Neste espaço de blog,
vejo também espaço para veicular minhas escrituras, tantas inéditas, neste tipo de texto onde me atrevo (ou danço!).
Dança e tradição:
poéticas de interface na contemporaneidade (*)
Dança e tradição – A interface (segundo Pierre Lévy ) é uma articulação
entre duas realidades diferentes
envolvendo conceitos como tradução, transformação, passagem, o que pode
ajudar para compreender melhor essa articulação.
E ir direto para o objeto que tomo como referência: a dança
contemporânea no espetáculo “Eu vim da
ilha”, pelo grupo de dança do SESC Petrolina, sob direção de Jailson Lima, e
sua interface na tradição do “samba de veio ou samba de reis” da Ilha do
Massangano, um olhar sobre esta variante
da cultura popular, realidades poéticas
em cada expressão.
E por que entender dança e tradição como poéticas? “A poesia
torna possível toda a cultura”, ressaltou Heidegger. Acho que aqui está o cerne da questão,
entendê-las como poéticas, como arte, onde a dominante é justamente esta
assertiva. Neste jogo entre a tradição e
a contemporaneidade, mais do que uma oposição, está a leitura significativa da
intertextualidade.
E fica desde já um questionamento: O que o espetáculo “Eu vim da ilha” de um
grupo de dança semiprofissional “leu” na diversão espontânea do samba de reis
da Ilha do Massangano? Houve trocas? Ou foi uma leitura de mão única?
Definir dança não é
fácil, mas sabemos que só dá para defini-la
se “considerarmos o contexto histórico e cultural em que ela esteja
inserida, revelar óticas particulares, descrever uma arte simbólica,
específica.” Portanto, há que se ter em mente a historicidade de determinada
dança – seu contexto - e seu corte contemporâneo, sincrônico.
Os estudos de Semiótica (ciência geral dos signos) me levam
à noção de texto, nas mais diferentes linguagens. Texto não deixa de ser um ato comunicacional,
um processo onde tenho Emissor (o pessoal da ilha na ilha ou a companhia do
Sesc Petrolina) e o Receptor (público)
mediados pela dança, através da linguagem dos corpos, da música, do improviso
muitas vezes, das palmas, do ritmo do
tamborete, do colorido, luz, todo um conjunto de signos que perfazem o ato.
Aliás, um ato ou texto dinâmico, já que
ele nunca se repete. Cada apresentação é
uma representação particular, singular. Seja na ilha ou nos palcos...
Em outro texto meu sobre o “Eu vim da Ilha”, registrei minha leitura daquele momento em que
fui público: No ritmo do tamborete...
Reitero algumas considerações.
Que instrumento musical é este que acompanha o samba de veio
da Ilha do Massangano em Petrolina? Uma banqueta rústica, assento em couro de
bode esquentado no fogo, oferecendo o ritmo para se cantar e dançar no reisado
e em dias de festa? E agitar os pés,
braços e corpos no frenesi do samba mais primitivo que se possa imaginar? Samba
regado a cachaça, o tamborete só existe como instrumento musical se percebermos
a pobreza – e a imensa alegria em seus folguedos –
deste povo que há mais de cem anos habita esta ilha do rio São Francisco, entre
Pernambuco e Bahia...
Agora, pergunto, que significado ele adquiriu para o
espetáculo de dança contemporânea “Eu vim da Ilha” com coreografia de Jailson
Lima, do SESC Petrolina?
Porque ele veio da ilha sim, mas na cidade se transformou,
no palco se refez...
E o tamborete se tornou o centro do espetáculo, a emanação
para o que se configurou, se firmou, se dançou...
O samba de veio, como referência artística, muito além do
folclórico, restritivo em seu conceito antigo, metamorfoseou-se em outra
roupagem, linguagem, ritmos e sons. E isso fez a diferença entre o que poderia
ser cópia, documentário ou registro para um ato criativo, singular. Acrescento:
um ato de recriação, de uma estética própria, de uma ressignificação do samba
da ilha. Neste sentido, o título do espetáculo é também palco para esta leitura
“Eu vim da Ilha” .
Nesta caminhada, sem dúvidas
houve muita observação, desde o samba lá na ilha, com as águas do velho
rio Chico em suas margens, até os espetáculos feitos em palcos na cidade,
outras margens e outras definições...
Em “Eu vim da Ilha”, a importância das falas de Dona Amélia, de
Conceição (sou feliz!), das letras das canções, faz um belo e significativo
contraponto neste respeito aos “veios” do samba. Assim como retirar desses recursos em off um diálogo com
o som das águas, agora em braços, pernas e corpos de jovens dançarinos,
conseguindo outras cores, outros sons, cantos e movimentos. E, ao mesmo tempo,
conseguir ser fiel em sua recriação e homenagem ao samba de veio, tão perto de
nós...
