O poeta inventa a notícia que o
jornal omite. Faz vibrar o som que o sino omite. Coloca a natureza (!) no
devido posto.
·
Calçar
a sua sombra. Laçar o mar. Mungir a lua. Trair aquela raposa. Trocar de camélia.
·
Quis
filmar o milagre, mas os protagonistas cansados se haviam evanuído. Evanuir-se
também quer dizer: desnudar-se que nem Eva.
·
A
recusa da cruz implica o medo de afrontar a condição humana dura real
fisiológica com seu limite no espaço-tempo e sua perspectiva incerta de
ressurreição.
·
Marat
entra na banheira, entra na História.
·
Não
é possível encarar o sol: mas sim encarar a metáfora do sol.
·
13
de maio de 1966. Consegui viver até hoje porque desde cedo adestrei-me a me
perturbar, a me criar tormentos, a tentar me destruir: confiando sempre nas
minhas grandes reservas de eletricidade. Renasço cada dia dos meus próprios
“crimes”. Viver é refazer o erro.
·
Edgar Poe: proprietário, produtor
e “metteur-en-scène” da poderosa palavra NEVERMORE.
·
Einstein diz que na passagem do
infinito ao finito há um desvio para o vermelho.
·
Nossos
remorsos circunscrevem-se a uma zona tão reduzida! Zona que, se fosse ampliada,
a gente explodiria antes do tempo previsto.
·
As
histórias contadas pelas pretas foram para mim os primeiros quadros, as
primeiras tapeçarias.
·
A
morte é um dever, um dever civil.
·
Nice.
Num restaurante. Um casal francês troca raros monossílabos durante vinte
minutos. Chega a “bouillabaisse”, os dois atiram-se ao prato e iniciam um
diálogo animadíssimo.
·
Para
conhecer os motivos da morte/para ser bem recebido nos seus átrios e participar
das grandes festas da sua fome/para distinguir os esqueletos cultos dos ditos
analfabetos, os mansos dos cruéis, os raffinés dos grosseiros/para desvelar os
textos do “Livro dos Mortos”, guardados por Osíris nas pirâmides nucleares/para
tocar a flauta mágica/para concluir a palavra/para decifrar o rito do
touro/para romper com Rimbaud o pão de pedra/para ler novos cânticos de
Dante/para defrontar Helena de Tróia/para desmontar o tempo/para completar
minha cota terrestre
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existo.
·
Terrível
coisa, o desentendimento entre homens que falam a mesma língua. Mas existe “a
mesma língua”? Ou o mesmo latim, usado exatamente para que ninguém se entenda?
Os tratados de moral, de educação, de política, são escritos quase sempre por
pessoas que não querem ser “dupes” de outras, e se baseiam em relatos de
pessoas que não querem ser “dupes” de outras.
·
Se
uma angústia lavasse a outra, levasse a outra!
·
Ninguém
quer o falso. Ninguém quer o verdadeiro.
·
Se
Deus fosse à escola aprenderia somente matemática.
·
As
profundidades as sinuosidades as imensidades de algumas das palavras mínimas da
língua: fé - lá - eu.
·
Os
deuses são analfabetos, não por preguiça, comodidade ou ignorância: por
desprezo.
·
Quando
no Marrocos, assistindo ao desfile de mulheres veladas, eu pensava: se são
belas, vejo-me roubado; se feias poderia beneficiá-las com um golpe gratuito de
olhar.
Quando Murilo Mendes ganhou o
Prêmio Internacional de Poesia, em 1972, o Etna-Taormina, Carlos Drummond de
Andrade escreveu uma crônica no Jornal do
Brasil, do Rio de Janeiro, reclamando contra o nosso esquecimento por essa
vitória de um poeta brasileiro em terras estrangeiras. E reivindicava para
Murilo Mendes o lugar de destaque que ele merece em nossa literatura e em nossa
lembrança.
