Bet com t mudo

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BET COM T MUDO... Quem me conhece, reconhece? Já me imagino receptora deste blog. Quem é esta mulher? Quem é esta Eli, Elisa, Betina, Betuska, Betî, resumida numa Bet com t mudo? Esta afirmação diminuta diz (ou desdiz?) uma identidade... Assim, quem sou eu? Sou (sim) uma idealizadora das pessoas, das relações, das amizades, das produções minhas e dos outros. Consequência: um sofrimento que perdura... na mulher crítica que procura saber e tomar consciência finalmente de quem é e do que ainda pode fazer (renascer?!) nesta fase da vida, um envelhecimento em caráter de antecipação do inevitável. Daí a justificativa do blog. Percorrer olhares, visualizar controvérsias, pôr e contrapor, depositar num receptor imaginário (despojá-lo do ideal, já que eu o sou!) uma escrita em que o discurso poderá trazer uma Bet com t falante... LEITURAS, ESCRITAS, SIGNATURAS...

sábado, 21 de maio de 2022

MÉTODOS E SEGREDOS DA PESQUISA: DECIFRANDO PISTAS E INTERPRETANTES

 

(Foto de Sílvia Nonata)

                             Um ferro de marcar boi.

Estranhei. Onde as iniciais do dono, semelhança que perfaz a referência lógica, usual e visual?  Esclarecendo: meu interesse por coisas da região onde habito, às margens do rio São Francisco, entre Pernambuco e Bahia, sempre me motivaram. E esse ferro de marcar boi faz parte do acervo histórico e cultural destas margens.

A partir desse estranhamento, como um desafio, o pesquisador – assim me coloco - quer ir além da “mera curiosidade”. E as associações, as coincidências, as leituras vão se projetando, tecendo um produto mais elaborado, uma reflexão, ensaio ou artigo.

Como um detetive, vamos não atrás de um assassino, mas do conhecimento. Estudos relacionados à Semiótica sugerem leituras em interação, pois “A compreensão da cultura como informação determina alguns métodos de pesquisa. Ela permite examinar tanto etapas isoladas da cultura como todo o conjunto de fatos histórico-culturais na qualidade de uma espécie de texto aberto, e aplicar em seu estudo métodos gerais da Semiótica e da Linguística Estrutural”. (LOTMAN, 1979)

Assim, pretendo mostrar alguns exemplos pessoais de como este “texto” nos é dado a ler, se realmente queremos com ele interagir. Espero também associar aqui que o segredo é o desafio e o método é a chave.

Dizem por aí que o vaqueiro cura o boi no rastro... Foi no rastro de pistas e indícios que caminhei e caminho, porque também sei do inacabamento de leituras e interpretações.

Modelos epistemológicos rígidos não conseguem dar conta de certa subjetividade inerente ao processo de pesquisa, seja pela imersão “apaixonada” do pesquisador, seja pelas limitações de uma atitude hipotética-dedutiva ou indutiva tão somente.

Mesmo que a observação e a dedução constituam basicamente o método do detetive, é preciso ressaltar também, que há, muitas vezes, um “elemento sorte” na dedução. As melhores hipóteses para desvendar um crime são obtidas em pormenores, na verdade “em indícios imperceptíveis para a maioria.” (GINZBURG, 1989)

No “caso” dos ferros de marcar boi, primeiramente as investigações foram feitas in loco: vaqueiros, fazendeiros, ferreiros, gente honesta e boa a dar informações. E ferros, muitos ferros, que compõem uma pequena coleção.  Consegui encontrar até uma raridade: o Livro de Registro de “ferros, marcas e signaes” da Villa de Petrolina, dos anos de 1872 e 1873, hoje desaparecido da Biblioteca Municipal do município de Petrolina.

Mas foi a ponte com a literatura que me levou a outros índices de deciframento nesta investigação, cruzando com os dados já recolhidos.  Nós, pesquisadores, devemos ser um atento leitor de signos, uma vez que decifrar o enigma é sair à busca de rastros, é gostar deste percurso e ter o prazer da descoberta.

Ariano Suassuna, no seu romance A PEDRA DO REINO, refere-se ao desenho dos ferros dentro de uma “Heráldica sertaneja” e sua simbologia, repleta de mistérios e elementos mágicos. Segue-se o fragmento de um diálogo esclarecedor:

“...é que, na espádua esquerda de Dom Pedro Sebastião, tinham ferrado, a fogo, um ferro desconhecido e que não é nenhum dos ferros familiares de ferrar boi do Sertão da Paraíba” (...)

- Você ainda se lembra como era o ferro?

- Me lembro como se fosse hoje, Excelência! Era uma espécie de lua, ou melhor, para ser mais fiel à nobre Arte da Heráldica, um crescente, com as pontas viradas para cima e encimado por uma cruz.

(...)- E não havia nenhum sinal do fogo onde esquentaram o ferro?

- Nenhum, Excelência! Eu já não expliquei que no aposento elevado da torre da capela, não havia nada, a não ser o sino?”   

Essa pista, esse sino, representa e simboliza o signo, também adivinha, que invocara Pedro Quaderna um pouco antes: “Para o meu enigma, portanto, só um Decifrador brasileiro e de gênio!” (SUASSUNA, p. 293)

(Observação: desenho feito no Paint para este trabalho, a partir da descrição no livro)

Meia lua e cruz, símbolos muçulmano e cristão, que remetem às batalhas das cruzadas. Um mundo medieval no sertão onde as antigas novelas de cavalaria fazem parte do imaginário de Suassuna. Necessário pensar todo o contexto da obra e podemos “decifrar” este enigma.

Também Guimarães Rosa em A Hora e a Vez de Augusto Matraga “ferra” o seu personagem-título:

“E, aí, quando tudo esteve a ponto, abrasaram o ferro com a marca de gado do Major – que soia ser um triângulo inscrito numa circunferência -, e imprimiram-na, com chiado, chamusco e fumaça, na polpa glútea direita de Nhô Augusto. Mas recuaram todos, num susto, porque Nhô Augusto viveu-se, com um berro e um salto, medonhos.” (GUIMARÃES ROSA, p. 335/6)

E, coincidentemente, surge na lembrança, um detetive referência: Sherlock Holmes. Sim, em O Vale do Terror, de Conan Doyle, o primeiro morto da história também tem o seu antebraço ferrado com o mesmo sinal usado por Guimarães Rosa. E outras vítimas também aparecem com a marca, ao longo da história.

“O braço direito do morto apresentava-se, até a altura do cotovelo, fora da manga do roupão, no centro do antebraço, um desenho de cor castanha, um triângulo dentro de um círculo, que se salientava vivamente na pele clara. (...) Não é tatuagem, afirmou o médico. (...) O homem foi marcado, há algum tempo, a fogo, como se usa para fazer com o gado.” (CONAN DOYLE, p. 38)

E, lá como cá, embora com as devidas diferenças, a marca era o símbolo de uma associação de criminosos – espécie de Máfia – que no início só fazia o bem, mas que se degenerou.

Pesquisando o significado místico: círculo com triângulo em seu interior simboliza o ternário divino, ou o princípio espiritual dentro do todo, do universo (que é o círculo). Sabe-se que Guimarães Rosa era um estudioso e conhecedor de magia e mitos e, no texto, o ferro assinala mais que a marca do pecado, simboliza a queda e a salvação de Nhô Augusto, sua hora e sua vez.

E por isso não estranhei quando, entrevistando gente mais antiga, falou-se de costumes como o de ferrar somente na lua nova ou cheia para garantir a reprodução do gado. E cruz para livrar da peste.

Em O Signo de Três (ECO & SEBEOK, 1991), uma antologia de 10 ensaios de diferentes autores, onde também se inclui o texto citado de Ginzburg, impressionaram-me as referências e observações entre os métodos dos detetives Sherlock Holmes de Conan Doyle e Dupin de Edgar A. Poe, comparados com os estudos semióticos de Charles S. Peirce. Por isso, ressalto um aspecto fundamental nesta compreensão.

 “Um signo, ou representamen é aquilo que, sob certo aspecto ou modo, representa algo para alguém. Dirige-se a alguém, isto é, cria na mente dessa pessoa um signo equivalente ou talvez um signo mais desenvolvido. Ao signo assim criado, denomino interpretante do primeiro signo”. (PEIRCE, 1977)

 A semiose se dá numa relação triádica, gerando um processo dinâmico e ilimitado de significações, de interpretantes.

O ferro de marcar boi que, em nível primário de leitura, seria apenas um signo, o visual do desenho ou a forma “ferrada”, com a função de identificar a rês ou o animal do patrão em outrora campos abertos, não cercados, cerca-se, no entanto, de uma rede de interpretações sígnicas, muito maior que sua intenção primitiva. Uma “leitura” das relações intersígnicas dos ferros de marcar boi desnuda também, metonimicamente, o processo econômico, social e cultural, típico de nossa estrutura fundiária, onde a posse tem que ser assinalada e delimitada. Um símbolo de Poder.

A propósito, uma velhinha, ao ver o ferro que tanto estranhei, por sua simplicidade, comentou: “essa é a marca de quem tem pouco mais ô nada”. E o dono do ferro era um pobre vaqueiro que tinha somente poucas cabeças de gado...

Assim é que, na malha de signos constitutivos de uma pesquisa, sobretudo na área de humanidades, temos um enigma (ou vários) a ser revelado num continuum de possibilidades interpretativas, sem reduzi-lo apenas ao aspecto descritivo. O método, mesmo que empírico, leva a descobertas e ao conhecimento como substrato prazeroso de nossas escolhas por índices esclarecedores. 

Além disso, o pesquisador acaba também por preencher  lacunas, muitas vezes resgatando do esquecimento aquilo que foi posto de lado pela história. Não é à toa que a pesquisa como um trabalho investigativo se torna um jogo, um exercício lúdico de descobertas,

Referências

DOYLE, Conan. O Vale do Terror. São Paulo: Melhoramentos, 1982.

ECO, Umberto & SEBEOK, Thomas A. O signo de três. São Paulo: Perspectiva, 1991.

GINZBURG, Carlo. SINAIS Raízes de um paradigma indiciário in Mitos, Emblemas, Sinais. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

LOTMAN, Iúri M. Sobre o Problema da Tipologia da Cultura in Semiótica Russa. São Paulo: Perspectiva, 1979.

PEIRCE, C. Sanders. Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 1977.

ROSA, J. Guimarães. A hora e a vez de Augusto Matraga in Sagarana. Rio: José Olympio, 1976.

SUASSUNA, Ariano. Romance d´A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-E-Volta. Rio: José Olympio, 1976.

Nota: Este texto foi publicado na revista Contexto nº 7 – Petrolina: julho/dezembro 2013, p. 90-92.

 

 

terça-feira, 10 de maio de 2022

CONTO E ENSAIO VERSOS...

 

ATO CONTÍNUO

A menina gostava de ler. Sabia que isso era importante. Quem lia mais, sabia de tudo. E podia impressionar qualquer um.

Onde ler? Para não ser incomodada com o barulho irritante da casa viva, dos irmãos correndo, da mãe sempre a chamando para fazer isso ou aquilo, Corina lia embaixo da cama. Naquele espaço sombreado, sem calor, viajava nas aventuras, beijava nos amores, sentia emoções e comichões que não lhe eram permitidas.

Transportava-se para seu personagem do dia. Um homem relativamente idoso, moreno claro, que lia também. Sem precisar se esconder, lia às claras, mesmo sendo noite, com um abajur em foco sobre o livro encadernado. Sentado confortavelmente numa poltrona que, mesmo reformada, tinha uma aparência de antigo mobiliário. Seus pés repousavam num pufe, parte da poltrona.

A sala de uma pequena biblioteca doméstica estava atulhada de livros nas estantes de alumínio, bem acessíveis no mercado, além de tralhas espalhadas aqui e ali. Um telescópio que nunca foi usado, alguns remédios, caixas com material de pesca, uma placa comemorativa, antigas fitas cassete de cursos de língua que esperavam, há décadas, uma aprendizagem além do primeiro módulo.

Mas ali ele se sentia seguro, sem nada que lhe incomodasse. Corina sabia disso, antevendo um futuro no próximo século. Não era bem o que ela queria, sonhando com um herói de romance, mas a vida lhe ofereceu um leitor. Sem mais ilusões, ele lia um dos muitos diagnósticos da realidade econômica e social, onde teorias da conspiração manipulavam a história.

Corina achegou-se por detrás, procurando seu livro de contos para uma referência, estantes laterais naquele mundo especial de enlevo e prioridades. Não havia muito o que falar entre os dois, só ler. Ela estava exausta de tanta solidão a dois. Nada era mais possível. A vida havia escoado e tudo eram apenas lembranças registradas nos álbuns fotográficos enfileirados na parte inferior da estante mais larga.

Naquele momento ela viu que poderia mudar o destino, se ambos quisessem. Ele não quis. Continuava a ler, como sempre. Não havia nada que pudesse mudar o roteiro.

Então Corina voltou para debaixo da cama.

 Petrolina, junho 2019


                     Há um balanço dos domingos de manhã

                    Amassam-se os sonhos nos volantes conferidos da loteria

                    Quinas, senas, seis jogos diversos

                    Diversos tentos, tento versos

                    O grande prêmio que nunca chega

                    Jogo adiado... jogando.

(16/05/21)

                                               Cultivo antúrios.

                                              De preferência vermelhos.

                                              Há antúrios miniaturas.

                                              Encolheram.

                                              Como os espaços e tempos do hoje

                                              Mas um pênis ereto se eleva prenhe além do verde

                                              Que penso ao vê-los em desafios cotidianos??

21/02/22)

 

 

 

sexta-feira, 22 de abril de 2022

DONA FRIDA


Mais um daqueles “tipos inesquecíveis” que marcaram minha vida... memórias que me salvam da rotina e reconstroem o poder da simpatia e dos afetos.

Dona Frida era uma simpática senhora, catarinense, descendente de alemães. Vivia sozinha, numa kitchenette em São Paulo, no “Bixiga” ou Bela Vista, num prédio antigo, que dava para a Avenida Nove de Julho, lado direito saindo do centro. O prédio fazia esquina com uma ladeira, de onde eu pude apreciar, da sacada de meu apartamento alugado, décimo andar, também uma kitchenette, o vai e vem de tanta vida a pulsar, nos espaços dos apertos e da poluição paulistana.

Pois bem, o apartamento de Dona Frida ficava nos fundos do andar e do meu apartamento. Havia muitos vasos de plantas ao redor de sua porta. Dedicada, limpava com um pano úmido suas folhagens. Era conhecida de todos no andar, como a minha vizinha da frente, uma sergipana cheia de filhos que gritava “Zezinho” muitas vezes ao dia... Havia também um casal jovem; a moça estava grávida quando cheguei ao prédio.

Morando com meu futuro marido, trabalhando e estudando, numa vida com alguns sobressaltos, dificuldades muitas, mas muito tesão... em vários sentidos, bem sentidos. E que os moradores do andar percebiam pois ficavam atentos; realmente a vizinhança de um andar é assunto para muita fofoca e observações maliciosas.

Recebíamos muitas visitas, éramos jovens e curtíamos o início dos anos 70 com tudo que estivesse a nosso alcance. Artistas de vários naipes, atores, hippies, até professores iam e vinham... certa vez fiz uma feijoada que a vizinha da frente veio pedir um pouco para a moça grávida do andar, pois o cheiro havia se espalhado no ar.

O fato é que também fiquei grávida. Embora estivesse entusiasmada em ser mãe, tive um parto muito difícil. Operada, sentia dores da cirurgia e o leite das mamas “empedrou”. Fiquei traumatizada, não aguentava sequer ouvir o choro da criança. Meu marido tentava de tudo, mas choro de criança de madrugada, quem passou por isso é que sabe...

Foi aí que Dona Frida entrou em nossa vida; um desses acasos que nos salvam daqueles aperreios prontos para nos destruir... Ela chegou a nossa porta e se ofereceu para cuidar da criança, me ensinando nestes manejos que não se aprende na escola, a dar banho, trocar fraldas (de pano!!!), a higienizar potes e mamadeiras, inclusive a colocar compressas no meu seio dolorido.

E então fiquei sabendo quem era Dona Frida. Ainda hoje me emociono com sua confissão. Ela havia sido enfermeira, cuidadora de crianças, de muitos recém-nascidos nos “berços de ouro” da alta burguesia paulista. Um trabalho de muita dedicação, horário integral, que as mães verdadeiras pagam para suas substitutas babás, garantindo tranquilidade e uma vida sem sustos e cuidados com seus pequenos.

Sem dúvidas Dona Frida deveria ter sido bem requisitada. Branca, loira, de aparência impecável, uma senhora distinta e experiente. Nada a ver com o estereótipo ridículo da babá alemã. Sabia trocar fraldas, acalmar o choro, fazer mamadeiras e cativar as crianças... mas aí é que estava o problema. Ela também era cativada, amorosamente; passava em geral dois anos no máximo com os bebês que acompanhara desde o nascimento. E, então, era mandada embora para nunca mais vê-los, sequer ter notícias desses filhos dos outros. E havia sempre outro bebê na fila de espera...

Seu coração doía de tanta dor. Ela cobrava “caro”, tanto que conseguiu comprar seu apartamento onde morava. Entretanto, chegou uma hora que não aguentou mais. Não havia oferta que a fizesse voltar ao antigo ofício. Seus filhos eram agora suas plantas, o cuidado extremoso com seu vigor e beleza.

Mas, e meu filho? 

Também por ele se apaixonara; perguntei quanto ela iria cobrar pela ajuda fundamental que me dera, por mais de uma madrugada em que batíamos na sua parede, pedindo socorro. Ela disse que eu não lhe devia nada, mas, se quisesse, poderia lhe dar um vaso de plantas. Comprei um lindo vaso repleto de antúrios e dei com gosto e vergonha. Porque sabia que mais uma dor iria lhe cortar o coração.

Então, antes de completar um ano, nos mudamos para uma pequena casa no bairro de Veleiros, parada final do ônibus. Eu a convidei para a festinha de aniversário do meu bebê, com alguns parentes e amigos. Ela foi. Depois, nunca mais a vi.


Petrolina, 22 de abril de 2022.

terça-feira, 29 de março de 2022

A MEDIDA DO TESTEMUNHO E A MEDIDA DO POÉTICO

 

Análise do conto Medição Individual de Varlam Chalámov

(in Contos de Kolimá 1, São Paulo: Editora 34, 2018, p. 46/49)

Elisabet Gonçalves Moreira

Desde que tive acesso a uma parte da literatura de Varlam Chalámov (1907-1982), textos em prosa reunidos em seis volumes, com o nome de Contos de Kolimá, me vi desafiada por outra perspectiva da assim chamada “literatura de testemunho” e seu impacto contemporâneo. Traduzidos diretamente do russo, relatos, contos, ensaios, até mesmo dois poemas, cujo foco denuncia a vida (e a morte) nos Gulags, campos de trabalhos forçados na ex-Soviética União, região de Kolimá, no extremo leste da Sibéria, onde Chalámov foi prisioneiro por dezessete anos. 

GULAG: Sigla em russo para "Administração Central dos Campos" na ex-União Soviética. Reduzidos após a morte de Stalin, em 1953, duraram até os anos 90. 

Os extremos, sejam geográficos, condições climáticas, exaustão e sobretudo a fome, levam ao paroxismo o extermínio ali praticado durante a repressão stalinista. Au delàs da questão ideológica do regime, Chalámov trabalha as idiossincrasias morais que aniquilam qualquer humanidade possível. Corpos e mentes em desacordo, desapiedados e indiferentes à ignomínia.

Particularizando, foi no primeiro volume que me deparei com um conto, sim, posso classificá-lo nesse gênero, que, de certa forma, mostrou aquele que, para mim, revela um procedimento exemplar de sua poética. “Medição Individual” é tomado aqui como parâmetro de um testemunho em que realidade e arte se conjugam.

Sem fazer uma paráfrase, o leitor deste trabalho também poderá ir e vir no texto do autor, complementando referências e lacunas.

MEDIÇÃO INDIVIDUAL

                              VARLAM CHALÁMOV

No final da tarde, enrolando a trena, o encarregado disse que a medição de Dugáiev no dia seguinte seria individual. O chefe da brigada, que estava de pé ali ao lado e pedira emprestada ao encarregado “uma dezena de centímetros cúbicos até depois de amanhã”, calou-se de repente e fixou os olhos na estrela vespertina cintilante, na crista da sopka nua. Baránov, parceiro de Dugáiev, que ajudara o encarregado a medir o trabalho feito, pegou a pá e pôs-se a limpar a galeria de mina que há muito já fora limpa.

Dugáiev tinha 23 anos de idade e tudo o que via e ouvia aqui mais o surpreendia do que assustava.

A brigada reuniu-se para a contagem, entregou as ferramentas e voltou ao pavilhão numa formação irregular. O dia difícil terminara. No refeitório, sem se sentar, Dugáiev tomou a porção de sopa de cereal rala e fria pela borda da tigela. O pão distribuído de manhã para o dia todo há muito fora comido. Vontade de fumar. Olhou ao redor, imaginando de quem podia pechinchar uma guimba. Na beira da janela, Baránov juntava num papel os fiapos de makhorka da bolsa de tabaco revirada. Juntou-os zelosamente, enrolou um cigarro fininho e estendeu-o a Dugáiev.

- Fume e devolva – propôs ele.

Dugáiev ficou surpreso, ele e Baránov não eram amigos. Aliás, com fome, frio e sono, não se fazia amizade nenhuma, e Dugáiev, apesar de jovem, compreendia toda a falsidade do provérbio sobre amigos temperados na infelicidade e na desgraça. Para que a amizade fosse amizade era preciso uma base sólida, formada quando as condições e a vida ainda não tivessem atingido aquela última fronteira, além da qual já não há nada de humano no ser humano, a não ser desconfiança, maldade e mentira. Dugáiev lembrava bem o provérbio nortista dos três mandamentos do detento: não confie, não tema e não peça...

Dugáiev absorveu avidamente a fumaça doce da makhorka e sua cabeça girou.

- Estou ficando fraco – disse ele.

Baránov não disse nada.

Dugáiev voltou ao pavilhão, deitou-se e fechou os olhos. Nos últimos tempos, dormia mal, a fome não o deixava dormir direito. Os sonhos eram especialmente martirizantes; bisnagas de pão, sopas grossas fumegantes... A sonolência demorou a chegar, mas, apesar disso, meia hora antes do toque de alvorada, Dugáiev já abria os olhos.

A brigada chegou ao trabalho. Foi cada um para a sua galeria.

- Você, espere aqui – disse o chefe da brigada a Dugáiev. – O encarregado é que vai dizer.

Dugáiev sentou-se no chão. Já estava tão esgotado que enfrentava com total indiferença qualquer mudança no destino.

Os primeiros carrinhos de mão caíram com estrondo sobre o passadouro de madeira, as pás bateram nas pedras, rangendo.

- Venha cá – disse o encarregado a Dugáiev. – Seu lugar é aqui.

Ele mediu a cubatura da galeria e colocou uma marca: um pedaço de quartzo.

- Até aqui – disse ele. – O tabueiro vai estender as tábuas até o caminho principal. Aí você leva até lá, como todo mundo. Tome: pá, picareta, pé de cabra, carrinho de mão. Ande.

Dugáiev começou o trabalho, obediente.

“Melhor assim”, pensou ele. Nenhum dos companheiros ia ficar resmungando que ele trabalhava mal. Ex-lavradores não eram obrigados a entender, nem podiam saber que Dugáiev era novato, que tinha ido para a universidade logo depois do colégio e trocara o banco universitário por essa galeria de mina. Cada um por si. Não eram obrigados a entender e não entendiam que há muito tempo ele estava esgotado e faminto e que não sabia roubar: no Norte, um talento importante era a habilidade de roubar, em todas as suas formas, começando pelo pão do companheiro e terminando pelos milhares de pedidos oficiais de prêmios à chefia por resultados inexistentes, não alcançados. Não era da conta de ninguém se Dugáiev não conseguia aguentar um dia de trabalho de dezesseis horas.

Dugáiev empurrava o carrinho, escavava e carregava; de novo empurrava o carrinho, escavava e carregava.

Depois do intervalo do almoço, o encarregado chegou, examinou o que Dugáiev tinha feito e saiu calado... Dugáiev voltou a escavar e a carregar. Ainda faltava muito até a marca de quartzo.

No final da tarde, o encarregado apareceu de novo e esticou a trena. Mediu o que Dugáiev fizera.

- Vinte e cinco por cento – disse ele e olhou para Dugáiev. – Vinte e cinco por cento. Está ouvindo?

- Estou – disse Dugáiev.

Surpreendia-lhe essa cifra. O trabalho era pesado, a pá pegava tão pouca pedra, era tão difícil escavar. A cifra, vinte e cinco por cento da cota, parecia muito grande a Dugáiev. As batatas da perna doíam sem parar por causa do peso do carrinho de mão; as mãos, os ombros, a cabeça doíam insuportavelmente. A sensação de fome há muito o abandonara. Dugáiev comia porque via os outros comendo; algo lhe dizia: é preciso comer. Mas ele não tinha vontade de comer.

- Bem, é isso – disse o encarregado, afastando-se. – Desejo boa sorte.

De noite, mandaram Dugáiev ao agente de polícia. Ele respondeu quatro perguntas: nome, sobrenome, artigo, pena. Quatro perguntas que faziam ao detento trinta vezes ao dia. Depois Dugáiev for dormir. No dia seguinte, trabalhou de novo com a brigada, ainda como parceiro de Baránov, mas, passados, dois dias, à noite, os soldados levaram-no por detrás da estrebaria, passando pela trilha do bosque até o local, onde, quase cortando um pequeno desfiladeiro, ficava uma cerca alta, de arame farpado, estendida até em cima, e de onde, à noite, ouvia-se um farfalhar longínquo de tratores. E, tendo compreendido o que ia acontecer, Dugáiev lamentou ter trabalhado em vão, ter padecido em vão no trabalho aquele dia, aquele último dia.

(1955)


 






À esquerda: Trabalhos forçados em Kolimá na Sibéria  À direita: o escritor  Varlam Chalámov, na prisão, em 1937.


Qual foi o objetivo de minha análise? Demonstrar, neste texto de Chalámov, o procedimento construtivo em que realidade e arte se conjugam. A medida do poético e da consciência do horror vivido e recriado como expressão escrita.

 “No final da tarde, enrolando a trena, o encarregado disse que a medição de Dugáiev no dia seguinte seria individual.”

O que significa o anúncio dessa medição individual, destacada desde o título?

É, a partir daí que, imediatamente, nos situamos no núcleo motivador da narrativa, para acompanharmos os acontecimentos em que o destino de Dugáiev é decidido no desenrolar de uma trena. Neste início, de imediato, justificam-se o leitmotiv, o título e a sequência da narrativa. Uma rede de significados é construída a partir desta referência.

A despersonalização de Dugáiev já está neste nome, sem prenome e patronímico. Um entre tantos... ou, como tantos outros. Condenados do sistema, não existe futuro. Subentende-se um desafio que Dugáiev jamais poderá cumprir como meta de produção. Todo o tempo, ele parece tão anestesiado pelo sofrimento que nada o assusta mais.

Ao redor do personagem Dugáiev, aparecem os coadjuvantes com suas tarefas de fiscalização e punição que fazem o sistema funcionar. Temos o “encarregado”, cumpridor de ordens e de metas e, na sequência do primeiro parágrafo, vão aparecer mais dois personagens da cena inicial.

O chefe da brigada – que não precisa ser nomeado – seu cargo e importância já bastam, e Baránov, o parceiro de Dugáiev. Destaca-se a indiferença do chefe, seu silêncio repentino e a atitude inusitada e reveladora da esperteza de Baránov a limpar a galeria da mina que já fora limpa. Eles todos sabem, sem dúvidas, o que aguarda Dugáiev, menos o próprio.

