Bet com t mudo

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BET COM T MUDO... Quem me conhece, reconhece? Já me imagino receptora deste blog. Quem é esta mulher? Quem é esta Eli, Elisa, Betina, Betuska, Betî, resumida numa Bet com t mudo? Esta afirmação diminuta diz (ou desdiz?) uma identidade... Assim, quem sou eu? Sou (sim) uma idealizadora das pessoas, das relações, das amizades, das produções minhas e dos outros. Consequência: um sofrimento que perdura... na mulher crítica que procura saber e tomar consciência finalmente de quem é e do que ainda pode fazer (renascer?!) nesta fase da vida, um envelhecimento em caráter de antecipação do inevitável. Daí a justificativa do blog. Percorrer olhares, visualizar controvérsias, pôr e contrapor, depositar num receptor imaginário (despojá-lo do ideal, já que eu o sou!) uma escrita em que o discurso poderá trazer uma Bet com t falante... LEITURAS, ESCRITAS, SIGNATURAS...

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Dança e tradição: poéticas de interface na contemporaneidade


Neste espaço de blog, vejo também espaço para veicular minhas escrituras, tantas inéditas,  neste tipo de texto onde me atrevo (ou danço!).

Dança e tradição: poéticas de interface na contemporaneidade (*)

Dança e tradição – A interface  (segundo Pierre Lévy ) é uma articulação entre duas realidades diferentes  envolvendo conceitos como tradução, transformação, passagem, o que pode ajudar para compreender melhor essa articulação.

E ir direto para o objeto que tomo como referência: a dança contemporânea  no espetáculo “Eu vim da ilha”, pelo grupo de dança do SESC Petrolina, sob direção de Jailson Lima, e sua interface na tradição do “samba de veio ou samba de reis” da Ilha do Massangano, um olhar sobre esta  variante da cultura popular,  realidades  poéticas em cada expressão.

E por que entender dança e tradição como poéticas? “A poesia torna possível toda a cultura”, ressaltou Heidegger.  Acho que aqui está o cerne da questão, entendê-las como poéticas, como arte, onde a dominante é justamente esta assertiva.  Neste jogo entre a tradição e a contemporaneidade, mais do que uma oposição, está a leitura significativa da intertextualidade.

E fica desde já um questionamento:  O que o espetáculo “Eu vim da ilha” de um grupo de dança semiprofissional “leu” na diversão espontânea do samba de reis da Ilha do Massangano? Houve trocas? Ou foi uma leitura de mão única?

 Definir dança não é fácil, mas sabemos que só dá para defini-la  se “considerarmos o contexto histórico e cultural em que ela esteja inserida, revelar óticas particulares, descrever uma arte simbólica, específica.” Portanto, há que se ter em mente a historicidade de determinada dança – seu contexto - e seu corte contemporâneo, sincrônico.

Os estudos de Semiótica (ciência geral dos signos) me levam à noção de texto, nas mais diferentes linguagens.  Texto não deixa de ser um ato comunicacional, um processo onde tenho Emissor (o pessoal da ilha na ilha ou a companhia do Sesc Petrolina)  e o Receptor (público) mediados pela dança, através da linguagem dos corpos, da música, do improviso muitas vezes,  das palmas, do ritmo do tamborete, do colorido, luz, todo um conjunto de signos que perfazem o ato. Aliás, um ato ou texto  dinâmico, já que ele nunca se repete.  Cada apresentação é uma representação particular, singular. Seja na ilha ou nos palcos...

Em outro texto meu sobre o “Eu vim da Ilha”,  registrei minha leitura daquele momento em que fui público: No ritmo do tamborete...  Reitero algumas considerações.

Que instrumento musical é este que acompanha o samba de veio da Ilha do Massangano em Petrolina? Uma banqueta rústica, assento em couro de bode esquentado no fogo, oferecendo o ritmo para se cantar e dançar no reisado e em dias de festa?  E agitar os pés, braços e corpos no frenesi do samba mais primitivo que se possa imaginar? Samba regado a cachaça, o tamborete só existe como instrumento musical se percebermos a  pobreza  – e a imensa alegria em seus folguedos – deste povo que há mais de cem anos habita esta ilha do rio São Francisco, entre Pernambuco e Bahia...

Agora, pergunto, que significado ele adquiriu para o espetáculo de dança contemporânea “Eu vim da Ilha” com coreografia de Jailson Lima, do SESC Petrolina?

Porque ele veio da ilha sim, mas na cidade se transformou, no palco se refez...

E o tamborete se tornou o centro do espetáculo, a emanação para o que se configurou, se firmou, se dançou...

O samba de veio, como referência artística, muito além do folclórico, restritivo em seu conceito antigo, metamorfoseou-se em outra roupagem, linguagem, ritmos e sons. E isso fez a diferença entre o que poderia ser cópia, documentário ou registro para um ato criativo, singular. Acrescento: um ato de recriação, de uma estética própria, de uma ressignificação do samba da ilha. Neste sentido, o título do espetáculo é também palco para esta leitura “Eu vim da Ilha” .

Nesta caminhada, sem dúvidas  houve muita observação, desde o samba lá na ilha, com as águas do velho rio Chico em suas margens, até os espetáculos feitos em palcos na cidade, outras margens e outras definições...