Assim, criou-se um espetáculo de dança contemporânea sem
recursos fáceis, deixando a dança livre de certas amarras que poderiam truncar
a proposta desse grupo, ao mesmo tempo regional e universal, que sai de
Petrolina e mostra outras caras deste sertão... águas e margens de uma cultura
viva que se apresenta, representa!
Pois bem, é aí que entramos com o significado de Poética. Há
a poética da dança tradicional, cultura
popular, dinâmica, que faz a diversão na ilha, sem tempo determinado, e cuja
origem está no aspecto religioso da festa de reis, mês de janeiro, ainda no
ciclo natalino dos folguedos populares .
O samba é dos velhos sim, Márcia Nóbrega observou bem, “ele é do domínio
da noite, do compartilhar de um mesmo “fogo” que só se passa entre uma mesma
gente que, por sua vez, é construída a partir de relações sociais já
estabelecidas. “
Há também outro aspecto
da encenação do samba, com horários para começar e terminar, com
figurino uniformizado para o grupo, uma representação, mais um espetáculo tido
como folclórico, mediado por outras pessoas para o contato, nesta sociedade do espetáculo, de consumo
massivo, uma outra coisa enfim, para só associar.
O que há em comum? Escrevi para a capa do CD, produzido por
Chico Egídio, este produtor cultural que acompanha e registra o samba da ilha
há mais de uma década.
“Há uma energia vibrante na polifonia rítmica do samba de veio.
O conjunto de vozes do coro, do “puxador” do samba em seus versos, da
percussão, palmas e instrumentos dialogam entre si, mostrando uma dinâmica
rítmica que registra (...) uma vertente da música brasileira em suas raízes
africanas, indígenas e portuguesas.”
“O samba da Ilha do Massangano é um mix de vários
sambas e batucadas... Muitos de seus versos e do ritmo estão espalhados em
outras manifestações como no samba de roda baiano, no reisado, em versinhos
antigos. Ao mesmo tempo, embora possa ser reconhecido, este samba de veio da
Ilha do Massangano tem uma identidade que não se confunde com nenhum outro. Há
características marcantes que evidenciam essa
condição, inclusive constatadas até pelo fato de, há pouco tempo, ser
parte de uma comunidade quase isolada, no meio do rio São Francisco. Hoje, ao
envolver praticamente toda a comunidade, não mais só o “veio”, mas até as
crianças em seu frenesi, esse samba consegue uma vivência única, além da
comparação. E que se perpetua no registro e na recepção de projetos como este.”
No caso, como frisei, era a produção dos CDs.
Nessa confluência de tantos olhares e possibilidades, há a
continuidade na perspectiva da diferença dos públicos receptores. Se na ilha o
samba é dos velhos, da noite, há a interação entre os moradores, os que dançam,
os que cantam, os que tocam, os que abrem ou não a porta de suas casas, todo o
conjunto da dança onde o importante é sempre a diversão, a festa. E que faz
também a alegria dos que, de fora, dançam com eles principalmente nas
apresentações na cidade. Os jovens também se divertem no ritmo do samba... A
recepção nunca é homogênea em qualquer circunstância. Mas no samba as classes sociais se integram como
público, algo democrático e interativo.
Já no espetáculo “Eu vim da Ilha”, há o espectador de
plateia, aquele que fica sentado quando a apresentação é no palco de um teatro
ou em pé quando a apresentação se dá em outros locais, abertos por exemplo. Em
“Eu vim da ilha” temos um trabalho profissional, de equipe. De coreografia, de
direção teatral, de uso de tecnologias como o som em off, do figurino, da
sequência, da umbigada, de um espetáculo
com horário programado e local específico.
Canclini destaca que “Analisar a arte já não é analisar apenas obras,
mas as condições textuais e extratextuais, estéticas e sociais, em que a
interação entre os membros do campo gera e renova o sentido.” (Culturas
Híbridas, p. 151)
Esta interface da contemporaneidade, através da
tradição, ratificou “uma visão de mundo levada aos palcos. É uma relação de respeito e criação
com a história da formação de cada lugar e do seu povo, na intenção de projetar
uma linguagem de dança onde o movimento corporal não seja estranho a esse
povo.” (da sempre citada Maria Paula Rêgo que, aliás, já deu, se não me engano,
oficinas aqui mesmo em Petrolina).
Acredito pois que Jailson, mais sua equipe, bem integrado nestas fontes, conseguiu
conceber o espetáculo “Eu vim da Ilha” como dança contemporânea (aqui entendida
em seu diferencial, do momento histórico em que atua) e que consegue um estrato
poético, uma qualidade artística que foi até premiada. Deu, assim, um sentido não só de representação social,
mas de pertencimento, de um substrato cultural significativo.
(*) Sempre inquirindo, pesquisando, aceitei participar de
uma mesa com especialistas no assunto: Daniela Amoroso, Eloisa Domenici e a
mediação de Daniela Santos no SESC Petrolina em abril de 2012. Escrevi este
texto que, evidentemente, não deu para apresentar por completo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário