Bet com t mudo

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BET COM T MUDO... Quem me conhece, reconhece? Já me imagino receptora deste blog. Quem é esta mulher? Quem é esta Eli, Elisa, Betina, Betuska, Betî, resumida numa Bet com t mudo? Esta afirmação diminuta diz (ou desdiz?) uma identidade... Assim, quem sou eu? Sou (sim) uma idealizadora das pessoas, das relações, das amizades, das produções minhas e dos outros. Consequência: um sofrimento que perdura... na mulher crítica que procura saber e tomar consciência finalmente de quem é e do que ainda pode fazer (renascer?!) nesta fase da vida, um envelhecimento em caráter de antecipação do inevitável. Daí a justificativa do blog. Percorrer olhares, visualizar controvérsias, pôr e contrapor, depositar num receptor imaginário (despojá-lo do ideal, já que eu o sou!) uma escrita em que o discurso poderá trazer uma Bet com t falante... LEITURAS, ESCRITAS, SIGNATURAS...

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

A razão do denominador

Uma análise de texto, minha preferida das muitas análises literárias que fiz... sim, fui professora de Teoria Literária e não posso "trair" essa minha formação. Espero que o texto maravilhoso de Murilo Mendes lhes possa fazer refletir, assim como me fez entrar nele e dar-lhe um rumo de entendimento, de significação para a vida e seus limites... até para um blog hoje.
 
TEXTO SEM RUMO Murilo Mendes[1]
        


        O poeta inventa a notícia que o jornal omite. Faz vibrar o som que o sino omite. Coloca a natureza (!) no devido posto.
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         Calçar a sua sombra. Laçar o mar. Mungir a lua. Trair aquela raposa. Trocar de camélia.
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         Quis filmar o milagre, mas os protagonistas cansados se haviam evanuído. Evanuir-se também quer dizer: desnudar-se que nem Eva.
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         A recusa da cruz implica o medo de afrontar a condição humana dura real fisiológica com seu limite no espaço-tempo e sua perspectiva incerta de ressurreição.
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         Marat entra na banheira, entra na História.
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         Não é possível encarar o sol: mas sim encarar a metáfora do sol.
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         13 de maio de 1966. Consegui viver até hoje porque desde cedo adestrei-me a me perturbar, a me criar tormentos, a tentar me destruir: confiando sempre nas minhas grandes reservas de eletricidade. Renasço cada dia dos meus próprios “crimes”. Viver é refazer o erro.
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Edgar Poe: proprietário, produtor e “metteur-en-scène” da poderosa palavra NEVERMORE.
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Einstein diz que na passagem do infinito ao finito há um desvio para o vermelho.
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         Nossos remorsos circunscrevem-se a uma zona tão reduzida! Zona que, se fosse ampliada, a gente explodiria antes do tempo previsto.
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         As histórias contadas pelas pretas foram para mim os primeiros quadros, as primeiras tapeçarias.
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         A morte é um dever, um dever civil.
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         Nice. Num restaurante. Um casal francês troca raros monossílabos durante vinte minutos. Chega a “bouillabaisse”, os dois atiram-se ao prato e iniciam um diálogo animadíssimo.
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         Para conhecer os motivos da morte/para ser bem recebido nos seus átrios e participar das grandes festas da sua fome/para distinguir os esqueletos cultos dos ditos analfabetos, os mansos dos cruéis, os raffinés dos grosseiros/para desvelar os textos do “Livro dos Mortos”, guardados por Osíris nas pirâmides nucleares/para tocar a flauta mágica/para concluir a palavra/para decifrar o rito do touro/para romper com Rimbaud o pão de pedra/para ler novos cânticos de Dante/para defrontar Helena de Tróia/para desmontar o tempo/para completar minha cota terrestre
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existo.
 
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         Terrível coisa, o desentendimento entre homens que falam a mesma língua. Mas existe “a mesma língua”? Ou o mesmo latim, usado exatamente para que ninguém se entenda? Os tratados de moral, de educação, de política, são escritos quase sempre por pessoas que não querem ser “dupes” de outras, e se baseiam em relatos de pessoas que não querem ser “dupes” de outras.
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         Se uma angústia lavasse a outra, levasse a outra!
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         Ninguém quer o falso. Ninguém quer o verdadeiro.
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         Se Deus fosse à escola aprenderia somente matemática.
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         As profundidades as sinuosidades as imensidades de algumas das palavras mínimas da língua: fé - lá - eu.
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         Os deuses são analfabetos, não por preguiça, comodidade ou ignorância: por desprezo.
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         Quando no Marrocos, assistindo ao desfile de mulheres veladas, eu pensava: se são belas, vejo-me roubado; se feias poderia beneficiá-las com um golpe gratuito de olhar.