Em “Eu vim da Ilha”,  a importância das falas de Dona Amélia, de Conceição (sou feliz!), das letras das canções, faz um belo e significativo contraponto neste respeito aos “veios” do samba. Assim como  retirar desses recursos em off um diálogo com o som das águas, agora em braços, pernas e corpos de jovens dançarinos, conseguindo outras cores, outros sons, cantos e movimentos. E, ao mesmo tempo, conseguir ser fiel em sua recriação e homenagem ao samba de veio, tão perto de nós...

Assim, criou-se um espetáculo de dança contemporânea sem recursos fáceis, deixando a dança livre de certas amarras que poderiam truncar a proposta desse grupo, ao mesmo tempo regional e universal, que sai de Petrolina e mostra outras caras deste sertão... águas e margens de uma cultura viva que se apresenta, representa!

Pois bem, é aí que entramos com o significado de Poética. Há a poética  da dança tradicional, cultura popular, dinâmica, que faz a diversão na ilha, sem tempo determinado, e cuja origem está no aspecto religioso da festa de reis, mês de janeiro, ainda no ciclo natalino dos folguedos populares .  O samba é dos velhos sim, Márcia Nóbrega observou bem, “ele é do domínio da noite, do compartilhar de um mesmo “fogo” que só se passa entre uma mesma gente que, por sua vez, é construída a partir de relações sociais já estabelecidas. “

Há também outro aspecto  da encenação do samba, com horários para começar e terminar, com figurino uniformizado para o grupo, uma representação, mais um espetáculo tido como folclórico, mediado por outras pessoas para o contato,  nesta sociedade do espetáculo, de consumo massivo, uma outra coisa enfim, para só associar.

O que há em comum? Escrevi para a capa do CD, produzido por Chico Egídio, este produtor cultural que acompanha e registra o samba da ilha há mais de uma década.

“Há uma energia vibrante na polifonia rítmica do samba de veio. O conjunto de vozes do coro, do “puxador” do samba em seus versos, da percussão, palmas e instrumentos dialogam entre si, mostrando uma dinâmica rítmica que registra (...) uma vertente da música brasileira em suas raízes africanas, indígenas e portuguesas.”

 “O samba  da Ilha do Massangano é um mix de vários sambas e batucadas... Muitos de seus versos e do ritmo estão espalhados em outras manifestações como no samba de roda baiano, no reisado, em versinhos antigos. Ao mesmo tempo, embora possa ser reconhecido, este samba de veio da Ilha do Massangano tem uma identidade que não se confunde com nenhum outro. Há características marcantes que evidenciam essa  condição, inclusive constatadas até pelo fato de, há pouco tempo, ser parte de uma comunidade quase isolada, no meio do rio São Francisco. Hoje, ao envolver praticamente toda a comunidade, não mais só o “veio”, mas até as crianças em seu frenesi, esse samba consegue uma vivência única, além da comparação. E que se perpetua no registro e na recepção de projetos como este.” No caso, como frisei, era a produção dos CDs.

Nessa confluência de tantos olhares e possibilidades, há a continuidade na perspectiva da diferença dos públicos receptores. Se na ilha o samba é dos velhos, da noite, há a interação entre os moradores, os que dançam, os que cantam, os que tocam, os que abrem ou não a porta de suas casas, todo o conjunto da dança onde o importante é sempre a diversão, a festa. E que faz também a alegria dos que, de fora, dançam com eles principalmente nas apresentações na cidade. Os jovens também se divertem no ritmo do samba... A recepção nunca é homogênea em qualquer circunstância.  Mas no samba as classes sociais se integram como público, algo democrático e interativo.

Já no espetáculo “Eu vim da Ilha”, há o espectador de plateia, aquele que fica sentado quando a apresentação é no palco de um teatro ou em pé quando a apresentação se dá em outros locais, abertos por exemplo. Em “Eu vim da ilha” temos um trabalho profissional, de equipe. De coreografia, de direção teatral, de uso de tecnologias como o som em off, do figurino, da sequência, da umbigada,  de um espetáculo com horário programado e local específico.  Canclini destaca que “Analisar a arte já não é analisar apenas obras, mas as condições textuais e extratextuais, estéticas e sociais, em que a interação entre os membros do campo gera e renova o sentido.” (Culturas Híbridas, p. 151)

Esta interface da contemporaneidade, através da tradição,  ratificou  “uma visão de mundo levada  aos palcos. É uma relação de respeito e criação com a história da formação de cada lugar e do seu povo, na intenção de projetar uma linguagem de dança onde o movimento corporal não seja estranho a esse povo.” (da sempre citada Maria Paula Rêgo que, aliás, já deu, se não me engano, oficinas aqui mesmo em Petrolina).

Acredito pois que Jailson, mais sua equipe,  bem integrado nestas fontes, conseguiu conceber o espetáculo “Eu vim da Ilha” como dança contemporânea (aqui entendida em seu diferencial, do momento histórico em que atua) e que consegue um estrato poético, uma qualidade artística que foi até premiada. Deu, assim,  um sentido não só de representação social, mas de pertencimento, de um substrato cultural significativo.



(*) Sempre inquirindo, pesquisando, aceitei participar de uma mesa com especialistas no assunto: Daniela Amoroso, Eloisa Domenici e a mediação de Daniela Santos no SESC Petrolina em abril de 2012. Escrevi este texto que, evidentemente, não deu para apresentar por completo.




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