Ficaremos sabendo que Dugáiev não é um lavrador ou um blatar, o bandido comum, referência em outros contos de V. Chalámov. O fato de ser jovem, 23 anos, estudante, pode até justificar certa ingenuidade e fraqueza para a realidade dos trabalhos forçados, demonstrar sua inexperiência e ter agravada sua punição. E até atrair nossa simpatia, enquanto leitores.

Ressalto nesta frase inicial duas referências a um tempo cronológico: o que acontece no final da tarde e o que acontecerá amanhã. Um tempo também medido, delimitado, criando antecipadamente uma situação narrativa e um suspense.

Sabe-se que, no sistema penal, é justamente no controle do tempo e garantindo sua utilização que se assegura o poder sobre o outro e o que ele representa; conserva-se o domínio nessa duração, na pena imposta aos condenados. No caso deste conto, abrevia-se não só o tempo como a narrativa.

Uma dinâmica quase cinematográfica nos leva a imaginar o cenário, seus atores e sutis contrapontos para o caminhar do inevitável. Há um narrador onisciente sim, mas isso não é documentário, é literatura. Há um segundo plano onde o leitor atento perceberá (ou não?) o desenrolar anunciado pela trama, seus personagens, atitudes e silêncios. E é justamente nesse plano que tudo adquire significação.

Há suspense até na estrutura dos parágrafos, intercalando um pequeno parágrafo ou uma fala, depois de uma narração em que certos detalhes do local e das condições físicas e necessidades de Dugáiev, como comer e fumar, são mostradas através de frases curtas, incisivas.

Apesar da tensão implícita na condução da narrativa, percebe-se uma sequência de normalidade onde tudo é previsível, pois, afinal, aquilo é o cotidiano nos campos de Kolimá.  Uma voz narrativa vai refletir sobre a falsidade onde não se tem, nem se pode ter, qualquer amizade neste lugar - o Norte - e nestas condições, a invariante da fome, do frio e dos trabalhos forçados.

“...aquela última fronteira, além da qual já não há nada de humano no ser humano, a não ser desconfiança, maldade e mentira.”

A desconfiança na capacidade de trabalho de Dugáiev já fora “delatada” implicitamente. No Gulag demonstra-se a verdade de “cada um por si.”  O mais são mentiras que todo detento deve bem saber.

Afinal “Não era da conta de ninguém se Dugáiev não conseguia aguentar um dia de trabalho de dezesseis horas.” Isso é o que o personagem parece concluir, pela voz do narrador. Um contraponto com a fiscalização dos trabalhos dos detentos e as metas a serem atingidas por esses escravos de um regime que, além de condenados, os quer “produtivos”. Tolerância zero, como dizemos hoje.

Dentro da estrutura desses aparatos da repressão, de sua hierarquia, não consigo deixar de pensar na referida maldade, não como uma abstração, mas como ela é organizada, disciplinada. Na expressão “banalidade do mal”, Hannah Arendt admiravelmente deduziu, no julgamento de Eichmann, o nazista genocida, um homem comum, aquele que se julga inocente, pois apenas cumpre – e muito bem – as ordens superiores.  Realmente é difícil aceitar que burocratas assassinos possam ser também dedicados e sensíveis cidadãos.

Nesse conto, ainda no primeiro parágrafo, o chefe da brigada, autoritário nas exigências e que implicam no destino sem saída de Dugáiev, “...calou-se de repente e fixou os olhos na estrela vespertina cintilante...”  Nesse silêncio explícito e olhar para o alto, no contraponto do que ele já sabe, podemos inferir algum traço de humanidade? Na verdade, ele apenas cumpre o seu dever, como um chefe eficiente.

E Dugáiev, o novato nas lavras, aquele “que tinha ido para a universidade ... e trocara o banco universitário por essa galeria de mina”, o sujeito punido, não trocara coisa nenhuma, já que, ironicamente, fora condenado a trabalhos forçados sem direitos e futuro.

Sabe-se que grande parte dos presos no Gulag eram presos políticos, geralmente opositores do regime ou aqueles que, mesmo fazendo parte do governo, muitas vezes caíam em desgraça por um motivo ou outro, sendo perseguidos, silenciados e punidos.

No caso desse conto em análise, nem sequer sabemos qual foi a “culpa”, o motivo da prisão de Dugáiev; supomos uma oposição qualquer, como estudante, ao regime da época stalinista, provavelmente o temível artigo 58, que podia abarcar qualquer denúncia e que levou à prisão enorme contingente de pessoas, os “inimigos do povo”, incluindo grande número de inocentes.

A simpatia pelo jovem também nos faz perguntar: seria ele um inocente, uma vítima? A literatura de Chalámov não deixa escapar nem o prisioneiro, nem qualquer intervenção. “Cada um por si”, já fora explicitado.

Certo que o escritor, em alguns ensaios, no volume 4 dos Contos de Kolimá, tenha feito um apanhado geral dos tipos presos nestes campos de trabalhos forçados, distinguindo o bandido contumaz - assassinos, ladrões, estupradores: os blatares - dos outros condenados. Sua organização e violência o levou não só a descrever os blatares, mas fazer um discurso moralista e condenatório de sua perversidade sem limites. Aí sim temos o posicionamento e o testemunho desnudado, em detalhes.

Entretanto, o escritor nunca deixa de ser um escritor. Nesse sentido, literariamente, há contos admiráveis das ações desses bandidos em outras obras, de sua total indiferença a possíveis sentimentos de benevolência e a submissão de outros prisioneiros, muitas vezes para sua autopreservação, ou derrocada moral naquele ambiente sub-humano.

“Tão difícil escavar”, admite o novato Dugáiev, sem experiência o corpo todo dói, sequer a fome o atormenta mais. Prisioneiros sacrificados pelo castigo da fome, na letargia da subnutrição, sabemos que o personagem já não tem alternativa. Discurso indireto, o autor mergulha no corpo e mente do personagem. Inclusive são “martirizantes” os sonhos do personagem, eloquentes nas imagens de alimentos simples, como bisnagas de pão e sopas grossas.

Somente uma testemunha dessa tortura, como foi Chalámov, possa dela falar com tamanha força. Aqui, no Nordeste, há uma expressão popular, usada em situações difíceis, de filas longas, metáfora de uma miséria crônica: “comprida como um dia de fome”.

Voltando à narrativa, então tudo se completa: o personagem escava, trabalha, mas a medição individual deu apenas vinte e cinco por cento do que lhe havia sido imposto. Irônico, o encarregado ainda lhe deseja boa sorte. O que, evidentemente, Dugáiev jamais terá.

Nem há um clímax descrito para o final ou a execução; isso já vinha se desenrolando, só Dugáiev não desconfiava. Tantos índices e marcas que o jovem não percebera. A violência é, pois, simbolicamente demonstrada.

