatuado.
Percebo que eles não estão
acreditando na história que conto. Que me julgam com seus olhos de igreja. Um
louco. Um bruxo, um escárnio. Perco-me em pensamentos, em lembranças. Tento
retornar.
─ Estou tão magro, você não
acha? Estou muito magro mesmo. Acho que perdi uns cinco quilos. Não tenho
comido direito. São esses remédios.
Silêncio absoluto. O diretor coloca
a mão na testa, passa por trás da cabeça e puxa os cabelos. A mocinha ri
baixinho não se aguentando. A entrevista continua.
(O jornalista está preocupado
com meus devaneios. Não consigo me concentrar nas perguntas)
Olho para o lado e vejo uma foto:
eu, minha esposa na maca do hospital com ela, nossa filhinha, no colo, ainda
com aquela cor esverdeada. Olhos apertados para o desconhecido.
Penso
que chorar seria prudente. É uma foto do nascimento da nossa filhinha.
Ele pergunta: Qual a mensagem
que você gostaria de dizer ao Brasil nesse seu momento de dor?
Perco a paciência com esse
jornalista. Deve estar me caçoando. Todo mundo aqui nessa porra está tirando
onda da minha dor, do meu sofrimento. Como é ignóbil esse depoimento. Como é
estúpido tudo isso. Não sei por que estou aqui na minha casa aceitando toda
essa porra. Não aguento essas perguntas sensacionalistas.
Hã, anota aí. Digo ao jornalista
famoso. Vão para a puta que pariu. Todo mundo. Inclusive você. Gravou isso
gordo do caralho? EU SOU A ESCÓRIA. ASSUMO ISSO PORRA.
As luzes são desligadas.
Não compreendo muito bem o
alvoroço que tudo isso causou. Eu sei que errei, um erro muito grave. Mas não
assumi tudo? Não assumi toda a responsabilidade e consequência dos fatos? O que
querem mais de mim? Um vídeo com um pai desmaiando ao vivo na entrevista? Um
grito de lamento colossal para arrepiar suas vidazinhas de telespectadores? Uma
bala na cabeça durante a entrevista e meu cérebro salpicado na cara do
apresentador?
Não tenho essa característica.
Essa
de fazer cena. Penso de forma muito racional (mas não fui muito racional na
entrevista). Estava ali para relatar o meu ponto de vista. Cheguei inclusive a
fazer um PowerPoint sobre o que falaria e como falaria. Mas esqueci
completamente de me emocionar.
No entanto, se você for pensar
bem, o fato em si é tão banal que alguma linha de pensamento jurídico me
absolveria de imediato. Quantas vezes não esquecemos coisas? Quantas vezes
alguns pais não esqueceram que estavam com seus filhos no carro e nada aconteceu?
Mas
o que eu fiz mesmo? Um esquecimento bobo. E esse mesmo esquecimento bobo
transformou uma vida em passado e minha vida em limbo.
Ela estava lá, dormindo seu
soninho de bebê. Não fez barulho. Não movimentou o ar em mim, não me tocou
naquele momento. Não por ela, mas pela barreira que construí em torno de mim
com esse meu trabalho. Essa é a barreira que nós, homens, construímos todos os
dias em torno desse nosso mundo: o trabalho. E ninguém pode chegar perto. Assim
não lembrei que minha primeira responsabilidade nesse dia era levá-la ao
berçário antes de ir trabalhar.
Alguém me ligou do trabalho
falando de uma reunião e pronto, não fiz o que tinha que fazer.
Abro a porta do escritório e
vivo meu dia de trabalho. Meu Deus, como tudo isso foi estúpido, vil.
Esqueci. Só isso.
Sou um monstro?
Devo ser.
Sou.
Que pai esquece a filha de seis
meses dentro do carro estacionado?
Mas ela também devia ter me
ligado. A mãe. Devia ter perguntado se estava tudo bem, se deixei a criança no
berçário e tudo. Ela devia ter sentido alguma coisa, ter notado o desespero da
filha. Devia ter uma premonição. Devia ter me lembrado.
Fico eu aqui assumindo a
responsabilidade de tudo.
Assumo
a monstruosidade da morte absurda e ela fica posando de mãe perfeita. Chorando,
desmaiando, surtando, gritando, xingando.
Não quer nem me ver.
Não lembra que sou seu homem e
que estou assumindo a monstruosidade dela também. A parte que lhe cabe.
Ela também não devia ter ido
trabalhar naquele dia. Ela era a mãe. Ela era um pedaço de carne da filha.
Que desgraça, que desgraça meu
Deus.
Não me ouça, sou o único
culpado. Ela é uma santa. A mãe é uma santa.
Ela fez o papel dela.
Eu
que sou o monstro.
* * *
Ele
pensava que a vida não poderia mudar muito mais. Que as coisas, como ele
gostava de falar, permaneceriam na sua normalidade. Pensava que tudo estava tão
irremediavelmente certo, que sua própria história representava (representaria)
tudo que imaginou durante seus trinta anos.
