Um conto, escrita criativa.... bissexta sou, mas capaz de escrever algo assim.
Menina do rio
Elisabet Gonçalves Moreira
Na periferia da cidade, às margens do grande rio, Jucilene
vivia solta como os cachorros e porcos, sempre procurando algo para comer. Um
pé de goiabas era seu refúgio quando os outros meninos não estavam por lá ou
quando estavam nadando. Dali ela podia olhar o horizonte, acompanhar o pôr do sol
e sonhar como só as meninas sabem.
Havia tantas histórias do rio... tantos naufrágios de vidas
incompletas. Jucilene não temia o rio, e, sim, suas margens. Riam dela porque falava
sozinha. Sozinha não. Falava mais com o vento, com as goiabas, até com os
girinos e peixinhos que se arriscavam nas beiras e menos com o pessoal, pescadores de gerações no ofício.
Toinho, filho de seu Dedé, que vendia peixes numa banquinha
subindo a rua, lhe deu de presente um pequeno cágado que conseguira tirar de
uma rede. Nos olhos do bicho, ela não reparou nos olhos esverdeados do menino
que pediam uma troca.
Então ela deu, sem vergonha. Ele a tocou, seus peitinhos
endureceram, brincaram no chão, até gostou. Toinho foi embora rápido. Jucilene
se banhou no rio e percebeu que podia ser assim, ter e ser o que quisesse. Então
decidiu seu destino, virou sereia de
água doce, para dar e trocar presentes.
Foi assim que o cantar de Jucilene se espalhou naquelas beiras. Nunca mais lhe faltou
comida, ela que era também refeição de pobre. Até Joca, o surdo, ouviu e vibrou nos atos de
sonhos possíveis.
O pequeno cágado, como ela, foi crescendo e parece que
também entendeu os desígnios dos seres terrestres e aquáticos, metades que se completam. Livres os dois,
companheiros da solidão. E daí que começaram a dizer que Jucilene estava doida,
que era feiticeira, que o cágado se transformava em homem, que isto e mais
aquilo.
Toinho e outros agora rapazes foram atrás dela debaixo da
goiabeira. Pegaram o cágado que estava bem ali, no refluxo do rio, e cortaram
sua cabeça. Dessa vez Jucilene reparou
nos olhos esverdeados de Toinho que dera e tirara. E de sua fúria, iam se ver.
Jucilene se escondeu no rio e juntou suas lágrimas com as águas da correnteza.
Assim que a canoa dos pescadores saiu nos riscos da aurora, Jucilene
falou com o rio, com o vento. Bateu seus
braços na água com vigor. E tudo se turvou. No desespero, os homens ainda lhe
pediram ajuda, mas Jucilene apenas sorriu, como só as mulheres sabem.
Petrolina, 2 de fevereiro de 2015
Parabéns pela estréia e por nos presentear com este belo conto no Ano Novo! Tantas histórias e estórias nestas águas!
ResponderExcluirFilha de muito amor... lá e cá!
ResponderExcluirObrigada, thanks
Bet, parabéns pela iniciativa e coragem de nos apresentar um pouco de suas experiência e vivências por meio de narrativas às vezes situadas num espaço híbrido e indecidível...em meio a experiências, memória, lembranças e vivências e um cotidiano indeciso...
ResponderExcluirAmigo de muito estímulo... indecidível é este carinho.
ExcluirObrigada
Bett
grato pelas palavras e pelos laços de amizade e poesia.
Excluirinté!
m.t.
Será mais uma maneira de você contribuir com a literatura. Boa sorte.
ResponderExcluirObrigada, sorte será preciso??!!!
ExcluirBem, vamos lá
Bet
Parabéns, Bet! Que maravilha ver sua produção abrindo este espaço de troca! Estou cá pensativa com o conto...
ResponderExcluirObrigada por partilhar.
Obrigada Cris, digo eu. Até pq vc ficou "pensativa" com o conto.
ExcluirAssim imagino a arte, aquela que nos faz refletir de algum modo.
E aguarde mais uma postagem.
Surge a lenda de Jucilene!
ResponderExcluirOi Genoveva, que legal sua percepção... quem sabe? Adorei, obrigada,
Excluirah, hoje posto mais um texto
Congratulações nobre escritora,
ResponderExcluirParece-me relacionar-se com os motivos pelos quais uma mulher diferente faz escolhas ou foge das opções não satisfatórias que se lhes apresentam, e louvo a sua escolha do lúdico, da fábula, para justificar ou defender essas mulheres magníficas. Creio que não foi aleatoriamente a construção desse texto de abertura e ouso atrelar a alguma personalidade marcante que lhe marcou em dado momento, no seio do nosso contexto, para além de ser uma curiosidade pessoal, um devir ainda a ser desvendado.
Parabéns.