No último parágrafo, a sequência de fatos e ações tem ritmo mais lento e detalhado. A presença do agente de polícia e o interrogatório parecem não constituir uma anormalidade. Dugáiev dorme, ainda trabalha em parceria com Baránov, dois dias se passam. Mas à noite, levado pelos soldados, o cenário improvável, deslocado do cotidiano, não deixa dúvidas sobre a execução. Dugáiev, assim como o leitor, finalmente compreendem o que “ia acontecer”.

Quase epifania, essa compreensão constitui um corte, o momento fundamental da narrativa. Não dá para sair ileso de um testemunho literário como esse. E, sobretudo, entender, também, dolorosamente, assim como o personagem, que tudo fora “em vão”, que fora seu último dia.

“E, tendo compreendido o que ia acontecer, Dugáiev lamentou ter trabalhado em vão, ter padecido em vão no trabalho aquele dia, aquele último dia.”

 

Sem ceder ao melodramático, Varlan Chalámov, testemunha e sobrevivente dessa realidade, destrói em sua narrativa qualquer possibilidade de romantização do horror vivido. Isso, ele mesmo fez questão de deixar claro. No fragmento do ensaio “Sobre a prosa” defende uma literatura forte, vivida, nunca “de fora”. Situações extremas, repletas de significação. Também  nos tornamos testemunhas.

 

 

Petrolina, 2 de março de 2022.

terça-feira, 1 de março de 2022

CARNAVAL SEM CARNAVAL


Dinara me pergunta: Você gosta e brinca carnaval?

Não consigo responder diretamente... De qual carnaval? Ela envia uma avalanche de postagens, como fã e entusiasta do carnaval da cidade do Recife, onde mora, de lembranças do frevo, de compositores e maestros, de tantos blocos e fantasias.

Nunca ao vivo, vi. Nunca desci (ou subi) as ladeiras de Olinda na folia, mas gostaria de ter tido essa chance, de ter participado dessa diversidade de festas, de ritmos e ter me despojado de muita repressão e pudor. Circunstâncias pessoais e familiares, até mesmo de contexto histórico, não me deixaram “cair na folia”.

Em minha infância, antes de morar em São Paulo, numa pequena cidade do interior, minha mãe não me deixava brincar carnaval, nem pensar nisso eu podia! Para ela, filha de imigrante italiano, absurdamente católica, o Carnaval era a festa do diabo. Quem participasse, era um pecador sem salvação.

Principalmente para mim isso foi um trauma... sim, porque todas as minhas amiguinhas participavam, iam aos bailinhos infantis, com fantasias, confetes, serpentinas e... lança-perfume. Era a moda das marchinhas, que se cantava com entusiasmo. Havia desfile alegórico e ainda pude assistir alguns, mas nem pensar em brincar.

Fui buscar esta foto no meu álbum. Minhas amiguinhas fantasiadas. A mãe de Nilzinha chegou a implorar para minha mãe deixar que eu participasse... como eu chorei! Hoje penso também que ela talvez não tenha deixado por uma questão de dinheiro para a fantasia, mas mesmo sem fantasia nunca pude brincar carnaval. Aliás, eu era proibida de usar shorts ou calça comprida! Só quando moça, trabalhando, comprei minha primeira calça comprida, uma rancheira, o jeans daqueles tempos.

Mas há uma passagem especial, do carnaval de 1969, quando, jovem e estudante em São Paulo, viajei, com alguns amigos, para o Rio de Janeiro. Fui expectadora, uma única vez, de um desfile das escolas de samba quando não existia Sambódromo, ainda na Avenida Presidente Vargas.

O Salgueiro arrasou, com o samba enredo Bahia de Todos os Deuses, cantado por Elza Soares.  As cores vermelho e branco, o ritmo, tudo tão empolgante!

“Terra abençoada pelos deuses
E o petróleo a jorrar
Nega baiana
Tabuleiro de quindim
Todo dia ela está
Na igreja do Bonfim, oi
Na ladeira tem, tem capoeira
Zum, zum, zum, zum, zum, zum
Capoeira mata um
Zum, zum, zum, zum, zum, zum
Capoeira mata um
Zum, zum, zum, zum, zum, zum
Capoeira mata um”

O fato de ter ficado a noite sem dormir e o calor impiedoso, quase me fizeram sucumbir... sempre fui muito frágil fisicamente para aguentar este tipo de “repuxo”. Mas, à noite, não pude deixar de ir ao famoso baile gay do Scala. Que experiência! O que vi jamais sairá de minha memória!

Fiquei num canto com um amigo que não foi dançar, mas percebia seu olhar mais do que curioso. Hoje, até me lembro que não havia lésbicas ou gêneros afins, somente homens. 

Pois bem, quem eu vi lá? Um homem lindo, engenheiro na empresa onde eu trabalhava em São Paulo, aos beijos e abraços com outros homens. Ele fingiu não me ver - ou não me reconheceu mesmo - e eu também “fiquei na minha”. Quem iria supor que eu também estaria lá, no Rio, e num baile gay... Na empresa ele era altivo e sério, paquerado por todas as moças, um dos poucos solteiros. Quando voltei para o trabalho, nunca disse nada e ele também continuou a não me reconhecer.

São Paulo, capital, no final dos anos 60 e início da década de 70, não era uma cidade carnavalesca, bem o sabemos. Pode ser que hoje isso esteja diferente, mas não havia um carnaval onde pudéssemos, inclusive, nos sentir seguros. Havia uma ditadura militar em pleno exercício. Ademais, eu não tinha nem tempo nem condições para brincar o carnaval, casada, estudando e com filho pequeno.

Morando depois em Petrolina, também não tive ocasião de brincar carnaval. Era uma forasteira, sem vínculos com a festa que, por sinal, era bem restrita.  Minhas filhas, quando jovens, foram se divertir do outro lado do rio, em Juazeiro da Bahia, nos tempos das bandas do Axé, muito mais animadas. Mas, esse tipo de festa não fazia gosto para mim, nem para meu marido.

Ainda teve um ano que fomos para Salvador, depois de muita insistência minha. E foi um desastre... não dava para acompanhar trio elétrico, era tudo muito longe, as crianças eram pequenas, não havia amigos ou parentes para nos dar um suporte. Recife, muito menos.

Estou me justificando muito, mas para mim isto funciona também como uma explicação. Hoje, aos 75 anos, é bom repensar, já que não dá para reviver o que não foi vivido. Nem o será, na festa proibida onde a máscara não é fantasia...

Não brinco, não brinquei... nem na ala das baianas, nem no Bloco da Saudade.

 

Petrolina, 1 de março de 2022


 

domingo, 23 de janeiro de 2022

PALAVRA E MEIA


“Literatura é linguagem carregada de significado até o máximo grau possível”
                         Ezra Pound


Tomando um texto curto para análise, receptora nesse ato de comunicação, adentro no poema Passatempo de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) e sua possibilidade de uma leitura crítica. E, bem sei, de antemão, que a própria escolha do texto já aí se situa, não por ser “curto” mas, sim, pela sua extensão poética...

PASSATEMPO

                    O verso não, ou sim o verso?