Planejou seus estudos, sua
carreira, sua rotina, sua esposa, suas brigas. Mas, alguma coisa saiu errado e
não planejou uma gravidez.
Culpa a esposa, óbvio.
Nesse
dia ele decide chegar mais cedo em casa para não pegar o engarrafamento do
final da tarde. Estava visitando um cliente perto do bairro e decidiu seguir
direto. Mentiu para o chefe e disse que tomou um chá de cadeira.
A
babá estava sentada no sofá assistindo tevê. Assustou-se com a chegada
repentina do patrão. Ela estava acostumada a assistir televisão a tarde inteira
enquanto a criança dormia no berço. Quando acordada, dava uma papinha
industrializada de mamão ou ameixa e continuava assistindo televisão.
“Assistindo
tevê Aninha?”, perguntou com sarcasmo.
“Desculpe
doutor, foi só um pouquinho, a bebê acabou de dormir”.
Mentira.
“Certo,
olhe, quando tiver uma folguinha prepare um sanduíche para mim, por favor.”
Correu
para a cozinha.
“Agora
mesmo, doutor”.
Chamava-o
de doutor. Força de expressão.
Reparou
nela. Devia ter dezesseis anos. Corpo avantajado para as gurias da sua idade.
Seios firmes debaixo da blusa. Deve estar sem sutiã. Foi o que pensou notando
que os bicos dos seios estavam salientes. Era uma morena robusta.
“Está
nervosa Aninha?” diz brincando, percebendo que ela está se atrapalhando com o
sanduíche.
Ela
olhou de canto. Viu que ele a devorava com os olhos.
Aninha
estava com um shortinho de quando tinha treze. Ela o vestia quando estava
sozinha na casa deles para ficar mais à vontade. Perto de chegarem ela trocava
de roupa. Mas nesse dia foi pega desprevenida. A patroa ia demorar a chegar,
mas o patrão estava em casa secando suas pernas, soltando piadinhas para ver se
colava.
“O
senhor me deixa um pouco nervosa”. Sorriu sem olhar para ele.
Era
o que ele queria.
“Por
que, minha linda?”, diz mudando o tom da voz “você sempre é tímida assim?”. Ele
levanta da cadeira, passa perto dela, sente o cheiro de suor. Pega um copo
d’água.
Ele
está muito excitado. Na volta roça o pau duro na sua bunda, fazendo uma leve
pressão.
Ela diz: “Não faz isso que não
me aguento”.
Ele retorna e aperta sua bunda.
Ela suspende o quadril fazendo força. Ele agarra os seios dela e beija-lhe a
boca com fome. Desce seu shortinho e enfia ali mesmo, na cozinha, sem
preservativo.
Ele toma um longo banho. A babá
é muito gostosa, pensa enquanto se lava. Mandou-a ir para casa mais cedo. Sua
esposa deve chegar a qualquer hora.
Que
porra de merda foi essa que eu fiz?
Não se aguenta e dá uma
gargalhada no chuveiro. Sua vida era assim mesmo, repleta de merda.
Percebe que a esposa chegou em
casa. Sua filha está dormindo.
Passa xampu esfregando a cabeça
com força. Tirando a infestação da alma.
Ela entra no quarto, vê que ele
está tomando banho, diz que chegou e vai até o quarto da criança para verificar
se está tudo bem.
A menina dorme.
A menina acorda
Ela pega a menina. Os dois estão
agora na cozinha, ele de toalha e ela com a criança no colo.
“Vamos sair hoje, amor?” diz
ele.
“Sair? Para onde? E a criança?”
“Vamos dar uma volta, sem
compromisso. Rodar um pouco. Liga para sua mãe e pede para ela ficar com a
bebê”. Diz eufórico, tentando convencê-la a sair. “Não é esse o papel dos avós?
Heim amor, não é?”
Beija-lhe o pescoço.
“Hum, boa ideia. Estou
precisando mesmo dar uma saída, tomar alguma coisa. Estou estressada com o
trabalho”. Ela diz.
(O
estresse dela se resume na falta do que fazer durante o dia inteiro no
escritório quase vazio. Apenas com a sócia conversando com ela. Ela quer passar
uma impressão de que também se esforça. Que seu trabalho é muito árduo, que ela
merece também aplausos por tudo isso que está fazendo pelo futuro da filha
deles. É uma carreira promissora. Não agora, mas é. Precisa justificar a
ausência como mãe pelo trabalho)
“Também tive um dia muito foda”,
diz ele “fiquei umas duas horas tomando um chá de cadeira de um cliente. Esse
meu trabalho é foda. Cheguei aqui tarde e tive essa ideia de dar uma volta
contigo. Diga se não sou foda mesmo?”
“E a babá?”
“Vi que a bebê estava dormindo e
dispensei para ficar sozinho contigo”.