Em
1980, muito se lembrou e foram comemorados os 50 anos de lançamento do livro Alguma Poesia de Drummond, mas também é
de 1930 o Poesias de Murilo Mendes,
primeiro livro do poeta que, juntamente com Carlos Drummond de Andrade,
consolidou o Modernismo no Brasil em sua feição poética mais típica e
duradoura.
Realmente,
há várias maneiras de ser ou de se sentir exilado. E Murilo, que há tantos anos
ensinava literatura brasileira em Roma, até sua morte em 1975, sentia
pessoalmente esse descaso.
Tenho
uma dissertação de Mestrado sobre Murilo Mendes. Sei que nada sei de definitivo
sobre ele, o antidefinitivo por excelência. Mas tenho algumas coordenadas sobre
sua obra que tracei/levantei. Para chegar até elas, eu vou tomar de um texto
muriliano, trabalhar com ele e sentir o poeta Murilo e sua palavra tão
ardorosamente defendida.
Sei
que a própria seleção de um texto para análise já implica numa primeira crítica
deste texto. Mas, tenho outros motivos.
O
texto é do livro Conversa Portátil,
livro este publicado postumamente em 1994 na sua Poesia Completa e Prosa da Nova Aguilar. Como disse na nota de
rodapé, Texto sem Rumo foi retirado,
como está neste trabalho, da antologia em prosa Transístor, de 1980. Como era uma antologia, eu
já percebera que o texto não estaria completo, o que se confirmou na obra
completa, um texto bem maior do que o texto usado para este trabalho.
Texto sem Rumo é de 13 de maio de 1966,
prosa, um dos seus textos do fim, de sua última linguagem. A relação entre
prosa e poesia, os limites do texto moderno e o fato de ser um texto ainda
inédito motivaram minha análise.
Também
porque em Texto sem Rumo algumas das
coordenadas gerais da obra muriliana nele se mostram de alguma forma. Sei que
nenhuma análise “esgota o verdadeiro texto artístico” e seria temeridade eu
julgar que pudesse dele tudo extrair. Sei e postulo, no entanto, que só a
partir do próprio texto, de dentro para fora, é que minha análise terá crivos
de alguma veracidade. É, portanto, uma análise aberta, simples e objetiva, onde
procuraremos ver o texto muriliano em ação.
Sobre
o título: Murilo Mendes o coloca como um Texto
sem Rumo. A palavra texto é sintomática: aqui ele é tratado em sua acepção
moderna. Nada é definido ou definitivo, tudo se mescla na escritura moderna.
Sem rumo: nada de planos
preestabelecidos. Isto é, aparentemente, porque temos um texto bastante
elaborado na verdade. O sem rumo aqui parece se dirigir ao plano formal. É um
texto em movimento, oscilatório, que faz questão de não chegar a lugar algum.
Desnuda-se em ambiguidades.
Observem
que o poeta é aquele que inventa, são suas primeiras palavras. O problema do
real na arte, aspecto dos mais instigantes, é o primeiro a ser colocado. Mas
ele inventa o que o jornal, por exemplo, “omite”, isto é, em cima da realidade,
da omissão dessa realidade. Temos
a impressão de que Murilo brinca de “amarelinha”, passa do mais prosaico para o
lírico, desmascarando o processo poético, indo e vindo pelas fronteiras do real
e da escritura.
Eu
não vou tentar explicar o que não é explicável a respeito do texto. Seria
perífrase ou mesmo paráfrase. O que importa é como eu tomo conhecimento do
texto, das palavras do poeta e ali penetro. Assim, o texto no qual me deterei
mais de perto é uma equação matemático/poética.
Para conhecer os motivos da morte/para ser bem recebido nos seus átrios
e participar das grandes festas da sua fome/para distinguir os esqueletos
cultos dos ditos analfabetos, os mansos dos cruéis, os raffinés dos grosseiros/para
desvelar os textos do “Livro dos Mortos”, guardados por Osíris nas pirâmides
nucleares/para tocar a flauta mágica/para concluir a palavra/para decifrar o
rito do touro/para romper com Rimbaud o pão de pedra/para ler novos cânticos de
Dante/para defrontar Helena de Tróia/para desmontar o tempo/para completar
minha cota terrestre
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existo.