                    Eis-me perdido no universo

                    do dizer, que, tímido, verso,

                    sabendo embora que o que lavra

                    só encontra meia palavra.

Carlos Drummond de Andrade (in Corpo. S. Paulo: Record, 1984, p. 89)

Ler e reler o texto em primeiro lugar. Sentir. Ouvir sua própria voz. Apreciar a sonoridade, o que o poema traduz, o conjunto em seu primeiro contato. Fazer isso com prazer.

Você pode até pesquisar. Situar a obra. Do livro Corpo, de 1984, quando o poeta contava 82 anos, pouco antes de sua morte. Livro que teve uma reação um tanto negativa da crítica, a cobrar-lhe a poesia social dos anos 30 e 40, o poeta volta-se para uma poesia mais sensual, lírica e irônica ao mesmo tempo, o que nunca deixou de ser.

        Tratando o texto: decodificando-o visualmente, formalmente, atitude necessária para um crítico entender procedimentos e significação. Vejo um título em destaque e apenas cinco versos, distribuídos em duas orações. Releio mais uma vez. Já no primeiro verso temos uma interrogação motivadora (“O verso não, ou sim o verso?”) e uma possibilidade de resposta nos versos seguintes, uma quadra, constituindo uma oração afirmativa completa nos “enjambements” (encadeamentos) de um verso a outro.

        Aqui não se visualiza o verso “livre”; exercito a metrificação. Contagem: oito sílabas poéticas e que, unindo som e significação fica-se em dúvida no último verso, nos limites entre “forçar” oito sílabas ou ficar com sete, já que o poeta diz que “só encontra meia palavra” e não uma palavra inteira...

O jogo formal se amplia: rimas finais, todas paroxítonas, verbos e substantivos em assonâncias e contrastes:

verso/universo/verso/lavra/palavra (a/a/a/b/b)

(substantivo/substantivo/verbo/verbo/substantivo) 

Uma construção melódica de grande sonoridade, desde o próprio título, duas palavras fundidas: o uso de sibilantes; o t e p tão próximos foneticamente e separados pela nasalização do -em-, já a nos inquirir que tipo de passatempo seria este.

Passatempo (passa/tempo) 

        E ele se apresenta como desafio no primeiro verso, na interrogação, mediado pela vírgula, separando o ser ou não ser, isto é, o sim e o não. Metalinguagem explícita, o poeta questiona o verso e sua indecisão e o eu lírico responde a seguir, afirmando sua voz; “Eis-me perdido no universo/do dizer”.

Esse dizer que o deixa perdido, mas “que, tímido, verso”. Percebe-se, pela análise um pouco mais atenta que, no primeiro verso, a palavra verso é um substantivo, repetida duas vezes, quase numa gangorra rítmica do sim e do não; continua a rima em universo, outro substantivo, mas, no terceiro verso, temos esta palavra funcionando, morfologicamente, como um verbo: (eu) verso.

Tensão ou harmonia dos contrários: “O verso não, ou sim o verso?” A grande questão, o que decidir como referencial literário? O não e o sim divididos na metade do verso. Não há separação entre forma e conteúdo, se bem lermos. Estabelece-se um diálogo no próprio texto, entre o autor e o eu poético. O poeta pode até se mostrar indeciso, mas sabe muito bem de sua escolha...

        O verbo versar tem vários significados. No texto, a ambiguidade semântica (já conotada na indecisão do sim e do não do primeiro verso) amplia-se aqui. Tanto pode ser sinônimo de versejar, atividade que o poeta afinal está fazendo, como pode ser também, de acordo com sua origem etimológica, voltar, no sentido do verso, que vai e volta, ou manejar, exercitar.

        Quanto ao adjetivo tímido, destacado entre vírgulas, pode ser interpretado com base na personalidade do escritor. Carlos Drummond era um mineiro retraído, avesso a badalações, considerado um tímido como pessoa, significado que ele pode estar reiterando, mas pode ser também relativo aos seus versos, já que ele se confessa “perdido” neste “universo do dizer”.

O jogo se acentua nessa tentativa de acerto. O poeta agora usa a palavra verso como um verbo, na primeira pessoa do presente. O eu lírico se posiciona: perdido. Achará? Eco em universo, com significado ambíguo em todo o contexto, pois sua abrangência é aberta, mas é também uni. No dizer: a palavra, esse signo verbal carregado na dialética entre significante e significado, entre o sim e o não subliminar.

        Os dois últimos versos, no entanto, são uma afirmação forte, quase que dogmática “sabendo embora que o que lavra/ só encontra meia palavra”. Tradicionalmente, as rimas b são rimas “ricas”, pois lavra está funcionando como verbo e palavra é um substantivo. Neste instante, conhecimentos sobre a biografia do autor ajudam a entender e justificar o uso do verbo lavrar.

Drummond nasceu no estado de Minas Gerais e só saiu de lá depois de adulto. A exploração colonial das minas de ouro marcou a história das “lavras do ouro”. Portanto, lavrar é um verbo forte, repleto de conotações. Nada é gratuito num texto plenamente realizado, tudo tem significados além da estrutura superficial.

        Mesmo “perdido”, o poeta usa um gerúndio (presente contínuo) para afirmar que sabe (Sabendo...) Sabe, tem certeza, que nesse universo, aquele que trabalha (onde está o passatempo?) não encontra tudo acabado, pronto ou perfeito, só “meia palavra”.

Observe-se o uso da adversativa “embora”, conotando os limites deste universo que ele assume - agora é o sim - como um trabalho, mas um não nas suas dificuldades, já que qualquer poeta, percebido pelo pronome oblíquo o (não somente ele) nunca encontrará a palavra inteira. Generalizando todos os que se perdem, como ele, no “universo do dizer”.

        Portanto, este poema, dentro da poesia de Carlos Drummond de Andrade, reitera a impossibilidade do dizer poético, entre aquele que vê o verso como um ofício de garimpagem do verso e das palavras, mas constata ser apenas um passatempo, triste ironia, que não se completa.

        Função poética dominante da linguagem, na concepção jakobsiana, o poeta se vale da referência metalinguística para, de um ponto de vista pessoal e emotivo, mostrar-nos os dilemas, perplexidades e constatações da poesia, seus limites e virtualidades.

        Neste poema vejo, sintetizada, a poética de Drummond, seus questionamentos existenciais e seu labor literário, dúvidas e angústias do fazer. Mesmo que seja um “passatempo”, ironia no que o lúdico se integra nessa “perdição” de não encontrar toda a possibilidade do verso: o signo sempre trará a marca de sua incompletude.

                


Carlos Drummond de Andrade 

(Obs.: esta análise foi feita aos poucos, em sala de aula, em descobertas gradativas... também o sentido pleno do texto não nos é dado de uma vez só, é preciso “curtir”, aguardar, refletir... 23/01/22)

 


segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

LITERATURA/ ANÁLISE LITERÁRIA: COORDENADAS POSSÍVEIS

 Justificando a postagem: 

Este texto foi refeito em 4/12/21, para complementar “conversa” no Tear Literário/UPE, assim divulgado  no card do convite. O título dado à minha fala é muito bom, mas só vim a saber dele na véspera. Haviam me dado alguns motes, falar sobre literatura, crítica literária e até mesmo minha escrita. Então recuperei textos e fiz um power point bem didático que, depois, vou também escrever e colocar no blog. Reconheço que este texto poderia ser mais desenvolvido, por isso o subtítulo "Coordenadas Possíveis". Agradeço comentários...