 
 
 
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A RAZÃO DO DENOMINADOR
                 Elisabet Gonçalves Moreira
   
        Quando Murilo Mendes ganhou o Prêmio Internacional de Poesia, em 1972, o Etna-Taormina, Carlos Drummond de Andrade escreveu uma crônica no Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro, reclamando contra o nosso esquecimento por essa vitória de um poeta brasileiro em terras estrangeiras. E reivindicava para Murilo Mendes o lugar de destaque que ele merece em nossa literatura e em nossa lembrança.
         Em 1980, muito se lembrou e foram comemorados os 50 anos de lançamento do livro Alguma Poesia de Drummond, mas também é de 1930 o Poesias de Murilo Mendes, primeiro livro do poeta que, juntamente com Carlos Drummond de Andrade, consolidou o Modernismo no Brasil em sua feição poética mais típica e duradoura.
         Realmente, há várias maneiras de ser ou de se sentir exilado. E Murilo, que há tantos anos ensinava literatura brasileira em Roma, até sua morte em 1975, sentia pessoalmente esse descaso.
         Tenho uma dissertação de Mestrado sobre Murilo Mendes. Sei que nada sei de definitivo sobre ele, o antidefinitivo por excelência. Mas tenho algumas coordenadas sobre sua obra que tracei/levantei. Para chegar até elas, eu vou tomar de um texto muriliano, trabalhar com ele e sentir o poeta Murilo e sua palavra tão ardorosamente defendida.
         Sei que a própria seleção de um texto para análise já implica numa primeira crítica deste texto. Mas, tenho outros motivos.
         O texto é do livro Conversa Portátil, livro este publicado postumamente em 1994 na sua Poesia Completa e Prosa da Nova Aguilar. Como disse na nota de rodapé, Texto sem Rumo foi retirado, como está neste trabalho, da antologia em prosa Transístor, de 1980. Como era uma antologia, eu já percebera que o texto não estaria completo, o que se confirmou na obra completa, um texto bem maior do que o texto usado para este trabalho.
         Texto sem Rumo é de 13 de maio de 1966, prosa, um dos seus textos do fim, de sua última linguagem. A relação entre prosa e poesia, os limites do texto moderno e o fato de ser um texto ainda inédito motivaram minha análise.
         Também porque em Texto sem Rumo algumas das coordenadas gerais da obra muriliana nele se mostram de alguma forma. Sei que nenhuma análise “esgota o verdadeiro texto artístico” e seria temeridade eu julgar que pudesse dele tudo extrair. Sei e postulo, no entanto, que só a partir do próprio texto, de dentro para fora, é que minha análise terá crivos de alguma veracidade. É, portanto, uma análise aberta, simples e objetiva, onde procuraremos ver o texto muriliano em ação.
         Sobre o título: Murilo Mendes o coloca como um Texto sem Rumo. A palavra texto é sintomática: aqui ele é tratado em sua acepção moderna. Nada é definido ou definitivo, tudo se mescla na escritura moderna.
         Sem rumo: nada de planos preestabelecidos. Isto é, aparentemente, porque temos um texto bastante elaborado na verdade. O sem rumo aqui parece se dirigir ao plano formal. É um texto em movimento, oscilatório, que faz questão de não chegar a lugar algum. Desnuda-se em ambiguidades.
         Observem que o poeta é aquele que inventa, são suas primeiras palavras. O problema do real na arte, aspecto dos mais instigantes, é o primeiro a ser colocado. Mas ele inventa o que o jornal, por exemplo, “omite”, isto é, em cima da realidade, da omissão dessa realidade.         Temos a impressão de que Murilo brinca de “amarelinha”, passa do mais prosaico para o lírico, desmascarando o processo poético, indo e vindo pelas fronteiras do real e da escritura.
         Eu não vou tentar explicar o que não é explicável a respeito do texto. Seria perífrase ou mesmo paráfrase. O que importa é como eu tomo conhecimento do texto, das palavras do poeta e ali penetro. Assim, o texto no qual me deterei mais de perto é uma equação matemático/poética.
 