Tem-se
uma equação: morte .
vida
Nesta
equação, a vida está para a morte assim como a morte para a vida em inter-relação. Vamos
ver como isso funciona no texto.
Sei
que é morte porque o poeta estabelece: para o numerador da equação estão os motivos da morte e a única palavra do
denominador é existo, a antítese da
morte.
Observam-se
no numerador 13 verbos no infinitivo: conhecer, ser bem recebido, participar,
distinguir, desvelar, tocar, concluir, decifrar, romper, ler, defrontar,
desmontar, completar. Estes verbos, colocados como motivos da morte, são todos ações de vida, funcionando
semanticamente como um futuro para o denominador comum que é o presente do
indicativo, no 14o. verbo, existo.
Este é, pelo menos, o plano do real. Ou sua metáfora.
A
preposição “para” me indica, portanto, a finalidade desse denominador, dessa existência.
Existo para isso, isso e aquilo. Que são motivos de morte, o contrário de
existir, óbvio.
Então,
vamos ver de perto estes motivos da morte. O poeta deseja conhecê-los. Sua
abrangência visual, nestes motivos, começa a ser explicitada. Imagens antológicas
da morte, na seleção vocabular, na apresentação delas.
“Ser
bem recebido nos seus átrios.” A morte é solene, onde se recebe com classe. Há
“grandes festas”, não de regalos e, sim, da “fome”. Morte e destruição. O
visual da morte continua na imagem até grosseira dos “esqueletos”. A
preocupação do Murilo-homem se revela nesse além. Ele quer distinguir, mesmo
ali, os cultos dos ditos analfabetos, ironia do homem de espírito que sempre
foi.
Afinal,
quem é culto? Esses confrontos, esses esquemas antagônicos são bem murilianos.
São três os confrontos. Além desse, temos os mansos dos cruéis, os raffinés dos grosseiros. A ironia está presente
no homem cultor e culto. Nisso, Murilo Mendes chega a ter momentos
sofisticadíssimos, em suas amizades na Europa, suas citações, seus artigos.
Mais
sintomático é o “desvelar os textos do Livro dos Mortos.” O verbo também é
muito significativo. Desvelar é tirar o véu, decifrar, desmontar. O prefixo
des-, usado algumas vezes, indica uma ação contrária. A referência ao mito, o
mais conhecido dos mitos egípcios, a lenda de Osíris, deus dos mortos e
guardião do Livro, inclui o texto nessa categoria de historicidade do próprio
mito, de suas associações.
Frisou-se
no início da análise que havia 14 verbos no texto e, por coincidência ou não, a
lenda de Osíris diz que este teve seu cadáver partido em 14 pedaços, por inveja
de seu irmão Set, que os espalhou pelo reino. Sua irmã e esposa Ísis os
recolheu e isso simboliza a semeadura. A ressurreição do corpo de Osíris é símbolo
do brotamento.
O
“Livro”, onde o poeta pretende ler seus “textos”, está no miolo, em “pirâmides
nucleares”. E esse núcleo também parece ser simbólico. A morte começa a tomar
também outra configuração. São os textos, são as palavras que estão no outro lado
que interessam, na medida em que sua leitura revelaria o segredo.
“Tocar
a flauta mágica.” Novamente o som, o mito na ópera de Mozart, quem sabe, já que
Murilo Mendes era um apaixonado pela obra de Mozart. Outro motivo dado: “para
concluir a palavra”, a matéria da poesia. Retoma-se a esfera concreta da
metalinguagem, assunto deste “texto sem rumo”, de signos em metáforas e
intertextos.
Para
“decifrar o rito do touro”. Ritos de vida e de morte, na arena ou nos
labirintos do minotauro. Há sempre um mistério, um segredo, nesse “au-délas”...
decifraremos? A angústia se avoluma no inevitável.