            Análise, segundo os dicionários, em seu significado básico, denotativo, é a separação de um todo em seus elementos constitutivos (em oposição a síntese). Assim, esse processo é visto como método de estudo da natureza de alguma coisa ou da determinação de suas características essenciais e suas relações. Sem dúvidas, já fizemos análise sintática, por exemplo, em nossos estudos de gramática.

         No entanto, essa caracterização como literária, modificando a palavra análise, delimita e direciona nosso trabalho. Literária vem de literatura. Portanto, é preciso, neste caso, saber o que é literatura para entender o seu alcance como análise literária.

         Literatura não é fácil de ser definida, bem o sabemos. Não estamos lidando com ciências exatas, mas com conceitos dentro das chamadas ciências humanas que carregam grande carga de subjetividade, baseadas na ideologia e visão do mundo de quem as manipula, atreladas à historicidade e evolução destes mesmos conceitos.

         Assim, Literatura, em sentido amplo, é a arte da palavra.  Escrita ou oral, não importa. Mas, o que é mesmo arte? As questões se ampliam, gerando mais e mais conceitos e (in)definições na esfera subjetiva de ver e sentir a arte como necessidade humana em suas múltiplas possibilidades de representação e dar sentido a nossas vidas.

A história literária se ocupou muito em classificações, de prosa ou poesia nos seus diversos gêneros como poemas líricos, de narrativas como epopeias, lendas, contos, romances e formas que não se enquadram em nenhuma classificação tradicional, oscilando em seus limites. Há enorme diversidade, além da interação de linguagens e de outras artes.

         Na verdade, os estudos modernos da Literatura, aliados sobretudo aos estudos de Linguística e da Semiótica, trouxeram a ideia mais abrangente de generalização como texto, onde se podem “ler” diversas linguagens e pontos de vista.

Análise literária e crítica literária

          Embora possam ser consideradas disciplinas isoladas, dentro dos estudos literários em geral ou da Teoria da Literatura, a análise e a crítica literária estão muito próximas. Para se fazer uma crítica, com o mínimo de legitimação, há que se analisar. E crítica conota julgamento do mérito de um trabalho qualquer, destacando virtudes e defeitos quando não somente a ideia de que crítica é sempre uma apreciação desfavorável, uma condenação ou uma reprovação, algo que deve ser completamente afastado numa visão moderna dos estudos literários.

         A relação entre as duas disciplinas é porque praticamente a análise literária leva a uma crítica, na medida em que, ao se “desmontar” um texto ou decodificá-lo, serve para mostrar as qualidades ou defeitos deste texto. Escolher um texto para análise já implica numa primeira crítica, na medida em que ele leva a uma intenção ou significa mais que outro.

A imanência na análise de texto; o espaço da leitura

         Nossa postura é que qualquer análise de texto é imanente, isto é, parte sempre de dentro do próprio texto para as relações extratextuais. Portanto, é basicamente um exercício de leitura. Há vários tipos de leitura e de leitores. Neste caso, somos um leitor especial, com uma formação epistemológica em Letras, na maioria das vezes, e um objetivo de avaliação, em que o texto é a referência constante, não só como objeto da análise mas como sujeito, isto é, não se enquadrar prioritariamente em teorias, mas, sim, teorias que surgem a partir da própria leitura.

Procurar sua “literariedade”, como formulou Roman Jakobson, isto é, o que faz dele ser literário. Não existem fórmulas prontas, existem caminhos. Cada texto é um texto e, em sua verdade, ele é quem conduzirá a análise. A análise não pode ser separada da síntese, procedimentos dialéticos que conduzem a análises dignas de crédito porque demonstram o a estrutura e o funcionamento do texto literário em sua dinâmica própria.

A análise literária é também criação

         Você, como decodificador, tem na desconstrução imanente do texto a possibilidade de um usufruto também criativo, na medida em que o resultado pode ser a produção de um texto de sua autoria, confiável, e não uma opinião meramente impressionista. Percebendo a obra como um ato de comunicação, o receptor/leitor estabelece um diálogo interativo com a obra e sua autoria. Lembrar que somos seres sociais, interagindo culturalmente

Existe um método de análise literária

         Há vários. Assim como existe uma história da literatura, existe uma história da crítica literária, de metodologias, de procedimentos para se estudar a literatura, para compreender este fenômeno criativo do ser humano. Não se pretende dar “receitas”, mas mostrar possibilidades de leituras, de análises críticas e criativas como consequência. Aqui já se explicitaram algumas coordenadas, o resto é com você. Você faz o método servir a você e não o contrário; ficar amarrado a modelos só limitam. Procure, portanto, seu próprio modelo. Cada texto é um texto, singular em sua essência, assim como cada análise é uma análise.

Qual a utilidade em se fazer análise literária?

        Para os pragmáticos, existe análise literária como profissão. Jornais, revistas apresentam críticas ou resenhas críticas. Mas se você é um professor, ou aluno, os conhecimentos de análise literária muito o auxiliarão no descobrir do literário, do fazer poético. Não se prenderá a críticas preestabelecidas ou julgamentos preconceituosos, terá um aval muito maior, porque terá capacidade de mostrar no funcionamento da própria obra como o poético se instaura, a criatividade, o estilo do escritor, sua grandeza e imortalidade. Ver e sentir a obra literária como cultura e como ato de comunicação especial, particular. Não entra em questão somente o gosto, antes todo um complexo cultural que é levado também em conta, o gênero, a história, o escritor em inter-relação. Compreender a estrutura artística como um processo em dinâmica com objetividade e suscetibilidade ao mesmo tempo. Nesse sentido é estar sempre atento ao presente, às novas situações de produção. Tomar lições do passado e construir talvez um método próprio, mas adequado ao momento em que se vive.

 INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS GERAIS

(checar reedições/pdf)

 

Nota de admiração: Fui aluna de Cândido e estava em sala de aula quando ele analisou o poema "Rondó dos Cavalinhos" de Manuel Bandeira, que consta do livro acima.

CANDIDO, Antônio. Na sala de aula, Caderno de análise literária.  São Paulo: Ática.

 EAGLETON, TerryTeoria da Literatura – uma introdução. São Paulo: Martins Fontes; 4ª edição

EIKHENBAUN e outros. Teoria da Literatura - formalistas russos.

LOTMAN, Iuri. A estrutura do texto artístico.

 PESSOA DE BARROS, Diana Luz. Teoria semiótica do texto.

 STAM, Robert. Bahhtin. Da teoria literária à cultura de massa.

 TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas.

 ZILBERMAN, Regina. Estética da Recepção e História da Literatura.

 

 Elisabet Gonçalves Moreira é mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP. Aposentada como professora na UPE – Universidade de Pernambuco e IF Sertão.