        
Para conhecer os motivos da morte/para ser bem recebido nos seus átrios e participar das grandes festas da sua fome/para distinguir os esqueletos cultos dos ditos analfabetos, os mansos dos cruéis, os raffinés dos grosseiros/para desvelar os textos do “Livro dos Mortos”, guardados por Osíris nas pirâmides nucleares/para tocar a flauta mágica/para concluir a palavra/para decifrar o rito do touro/para romper com Rimbaud o pão de pedra/para ler novos cânticos de Dante/para defrontar Helena de Tróia/para desmontar o tempo/para completar minha cota terrestre
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existo.
 
         Tem-se uma equação:   morte  .
                                               vida
         Nesta equação, a vida está para a morte assim como a morte para a vida em inter-relação. Vamos ver como isso funciona no texto.
         Sei que é morte porque o poeta estabelece: para o numerador da equação estão os motivos da morte e a única palavra do denominador é existo, a antítese da morte.
         Observam-se no numerador 13 verbos no infinitivo: conhecer, ser bem recebido, participar, distinguir, desvelar, tocar, concluir, decifrar, romper, ler, defrontar, desmontar, completar. Estes verbos, colocados como motivos da morte, são todos ações de vida, funcionando semanticamente como um futuro para o denominador comum que é o presente do indicativo, no 14o. verbo, existo. Este é, pelo menos, o plano do real. Ou sua metáfora.
         A preposição “para” me indica, portanto, a finalidade desse denominador, dessa existência. Existo para isso, isso e aquilo. Que são motivos de morte, o contrário de existir, óbvio.
         Então, vamos ver de perto estes motivos da morte. O poeta deseja conhecê-los. Sua abrangência visual, nestes motivos, começa a ser explicitada. Imagens antológicas da morte, na seleção vocabular, na apresentação delas.
         “Ser bem recebido nos seus átrios.” A morte é solene, onde se recebe com classe. Há “grandes festas”, não de regalos e, sim, da “fome”. Morte e destruição. O visual da morte continua na imagem até grosseira dos “esqueletos”. A preocupação do Murilo-homem se revela nesse além. Ele quer distinguir, mesmo ali, os cultos dos ditos analfabetos, ironia do homem de espírito que sempre foi.
         Afinal, quem é culto? Esses confrontos, esses esquemas antagônicos são bem murilianos. São três os confrontos. Além desse, temos os mansos dos cruéis, os raffinés dos grosseiros. A ironia está presente no homem cultor e culto. Nisso, Murilo Mendes chega a ter momentos sofisticadíssimos, em suas amizades na Europa, suas citações, seus artigos.
         Mais sintomático é o “desvelar os textos do Livro dos Mortos.” O verbo também é muito significativo. Desvelar é tirar o véu, decifrar, desmontar. O prefixo des-, usado algumas vezes, indica uma ação contrária. A referência ao mito, o mais conhecido dos mitos egípcios, a lenda de Osíris, deus dos mortos e guardião do Livro, inclui o texto nessa categoria de historicidade do próprio mito, de suas associações.
         Frisou-se no início da análise que havia 14 verbos no texto e, por coincidência ou não, a lenda de Osíris diz que este teve seu cadáver partido em 14 pedaços, por inveja de seu irmão Set, que os espalhou pelo reino. Sua irmã e esposa Ísis os recolheu e isso simboliza a semeadura. A ressurreição do corpo de Osíris é símbolo do brotamento.
         O “Livro”, onde o poeta pretende ler seus “textos”, está no miolo, em “pirâmides nucleares”. E esse núcleo também parece ser simbólico. A morte começa a tomar também outra configuração. São os textos, são as palavras que estão no outro lado que interessam, na medida em que sua leitura revelaria o segredo.
         “Tocar a flauta mágica.” Novamente o som, o mito na ópera de Mozart, quem sabe, já que Murilo Mendes era um apaixonado pela obra de Mozart. Outro motivo dado: “para concluir a palavra”, a matéria da poesia. Retoma-se a esfera concreta da metalinguagem, assunto deste “texto sem rumo”, de signos em metáforas e intertextos.
         Para “decifrar o rito do touro”. Ritos de vida e de morte, na arena ou nos labirintos do minotauro. Há sempre um mistério, um segredo, nesse “au-délas”... decifraremos? A angústia se avoluma no inevitável.
         Para “romper com Rimbaud o pão de pedra”. No aspecto formal do discurso evidenciam-se efeitos de sons bastante interessantes e que adquirem significado. Os erres duros, as consoantes labiais p e b e a nasalização do rom, com, Rim (pronúncia francesa), ão. É Rimbaud, poeta do simbolismo francês, trágico, cuja manipulação verbal teve na sinestesia, na correspondência de sons e cores uma das marcas principais de sua poesia, ao lado da procura da morte. Num jogo intertextual, Murilo “lê” o outro no seu próprio discurso. Mesmo que “rompendo” com ele na imagem dura do “pão de pedra”, reúne-se no nível da estruturação formal.
         Para “ler novos cânticos de Dante”. A imagem continua, Dante pelo dantesco, pelos textos do seu “Inferno”, assim como Rimbaud com “Une saison en enfer”. É Murilo que, em associações quase surreais, quer conhecer mais sobre a morte, através de outros cânticos, outras palavras.
         Para “defrontar Helena de Tróia”. Defrontar a própria morte, na associação da figura fatídica da mais bela mulher grega que acabou por levar destruição a Tróia e a morte a milhares de gregos. E, também, sempre o paradigma analógico: morte, agora com seu contrário, a beleza.
         Para “desmontar o tempo”. Novamente um jogo de vogais e nasais, criando o discurso, nos seus limites, a sua finalidade estética, ao se voltar para si mesmo. O tempo, a própria eternidade. A desmontagem do tempo supõe o domínio da montagem (pelo seu oposto). Assim, o poeta anseia por tudo saber e dominar, um poder de quem não é mortal.
         Para “completar minha cota terrestre”, é o que lhe resta ainda desse tempo dividido. Tem-se apenas uma cota, uma parte. O resto é a eternidade, o fim, o que se aguarda quando completar o que lhe cabe.
         O poeta divide com um traço esse limite, as duas frações do humano:
      morte  .
                                                         vida
O limite está no traço, no significante visual.
         Do outro lado, no denominador desta razão, tem-se, no texto do poeta, uma única e isolada palavra que se basta: “existo” e ponto final.
         Tudo adquire significado. Desde as barras (////) para separar simbolicamente o corpo mutilado de Osíris até o traço e o ponto final.
         Existo e nada mais precisa ser dito. Aliás, tudo já foi dito. A escolha de existo em lugar de vivo, por exemplo, é também significativa para o discurso poético. Evidentemente existo carrega muito mais força, é um vocábulo mais denso que outro sinônimo. Existo indica também, já que está no denominador, no outro lado, o outro plano. EXISTIR É CARREGAR, TAMBÉM NUMA FRAÇÃO, TODAS AS INCÓGNITAS DA MORTE, todos os motivos de sua “não-existência.”
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         morte      ::       não-existência
            vida                   existência
 