Para
“romper com Rimbaud o pão de pedra”. No aspecto formal do discurso
evidenciam-se efeitos de sons bastante interessantes e que adquirem
significado. Os erres duros, as consoantes labiais p e b e a nasalização do rom, com,
Rim (pronúncia francesa), ão. É Rimbaud, poeta do simbolismo
francês, trágico, cuja manipulação verbal teve na sinestesia, na
correspondência de sons e cores uma das marcas principais de sua poesia, ao
lado da procura da morte. Num jogo intertextual, Murilo “lê” o outro no seu
próprio discurso. Mesmo que “rompendo” com ele na imagem dura do “pão de
pedra”, reúne-se no nível da estruturação formal.
Para
“ler novos cânticos de Dante”. A imagem continua, Dante pelo dantesco, pelos
textos do seu “Inferno”, assim como Rimbaud com “Une saison en enfer”. É Murilo
que, em associações quase surreais, quer conhecer mais sobre a morte, através
de outros cânticos, outras palavras.
Para
“defrontar Helena de Tróia”. Defrontar a própria morte, na associação da figura
fatídica da mais bela mulher grega que acabou por levar destruição a Tróia e a
morte a milhares de gregos. E, também, sempre o paradigma analógico: morte,
agora com seu contrário, a beleza.
Para
“desmontar o tempo”. Novamente um jogo de vogais e nasais, criando o discurso,
nos seus limites, a sua finalidade estética, ao se voltar para si mesmo. O
tempo, a própria eternidade. A desmontagem do tempo supõe o domínio da montagem
(pelo seu oposto). Assim, o poeta anseia por tudo saber e dominar, um poder de
quem não é mortal.
Para
“completar minha cota terrestre”, é o que lhe resta ainda desse tempo dividido.
Tem-se apenas uma cota, uma parte. O resto é a eternidade, o fim, o que se
aguarda quando completar o que lhe cabe.
O
poeta divide com um traço esse limite, as duas frações do humano:
morte
.
vida
O limite está no traço, no
significante visual.
Do
outro lado, no denominador desta razão, tem-se, no texto do poeta, uma única e
isolada palavra que se basta: “existo” e ponto final.
Tudo
adquire significado. Desde as barras (////) para separar simbolicamente o corpo
mutilado de Osíris até o traço e o ponto final.
Existo e nada mais precisa ser dito.
Aliás, tudo já foi dito. A escolha de existo
em lugar de vivo, por exemplo, é
também significativa para o discurso poético. Evidentemente existo carrega muito mais força, é um
vocábulo mais denso que outro sinônimo. Existo
indica também, já que está no denominador, no outro lado, o outro plano.
EXISTIR É CARREGAR, TAMBÉM NUMA FRAÇÃO, TODAS AS INCÓGNITAS DA MORTE, todos os
motivos de sua “não-existência.”
\
morte ::
não-existência
vida existência
(Portanto: morte está para vida assim
como não-existência está para existência.)
Multiplicando-se
os extremos, obtém-se:
morte x existência = vida x
não-existência.
A
ambiguidade na contradição destes antagonismos torna a realidade poética a
única tangível.
Corrobora
também para isso a universalidade e a atemporalidade desse dualismo, que
proporciona a esse texto em prosa de Murilo Mendes uma intensa carga semântica.
A
novidade da forma implica numa visão do Murilo contemporâneo procurando sempre
caminhos para sua expressão, não modismos, mas um espírito crítico altamente
criativo e atento às evoluções do mundo moderno ou mesmo pós-moderno.
É
de se observar também que a aparente contenção desse discurso, pelo ritmo
sincopado, um certo despojamento, é apenas aparência realmente. Há muito de
opulento aqui, de grandiloquente nas imagens, na retórica.
Afinal,
nos limites entre morte e existência, o poeta-signo pode ali passear
livremente, o enigma do homem é a sua própria essência.