Encosta na esposa por trás, na mesma
posição que comeu a babá há pouco tempo. Ela manda ele parar e diz que está
suja, que vai tomar um banho, que a bebê está vendo. “Quero ver esse fogo todo
mais tarde. Vou ligar para mamãe”.
* * *
Ela
não estava lá.
O mundo escorreu, sublimou, mas
sua esposa não estava lá.
Esvaziou sua massa de mundo, sua
massa de vida. Quanto pesa uma alma? Vinte e um gramas? Não. Pesa o mundo
inteiro.
Estava no trabalho, no seu lindo
escritório de advocacia. Com sua sócia, associada, envolvida até a alma com
este ar. Meninas novas, advogadas novas. Ambas com berço polpudo, que os pais
sustentavam. Decoração de arquiteta. Abajur amarelo de dois mil reais. Mesa de
cinco mil. Os pais racharam a conta. Pai dela, pai da associada. Amigas de
infância.
E brincavam de advogadas.
Dois clientes bateram à porta
naquele dia. Dois. E foram para sua amiga.
Mas ela não podia ficar em casa
cuidando da filha.
Não podia. Era demais. Era jogar
uma carreira pela janela, sua carreira de advogada, porque gostava de advogar.
Era o que fazia. Foi para isso que estudou cinco anos na faculdade de direito
particular. Não passou na pública. Concorrência desleal essa das cotas sociais.
Tiraram sua vaga. Era contra as cotas.
E nesse dia foi isso que
aconteceu.
Conversaram bastante. Riram
bastante das histórias da faculdade. E atenderam duas pessoas.
No entanto, cedo, disse ao
marido que teria uma reunião com um cliente no primeiro horário da manhã e
precisava estar preparada. Pediu para ele levar a filhinha ao berçário, que ela
estaria muito ocupada revendo uns processos. Ele ainda a questionou, mas
recebeu uma ligação do trabalho sobre a importância de sua reunião também logo
cedo na sala do diretor de comunicação. Ele disse que sim para o telefone e
disse que sim para sua esposa.
Pensou em dizer que também tinha
uma reunião muito importante e que era ele o responsável por botar comida
dentro de casa, que ela nem estava pagando as contas do escritório
casa-de-boneca que ela tinha e que por isso a reunião dele era muito mais
importante. Mas apenas concordou com ela. Calou-se.
Ela mentiu. Ele aceitou.
E tomaram café da manhã juntos,
às pressas.
Um pão com queijo e café para
ele.
Uma torrada seca com iogurte light
para ela.
A criança não mama. Ela não quis
dar peito. Disse que nem morta daria peito, que todas as amigas que tinham
filho não deram peito. E assim se fez. Sem peito, sem afeto. Sem mãe.
A babá na frente dos patrões
falava com a delicadeza do mundo com a criança. Pelas costas gritava e dizia
bobagens para fazê-la calar-se. Socava a mamadeira. Leite, mingau.
Os pais na cozinha tomando seu
café da manhã velozmente. A babá não veio nesse dia. Faltou sem motivo. O pai
dá uma risadinha. Sabe por que ela faltou. É um segredo.
A mãe tenta alimentar a filha,
que não come.
Família normal. Família feliz.
Isso não entra no Facebook.
Diálogo familiar no dia:
“A bebê acordou tarde hoje” diz
a mãe.
“Que reunião é essa que você vai
ter?”
“Hã, é um cliente que está
colocando um supermercado na justiça por vender uma comida estragada” diz ela
mentindo sem pudores.
Ele diz: “E você realmente
precisa ir? Não pode adiar?”
“É a segunda vez que esse cara
marca comigo e já adiei na primeira. Ele é muito chato, não posso adiar mais
uma vez.”
“Certo” diz ele, “então eu deixo
a bebê no berçário. Tenho que ir voando, também tenho uma reunião agora cedo.
Tenho que fechar esse negócio.”
* * *
A criança sabe que possui um pai
e uma mãe. É um bebê esperto.
Gosta muito dessa pessoa que
traz a comida.
Mas às vezes essa pessoa se
transforma e grita com ela quando ela faz esses barulhos de choro.
Ela é rude nessas horas.
É
a babá.
Ela (o bebê) não sabe como
evitar esses choros. É da sua natureza.
Mas é esperta. Fica ligada em
tudo. Olhos nervosos.
Sabe que tem uma mãe e um pai.
Em algum lugar. Sabe que possui esses guardiões.
Ela
não consegue vê-los. Mas sente isso.
Está
muito calor dentro do carro.
Olha
para os lados. Está com fome. Chora.
Tudo
isso é muito desconfortável. Está muito suada.
Chora
forte.
Eles
não a chamam pelo nome. Ela sente.
Onde
estarão?
Vê
o vidro muito escuro.
Sente
um cansaço profundo. Quer dormir. Dorme.
Para
sempre.
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