Exercitando a relação foto, texto, memória e ficção...
HISSOPE
Elisabet Gonçalves Moreira
“Que anjos são esses, que andam rodeando?
De noite e de dia, rezando Ave-
Maria?”
(Cantiga de roda
tradicional)
O menino pequeno, sujo, cabelo
raspado, descalço, puxa a jovem mãe cigana pela saia enquanto ela segura um
bebê e ataca os passantes, pedindo esmolas, ajuda, mostrando as crianças.
Variantes desta cena estão por aí.
No prolongamento do restaurante típico, na calçada, sentada
com algumas amigas em torno de uma mesa, bebendo cerveja e comendo petiscos,
observo a mulher e suas crias. Vejo quando ela aborda um turista alemão e tira
sua carteira com uma habilidade que me fez sorrir.
Minha amiga Isa também viu. E ficou indignada. Avisou o
garçom que avisou a polícia. Ladra, ladra, espertinha, safada.
Vieram dois policiais, em ronda pela orla. A ciganinha teve
que devolver a carteira. Não a levaram nem bateram nela, o ambiente não era
para isso. Mas a cigana sentou-se na calçada do outro lado e o seu rosto
mostrava tudo que há de raiva, do mundo, das pessoas. O menino, quieto, parecia
ainda mais sujo, jogado neste mundo perdido nos adjetivos.
Já levei gatinho de rua para casa, afaguei, dei leite e
procurei alguém para cuidar dele. Faria isso com o menino? Refutei logo o
pensamento. Um gole de cerveja. Por que este menino e sua mãe tinham que
aparecer por ali? Comi uma batatinha.
Os dois então tentaram se aproximar, a mãe pedindo comida e
dinheiro. Dei as batatinhas. Minhas amigas não gostaram disso. O que adianta?
Pedi outro prato de fritas para o garçom.
..................................................................................................................
No sábado seguinte, lá estava a cigana com o menino em seu
trabalho de pedinte, sem dar sorte no próprio destino. Não haveria um anjo da
guarda para estes meninos?
Atravessei a praça e fui até a Igreja Matriz. Bobeira minha.
Não sabia eu que o mundo é mesmo assim? Uns têm chance e sorte, outros nada...
Sentada num dos bancos, vi quando o menino entrou. Perto da pia batismal, na
parte de trás da igreja, havia um pequeno vaso para água benta e um hissope de
prata. Ele pegou os objetos e saiu da igreja sem ninguém mais notar.
Levantei e saí também. Vi a mãe cigana pegando o objeto e
pondo numa sacola. Ela também me viu e fez um ar atrevido... Pedi de volta e
lhe dei uma nota de vinte reais. Tinha pressa, aceitou. Ordenei ao garoto
colocar o vaso e o hissope no lugar. Ele parecia em dúvida, olhando para mim e
para a mãe.
A cigana lhe disse alguma coisa e os dois saíram correndo. Na
rua movimentada, o menino foi atropelado. O desespero da mãe era terrível. Ela
me olhou e amaldiçoou a todos nós, os que a cercavam, os que não sabiam o que
fazer.
Eu, com o hissope na mão, aspergi água benta sobre o menino,
como se fora uma sacerdotisa idiota e ridícula. Talvez o anjo da guarda também
chore por estes meninos que nascem, vivem e morrem sem saber por quê...
(Petrolina,
18 de abril de 2015)
Nenhum comentário:
Postar um comentário