(Portanto: morte está para vida assim como não-existência está para existência.)
 
         Multiplicando-se os extremos, obtém-se:
          morte x existência = vida x não-existência.
 
         A ambiguidade na contradição destes antagonismos torna a realidade poética a única tangível.
         Corrobora também para isso a universalidade e a atemporalidade desse dualismo, que proporciona a esse texto em prosa de Murilo Mendes uma intensa carga semântica.
         A novidade da forma implica numa visão do Murilo contemporâneo procurando sempre caminhos para sua expressão, não modismos, mas um espírito crítico altamente criativo e atento às evoluções do mundo moderno ou mesmo pós-moderno.
 
 
         É de se observar também que a aparente contenção desse discurso, pelo ritmo sincopado, um certo despojamento, é apenas aparência realmente. Há muito de opulento aqui, de grandiloquente nas imagens, na retórica.
         Afinal, nos limites entre morte e existência, o poeta-signo pode ali passear livremente, o enigma do homem é a sua própria essência.


 

 


[1] Este texto está copiado como em TRANSÍSTOR - Antologia de prosa - Murilo Mendes, editado no Rio, pela  Nova Fronteira, 1980, p. 401/404. Na sua Poesia Completa e Prosa, Rio, Editora Nova Aguilar S.A., de 1994, o texto completo é maior, com uma nota do autor.  Como a análise foi feita originalmente em 1982, na dissertação de Mestrado “Murilo Mendes - uma representação operacionalizada”, preferiu-se continuar com a versão anterior. A mesma análise também foi reformulada e publicada na Revista Drummoniana 2, Petrolina, novembro de 1990.

2 comentários:

  1. A razão do seu denominador é saber ler nas entrelinhas do poeta.

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  2. Obrigada Juliana, sem isso não se lê literatura... sabedoria que aprendemos no discorrer das palavras ditas e não ditas. Valeu!

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